MAURÍCIO LEMOS IZOLAN
A LETRA E OS VERMES O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis
A LETRA E OS VERMES O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.
Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza.
MAURICIO LEMOS IZOLAN
A LETRA E OS VERMES O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis
Aprovada em ________________________________________
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Literatura Brasileira.
(Ronaldes de Melo e Souza, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(Godofredo de Oliveira Neto, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(Manuel Antonio de Castro, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(Antônio José Jardim e Castro, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
(Wellington de Almeida Santos, Professor Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Izolan, Maurício Lemos.
A letra e os vermes – O jogo irônico de ficção e realidade em Machado de Assis/Maurício Lemos Izolan – Rio de Janeiro, 2006.
p. 207
Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Faculdade de Letras, 2006.
Orientador: Ronaldes de Melo e Souza.
1. Literatura Brasileira 2. Teoria da Literatura. 3. Hermenêutica.
5. Linguagem.
I. SOUZA, Ronaldes de Melo e (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. III. Título.
Gostaria, em primeiro lugar, de não só agradecer, como também dedicar esta tese ao meu orientador, Professor Ronaldes de Melo e Souza. A ele dedico todo meu apreço e respeito pelo intelectual que é e pelo caráter como pessoa, educador e formador. Estendo o agradecimento e a dedicatória a sua esposa, a também pesquisadora, Professora Drª Maria Lúcia Guimarães.
Gostaria ainda de agradecer e dedicar aos meus avós (in memoriam), Oscar e Leocádia. A minha mãe, Ana Maria Moraes de Lemos, que, quando todos não acreditaram, acreditou. A meu pai, Norival Izolan.
Aos meus filhos: Pedro, Luiza e Brisa.
A minha esposa: Ana Paula da Silva Cardoso.
Dedico também aos amigos da UnB, de quando este projeto foi engendrado e se tornou, como eles, parte da minha vida: Robson André da Silva, Marcelo Américo da Silva, Marco Túlio Ribeiro Pacheco, Laura Goulart, José Nunes de Oliveira Filho.
Agradeço e dedico aos amigos da UFRJ: José Manuel Castrillon, Marcus Saraiva e Angélica Castilho.
Aos membros da minha Banca, agradeço aos Professores Doutores Manuel Antonio de Castro, Godofredo de Oliveira Neto, Wellington de Almeida Santos, Antônio José Jardim e Castro.
À funcionária Nádia Romanovski e à secretaria de Pós-Graduação da Faculdade de Letras.
Ao CNPq.
Meus agradecimentos à Professora Inês e ao Professor Elmano, da Faculdade Multieducativa.
Agradeço e dedico também, e com especial carinho, aos amigos da Universidade Católica de Brasília: Professores Lívila Pereira Maciel, Mariza Vieira, Dalva Del Vigna, Rozana Reigota, Maria Fernanda, Lúcia Helena, Virgílio Pereira, Marcos Silvio, Aline Pessôa e Adriana Viana (in memoriam).
A letra e os vermes é a cifra hermenêutica da operação textual de complementariedade entre a escrita e o silêncio. A obra machadiana dramatiza o jogo entre o dito e não-dito, o visto e o invisível. Para fazê-lo falar, é necessário o entendimento não só da ironia no plano literário e retórico, mas principalmente no plano poético-filosófico do paradoxo. A operação que vai de Friedrich Schlegel a Machado de Assis é a formatividade irônica do jogo de contrários e da parábase como reflexão constante da criação sobre a criação e da criação sobre o mundo. Tal processo é estranho ao horizonte crítico tradicional que entende a ironia machadiana nos extremos do estrambótico ou do pessimismo, como contraditoriedades mutuamente excludentes e não complementares. O jogo irônico é a síntese analítica schlegeliana entre vida e morte em Ressurreição, entre o dito e não-dito em Iaiá Garcia, entre a letra e os vermes que a corroem em Dom Casmurro e entre ficção e realidade em Memorial de Aires.
The letter and the worms is the hermeneutical cypher of the textual and spiritual operation of complementarity between the writing and the silence. Machado’s work dramatizes the play between the said and the unsaid, the seen and the unseen. To make it speak is necessary the understanding of irony not only in literary and rethoric level, but mainly in the poetical-philosophical level of paradox. The operation which comes from Friedrich Schlegel to Machado de Assis is the ironic formativity of the play of contradictions and of parabasis as a constant reflexion about creation and about the world. Such process is strange to the traditional critical horizon which understands Machado’s irony as extremes, such as odd or pessimism, as mutually excludent contradictorities and not as complementary ones. The ironic play is Schlegel’s analytical synthesis between life and death in Resurrection, between the said and the unsaid in Iaiá Garcia, between the letter and the worms which corrodes it in Dom Casmurro and between fiction and reality in Memorial de Aires.
La lettre et les verres est la chiffre hermeneutique de l’operation textuelle et espirituelle de complémentarité entre la lettre et le silence. L’ouvre machadienne dramatise le jeu entre dit et le non dit et la vue et l’invisible. Pour le faire parler, c’est necessáire la compréhension non seulement de l’ironie du plan litteraire et réthorique, mais principalement dans le plan poètico-philosophique du paradoxe. L’operation qui va de Friedrich Schlegel à Machado de Assis c’est la formativité ironique du jeu des contraires et de la parabase comme réflexion constante de la création sur la création et de la création sur le monde. Tel procès est étrange à l’horizon critique traditionnel qui comprend l’ironie machadienne dans les extrêmes de l’estrambotique ou pessimiste, comme des contrariétés mutuellement excluentes et pas complementaires. Le jeu ironique est la synthèse analytique schlegelienne entre la vie et la mort en Ressurrection, entre le dit (parlé) et le non dit (parlé) en Iaiá Garcia, entre la lettre et les verres qui endommagent en Dom Casmurro et entre fiction et réalité en Memorial de Aires.
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................... 10 Capítulo I O conceito de ironia .......................................................................... 15
1. O conceito de ironia na tradição e a retórica da ficção................. 17
2. O conceito de ironia no Romantismo alemão............................... 40
2.1. Ciência, consciência e autoconsciência em Fichte............. 40
2.2. Reflexão, paradoxo e ironia em Schlegel............................. 49 Capítulo II O conceito de ironia e a sua recepção na crítica machadiana ......... 72 Capítulo III O drama de caracteres e a ironia estrutural em Ressurreição......... 100 Capítulo IV A ironia como desmascaramento ideológico em Iaiá Garcia .......... 128 Capítulo V Dom Casmurro: a letra e os vermes ............................................... 151 Capítulo VI Memorial de Aires: la vecchia e dolce ironia .................................. 173 Conclusão ........................................................................................................ 190 Bibliografia ....................................................................................................... 192
Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em devir. Um projeto completo teria de ser ao mesmo tempo inteiramente subjetivo e inteiramente objetivo, um indivíduo indiviso e vivo. Segundo sua origem, inteiramente subjetivo, original, somente possível justamente nesse espírito; segundo seu caráter, inteiramente objetivo, física e moralmente necessário. O sentido para projetos que poderiam ser chamados de fragmentos do futuro é diferente do sentido para projetos do passado somente pela direção, que é progressiva naquele, mas regressiva neste. O essencial é a capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os complementar e em parte executar em si. Uma vez que transcendental é justamente aquilo que se refere ao vínculo ou à separação do ideal e do real, se poderia dizer que o sentido para fragmentos e projetos é o componente transcendental do espírito histórico. (Friedrich Schlegel. Athenäum, 22)
A ironia é a análise [contrapondo-se à síntese] de tese e antítese.
Este é o romantismo que a tradição brasileira não conheceu. O romantismo da
ironia de Friedrich Schlegel que nega a síntese dialética hegeliana, herdeira da
tradição metafísico-idealista. Para a ironia romântica desenvolvida por esse
romantismo, tudo é paradoxo. Portanto, para a obra de arte construída pelo
princípio da ironia, nada é eterno, tudo é contraditório e a obra de arte deverá
representar essa verdade palindrômica. Para habitar tal horizonte, a arte reflete
ao mesmo tempo que representa, reflete representando, representa refletindo,
é expansão e contração. Unidade inorgânica de caos e cosmos, a obra
romântica encena metacriticamente o princípio que a constitui enquanto arte no
ato de se fazer arte. Concomitância de execução e invenção, a construção
irônica é parábase, reflexão, formatividade.
O Romantismo alemão será, portanto, o momento da fundamentação de uma teoria crítica do fazer poético calcada na equação imaginação e reflexão. Herdeiro direto do Idealismo Alemão, o Romantismo é a cifra da aporia desse pensamento. Negação da tradição de cisão entre espírito e letra, a Lebensphilosophie cria uma filosofia centrada na arte e uma arte filosófica, reunião do orgânico e do aórgico, em que se supera a abstração da Wissenschaftslehre. Kant – Fichte – Schlegel é o caminho hermenêutico de compreensão da raiz quadrada do infinito no finito, do trans-finito da imaginação do real na realização do ideal. Nosso percurso teórico, nossa meta.
E o que tem a ver o Romantismo alemão com Machado de Assis? A resposta é: ironia. A ironia que se encena na obra de Machado de Assis não é a ironia socrática da tradição filosófica, mas a ironia poética que o Romantismo alemão fundamentou. Machado de Assis, apontado pela crítica e pela historiografia literária brasileiras como autor realista, é o mestre da ironia romântica. Isso não quer dizer que o encaixotamos em um rótulo. Mesmo porque a própria ironia romântica extrapola o rótulo “romantismo” como é tradicionalmente compreendido, uma vez que ela é um fenômeno da modernidade, só compreendido fora da Alemanha pelo Romantismo inglês e pelo Simbolismo francês. O conceito de ironia romântica é um conceito complexo que ultrapassa a dialética sintética para a qual aponta a ironia socrática que culmina na dialética hegeliana. Como enuncia a primeira frase desta introdução, não há síntese hegeliana na dialética da ironia romântica, que tem como inventor, teórico e poeta Friedrich Schlegel. Na realização poético-filosófica dos fragmentos do Athenäum e do Philosophisches Lehrjahre, iremos decifrar a intrincada hermenêutica da filosofia cíclica de Schlegel, seu conceito de paradoxo como ironia e traduzir a hermética dialética do espírito e da letra que se revela em sua obra. Concriativa à complexidade dessa dialética é a poética silenciosa d’a letra e os vermes de Machado de Assis. A compreensão do diálogo entre os dois horizontes coloca em xeque a tese de que há duas fases (uma romântica e outra realista) na obra do autor carioca, uma vez que a ironia corrói tanto o idealismo do romantismo tradicional quanto a objetividade pura do realismo-naturalismo do final do século XIX.
É importante insistir nesse ponto: a ironia não trabalha com um pensamento crítico tradicional onde a dialética tende para uma solução sintética da polêmica. Esse elemento afasta Machado de Assis do universo tanto da literatura quanto da crítica de seu tempo e mesmo da crítica de momentos posteriores. Não dá para estudar Machado com os mecanismos tradicionais, mas também não dá para estudá-lo com o aparato dialético-filosófico que se propôs como teoria crítica numa vertente dialético-materialista. É necessário um pensamento mais refinado que esteja em diálogo com o horizonte poético – sem perder de vista a dialética -e que, muitas vezes, ainda não encontrou melhor tradutor em nossa tradição crítica. Esse horizonte foi fundado por poetas e não por filósofos. Daí a importância da reflexão de um poeta-filósofo como Schlegel. É preciso sair da dicotomia e entrar na complementaridade e na harmonia dos contrários que a filosofia não suporta. Eis a dimensão da poética filosofia assistemática dos fragmentos de Friedrich Schlegel e de Novalis. Complementaridade de poesia e filosofia que funda um poetar pensante desconhecido em nossa tradição. A ironia é, neste processo, parábase: a reunião de imaginação e reflexão que faz da arte um jogo interativo de fazer e refletir, o qual se revela na (meta)ficção -concriativa ao trabalho dos românticos alemães - da obra de Machado de Assis.
Tal abordagem, como não poderia deixar de ser, se choca com a fortuna crítica existente. Para dialogar com essa tradição, o segundo capítulo será dedicado à recepção crítica da obra de Machado de Assis e a como uma perspectiva dialógica irá contradizer muitas posturas e complementar outras. O primeiro horizonte a ser desconstruído é o da crítica positivista que vê na ambigüidade da ironia machadiana um cacoete, um defeito. Tal perspectiva tem como representante máximo o crítico Silvio Romero. Sua visada é a do naturalismo que pregava uma literatura objetivista e positivista, posturas às quais a ironia de Machado se contrapõe frontalmente. Posteriormente a crítica de fundo psicológico não compreende a dimensão da ambigüidade de sentido da ironia e acaba por encaixotar a obra no horizonte monológico da relação com a vida do autor, acusando-o de pessimista. O jogo de contrários do paradoxo da ironia também desautoriza tal afirmativa. Por fim, dialogaremos com o momento de virada da crítica para uma abordagem mais afeita ao horizonte literário e dialógico, com a entrada em cena de críticos como José Guilherme Merquior, Sônia Brayner e Enylton de Sá Rego. Papel decisivo também será o da obra de Helen Caldwell, ao apontar a dimensão da traição como a dimensão geradora da ambigüidade que perpassa todo o Dom Casmurro. A síntese de tais contribuições nos encaminhará para uma hermenêutica da narrativa e da ironia na obra de Machado de Assis. Ambigüidade, paradoxo, duplo sentido são termos que a crítica e a teoria do romance inglês já conheciam bem. Por isso, nossa abordagem da ironia no diapasão do Romantismo alemão não prescinde da teoria do romance e da narrativa desenvolvida em torno da retórica da ficção do romance desde Cervantes até Fielding e Sterne. Wayne C. Booth, John Preston, Wolfgang Iser: autor implícito, eu criado, leitor implícito. São conceitos fundamentais da retórica que, co-jogados ao paradoxo filosófico, suscitam um horizonte interpretativo inovador. Preston é pioneiro ao levantar o problema da ironia como plot (trama) e apontar a ambigüidade como problema epistemológico da narrativa moderna. Sua colocação abre espaço para a fenomenologia da leitura ver o papel do leitor justamente como construção virtual dos espaços em branco da falha da escritura e da narrativa. Esses são os vermes que corroem a letra.
A corrosão é o nosso objeto de estudo. A corrosão está inscrita tanto na maneira metaficcional de narrar que assinala a presença da autoconsciência como instância exegética da narrativa, como no sentido ambíguo, anti-idealista, desconstrutivo que os silêncios do texto evocam. Em Ressurreição, tal ambigüidade está marcada tanto na construção do autor e do leitor, no jogo da enunciação, como na representação da consciência do personagem. O paradoxo é que Félix é infeliz, suas dúvidas impedem-no de persistir no bem que poderia ganhar, pois sua consciência o trai. O narrador, porém, não se comove, mas ironiza sua derrocada com o riso que marca o reconhecimento da insuficiência existencial do personagem diante do amor e da vida. Ressurreição significa, no silêncio do texto, morte. Ler o livro é entender criticamente esse paradoxo. Em Iaiá Garcia, o narrar ambíguo funda um processo de desconstrução do universo narrado ao qual chamamos de narrar desconstruindo. O processo desconstrutivo desse narrar é isomórfico à corrosão do tema do amor, irônica e desilusoriamente representado como interesse. Em Dom Casmurro, então, a ironia como paradoxo chega ao ápice da obra machadiana. A ambigüidade é tão intensa que o próprio texto trai o narrador, sendo essa a nossa tese que contradiz a crítica; pois esta pretende afirmar -caindo na armadilha do texto – que Capitu traiu Bentinho, quando, na verdade, vemos um processo diferente, em que é impossível dizer categoricamente se ela o traiu ou não, o que leva à conclusão de que o narrador é que foi traído pelo texto.
O paradoxo e a ironia se apresentam, por fim, em Memorial de Aires, como jogo entre ficção e realidade. Jogo sutil, narrativa suave e violentamente irônica. A crítica, em geral, não a soube ler. Concriativamente à linguagem elusiva da obra, procuramos escrever esse último capítulo através de uma linguagem parabólica. Parabólica porque toca suavemente o objeto sem procurar esgotá-lo, sem o desmontar. O fundamental é criticar co-poeticamente o recurso ficcional do romance de inscrever a história na escritura ficcional do diário de um velho e ameno observador. O resultado é uma das obras mais corrosivas – aparentemente inofensiva como os velhos diplomatas – da literatura brasileira, uma verdadeira parábola irônica da história do Brasil – una dolce e vecchia ironia. Gostaríamos de terminar nossa introdução com outro fragmento de Schlegel para garantir a circularidade de nossa composição e expressar o que significa o recurso machadiano de escrever parabolicamente: A ironia é uma parábase permanente.
“Felizmente a poesia espera tão pouco da teoria quanto a virtude da moral, do contrário não se teria, para começar, nenhuma esperança de um poema.” (Friedrich Schlegel. Athenäum, 9).
“no author, who understands the just boundaries of decorum and good-breeding, would presume to think all: the truest respect which you can pay to the reader’s understanding, is to halve this matter amicably, and leave him something to imagine, in his turn, as well as yourself.” (Laurence Sterne. Tristram Shandy, II, 11.)
O que se mostra bem quer velar-se. O mais alto estilo poético é o que apreende este paradoxo, o que representa em sua estrutura o jogo entre o que é dito, expresso, formulado, e o que é inexprimível por palavras, o que permanece obscuro no silêncio, na dobra da página, naquele pano de fundo de onde tudo provém, mas que nunca é totalmente apreensível, pois representa a mais funda raiz da linguagem: o drama de representar não o que as palavras dizem, mas o que o silêncio da página, o que a folha em branco entre uma letra e outra significa.
O estilo poético que harmoniza potencialmente a palavra e o silêncio, o dito e o não-dito, o finito e o infinito, a letra e o verme que a corrói, é
o estilo irônico. O vigor é a essência do estilo irônico. O vigor do silêncio. A ironia se revela como um estilo de alusões, ambigüidades, jogos de sinais, de entreditos. Sutil, revela no mais límpido e lídimo estilo, na mais corrente e inocente frase, um jogo de tensões extraordinário. Aí está justamente sua dificuldade: a simplicidade ordinária do sentido extraordinário, a elusividade 1 do ordinário.
Ao contrário do que acreditava a tradição retórica, o estilo irônico não se encontra em uma ou outra parte do texto especificamente. A ironia é, antes de ser um tropo que diz o contrário do que as palavras significam, a própria contextura ou arcabouço de relações de um texto. Um estilo irônico elevado não é o que se encontra em frases ou ditos espirituosos, mas o que entrelaça, silenciosamente, um corolário de relações e tensões insuspeitadas à primeira vista. Relações e tensões que não se esgotam na visão monológica da tradição filosófica ocidental, mas que exigem um novo pensamento, que suporte a tensão harmônica ou a complementaridade dos termos opostos em luta e disputa no universo da ficção.
Para alcançarmos nosso objetivo, a compreensão do conceito de ironia, deveremos, portanto, partir de sua abordagem na tradição para então mostrar a insuficiência do seu tratamento enquanto problema retórico. A problematização do seu conceito nos leva, por sua vez, a outras abordagens, que privilegiam o duplo sentido, a ambigüidade estrutural da narrativa, enfim, o conúbio entre o estudo da estrutura irônica do romance com um conceito que comporte o jogo de elementos contrários, abordagem que buscamos no conceito de ironia no Romantismo Alemão. Esse momento sui generis do pensamento moderno, que encontra suas raízes no Idealismo Alemão, eleva a reflexão, no âmbito da filosofia, e a ironia, na poesia, ao mais alto grau de criatividade, sendo mesmo o inseminador de toda a poesia moderna e, no caso da literatura brasileira, tendo sido brilhantemente absorvido pela obra de Machado de Assis – autor cuja obra será aqui estudada -é transformado em um dos recursos mais autênticos de sua crítica à consciência, à ideologia e à sociedade. A ironia prodigaliza a metaficção e a paródia, que denunciam o paradoxo do comportamento humano. Essa ironia só poderá ser compreendida no horizonte de um pensamento que comporte o jogo palindrômico dos
1 Esta palavra é uma audácia de nossa tese. Vem do inglês “elusive” e do italiano “elusivo”. Como no original há um sentido específico que desejamos usar, ousamos o “elusivo” em português. (Esta foi a última nota colocada na tese, depois de muitas leituras a várias mãos, nas quais a correção desta palavra foi recorrente.)
contrários e a desnude como um fenômeno poético que suplante o horror filosófico ao paradoxo e à contradição. Esse é o percurso que agora se nos abre.
Vários foram os tratamentos dados para o tema da ironia na tradição crítica: desde o conceito da eironeia socrática como dissimulação do conhecimento – substrato filosófico que está presente em toda aproximação ao problema – até a abordagem retórica que a considera uma figura de inversão e, gramaticalmente, também uma forma, sintática entre outras, de dissimular o sentido. É nos diálogos de Platão que ela recebe a designação de eironeia (εỉρωνεία,ας), palavra que se refere à ação de perguntar fingindo ignorar ou mesmo de perguntar tendo em vista a própria inesgotabilidade da pergunta ou a insuficiência, que não deixa de ser uma ignorância, de qualquer resposta. É o que os latinos chamavam de dissimulatio (dissimulação). O eiron (είρων,νος) dos diálogos platônicos é Sócrates, aquele que pergunta aos sofistas sobre a justiça, o amor, a morte, dissimulando nada saber, o que é a maior ironia do conhecimento, o próprio aspecto bifronte de Sócrates, saber dissimulando não saber ou saber que não há uma resposta concludente para a pergunta. O método socrático é o da pergunta e resposta, contrapondo-se aos sofistas, que desenvolveram o método das respostas apenas. A estrutura de pergunta e resposta é o princípio construtivo dos diálogos socrático-platônicos e o próprio punctum saliens da arquitetura irônica desses textos. De acordo com Friedrich Schleiermacher, grande hermeneuta da obra de Platão, os diálogos se dividem entre os que estão dentro do espírito socrático (dialógicos) – e aqui a ironia é a base estrutural de sua construção – e os que se afastam do espírito socrático e procuram respostas muito próximas do científico para as perguntas deixadas em aberto por Sócrates – os quais Schleiermacher classifica como construtivos. No primeiro grupo a marca fundamental é a estrutura ambígua, que não nos dá respostas concludentes; sua estrutura irônica nos remete à mais abstrata vacuidade. Por sua vez, os diálogos construtivos se apresentam dentro do espírito platônico de elaboração de uma teoria das idéias, de uma especulação positiva que busca a plenitude na idéia do Bem (ágathon). Uma observação mais detida dos primeiros diálogos é de grande valia para a compreensão do problema da ironia. Nesses diálogos, Sócrates se coloca primeiramente como alguém que não sabe da essência do objeto inquirido. Logo, porém, põe abaixo a pretensão dos interlocutores através de suas perguntas. Como sabemos, a estrutura da pergunta é uma abertura tanto para o objeto em questão quanto para o interlocutor. A ironia socrática derruba os argumentos dos interlocutores ao mesmo tempo que os seduz; mostra-lhes a insuficiência dos argumentos sobre o objeto, revelando-lhes uma possibilidade mais profunda de ser, sem dar, no entanto, uma resposta lógica, fechada ou concludente sobre ele. Paul Friedländer, em seu valioso trabalho Plato: an introduction2, refere-se a essa tensão que está “on the one hand deceptively concealing, on the other uncompromissingly revealing, the truth” (por um lado, ocultando ilusoriamente e, por outro, revelando inflexivelmente a verdade) 3 – como uma wordless irony (ironia calada): uma estrutura silenciosa e dinâmica do ironic play (jogo irônico) que permeia os diálogos.
No entanto, dentro da tradição filosófica (que inclui a gramatical), a ironia não foi compreendida em todas suas possibilidades significativas, tendo sido sempre tratada isoladamente, pontualmente. Na lógica dos gramáticos, o tratamento se torna ainda mais problemático pelo vício lógico de reduzir o sentido a construções sintáticas que se concretizam na fórmula rafada do tropos de inversão, ou mesmo, no trocadilho. É necessário, portanto, redefinir o conceito de ironia dentro de uma abordagem que revele o sentido no âmbito do jogo tensional de palavra e silêncio, dito e não-dito, recuperando a ressonância já entrevista nos diálogos socrático-platônicos.
Na Modernidade, sua compreensão continuou atual, uma vez que é um recurso central na construção do romance. Nesse campo de estudo, a
FRIEDLÄNDER, Paul. Plato: An Introduction. Translated by Hans Meyerhoff. New York: Pantheon Books, 1958. Especialmente capítulo VII, “Irony”.3 Idem, p. 144.
teoria da narrativa e, por extensão, do romance, sua abordagem estava, por sua vez, restrita à ironia verbal (verbal irony), conceito bastante estudado em romancistas da tradição inglesa como Henry Fielding, Laurence Sterne e Jonathan Swift. Em artigo sobre a ironia verbal, Eleanor Hutchens afirma sobre
o romance Tom Jones de Henry Fielding:
Verbal irony takes several forms. As irony, it is one of two main varieties – verbal and substantial – of the sport of bringing about a conclusion by indicating the opposite one. It is effected by a choice or arrengement of words which conveys the ironist’s meaning by suggesting its reverse. ( A ironia verbal toma diversas formas. Como ironia, é de duas variedades principais – verbal e substancial – de sorte a revelar uma conclusão ao indiciar a oposta. É efetivada por uma escolha ou arranjo de palavras que sustentam o sentido do ironista ao sugerir seu reverso.) 4
A escolha ou arrumação para nos ludibriar cai na intencionalidade do autor/narrador. Essa concepção denota um uso instrumental da ironia como látego sobre as personagens, sobre a visão reificada do leitor. Restringe-a, assim, a uma fala ou aspecto pontual do discurso, cabendo-nos decifrá-la ou não, ou, em outras palavras, sermos enganados ou não; mas, enfim, ter uma atitude ou outra diante de sua colocação, o que leva ao cerne de uma visão lógica sobre o problema, ainda muito próxima daquela de dizer uma coisa querendo dizer outra apresentada pela gramática. O problema é que tanto a tradição gramatical como a filosófica da qual a gramática faz parte foram reduzidas a uma visão lógica e monológica que não aceita a abertura para uma resposta não-concludente. A não compreensão dessa inflexão no pensamento ocidental, porém, leva à incompreensão de textos que não sejam calcados na visão maniqueísta do lógico, o que causa grande estrago tanto no pensamento como no estudo da poesia. É aqui que o estudo do romance e da poesia são de fundamental importância para o deslocamento do conceito de conhecimento, pois atualizam, no espaço da modernidade, a tradição de textos e de um pensamento calcado na harmonia e não na separação dos contrários.
4 HUTCHENS, Eleanor N.. Verbal Irony in Tom Jones. In: R. S. Crane (org.). Critics and Criticism – Ancient and Modern. Chicago: Chicago University Press, 1952, p. 46.
Essa questão pode ser melhor compreendida se se leva em
consideração a possibilidade de não ser a ironia um jogo lógico que envolva
apenas as respostas sim ou não para os truques verbais do autor/narrador,
mas um jogo um pouco mais complexo, que aceite, inclusive,
concomitantemente, as respostas sim e não para a mesma pergunta. No
estudo do romance moderno, especificamente, esse é um elemento
epistemológico central: a possibilidade de haver uma estrutura que articule um
sentido recôndito e virtualmente possível entre as várias instâncias narrativas
(autor, narrador, personagem, leitor), não se esgotando em nenhuma delas,
mas as ultrapassando e somente revelado no ato da leitura.
Ultrapassando o horizonte monológico de abordagem do
problema, a ironia se torna uma dimensão ontológico-construtiva do romance,
que atualiza o problema do dialógico da tradição como uma herança pródiga na
modernidade. Há uma outra passagem fundamental sobre o romance inglês do
século XVIII, mais uma vez sobre a obra de Henry Fielding, que ajudará
decisivamente nessa nova delimitação. Trata-se do livro The Created Self de
John Preston, no qual é desenvolvido o conceito de ironia como plot (enredo)
que, numa tradução mais precisa, considerar-se-ia trama:
..., the plot [of Tom Jones] faces two ways. From one side it looks like a forced solution, from the other an open question. In one way it looks arbitrary and contrived, in another it not only makes the reader guess but keeps him guessing at what has happened. The latter aspect of the plot is sustained by what Eleanor Hutchens calls “substantial irony”: “a curious and subtle means used by Fielding to add irony to a given detail of plotting is to leave the reader to plot a sequence for himself”. The reader has not, in fact, been told everything and is sometimes as much in the dark as the characters themselves. But irony of this kind is only contributory to the ironic shift by means of which the whole direction of the novel is reversed, and the plot has to sustain two contradictory conclusions simultaneously. [ a trama (em Tom Jones) aponta dois caminhos. Por um lado parece uma solução forçada; por outro, uma questão aberta. De uma maneira parece arbitrária e tramada, de outra ela não apenas faz o leitor conjeturar como o mantém conjeturando sobre o que aconteceu. O último aspecto da trama é embasado pelo que Eleanor Hutchens chama “ironia substancial”: “um meio curioso e sutil usado por Fielding para adicionar ironia a um detalhe
dado da trama é deixar ao leitor completá-la por si mesmo”. O leitor não foi, de fato , avisado de tudo e fica, às vezes, tão no escuro quanto os próprios personagens. Mas ironia deste tipo só contribui para o ardil irônico na medida em que a direção completa do romance é revertida, e o enredo tem de suster duas conclusões contraditórias simultaneamente.] 5
É bem clara a abordagem da ironia como um problema construtivo. A última frase é um petardo contra a crítica impressionista, pois deixa em evidência primeiramente que é o plot que constrói a ironia e, em seguida, que ele harmoniza conclusões simultaneamente contrárias. Preston complementa suas colocações com a afirmação de que o enredo de Tom Jones tem uma estrutura que pede sucessivas respostas ao romance e que isso significa que seu efeito é mais epistemológico do que moral, uma vez que
o livro põe o leitor para pensar e construir o quebra-cabeça durante a leitura. A crítica de Preston desvenda o enredo aparente e redimensiona a recepção crítica criada em torno da obra, pois destrói o argumento moralista que havia se formado sobre o livro na Inglaterra. Além disso, esse trecho retoma, em tom crítico-literário, aquilo que Schleiermacher apontou nos diálogos platônicos como dialógico, a possibilidade de uma abertura que não se esgota na resposta unívoca. Esse problema, que fora escamoteado pelo trajeto filosófico, parece ser brilhantemente retomado pelo romance moderno e, como veremos também, pela filosofia do século XVIII.
Não querendo cair no lugar comum do comparativismo, mas se utilizando de conclusões críticas sobre o romance inglês do século XVIII, pode-se escolher esse trecho como um ponto fundamental no trajeto de elucidação do conceito de ironia. Ele será também muito importante para compreendermos certos paradoxos da obra e da recepção crítica da obra de
5 PRESTON, John. Tom Jones (i): Plot as Irony. In: -. The Created Self. The Reader’s Role in Eighteenth-Century Fiction. London: Heinemann, 1970, p. 97. Esta obra faz parte de um esforço da crítica de língua inglesa dos anos 60 e 70 para compreender o estatuto ficcional da retórica do romance, cuja tradição naquela língua é riquíssima. O estudo decisivo nesse sentido foi o de Wayne C. Booth, The Rhetoric of Fiction (1961), que apresentou o conceito de autor implícito e que parece formar uma trilogia crítica, se pudermos aproximar um pouco livremente pólos à primeira vista distantes, incluindo o próprio Preston, Booth e a obra magistral de Wolfgang Iser, The Implied Reader. Citações posteriores.
Machado de Assis. Muitos autores e críticos já apresentaram a proximidade do romance inglês com a obra do autor carioca do século XIX6, mas ainda é pouco estudada qual a contribuição decisiva daquela tradição do romance -sob a ótica do jogo irônico dos contrários -sobre o autor brasileiro. Nosso intuito não se atém a essa relação comparativa, mas se esforça para compreender o funcionamento do jogo irônico no universo ficcional do autor em questão.
Os romancistas do século XVIII eram profundamente conscientes do jogo com o leitor que é construído pela ironia. Esse jogo é que constitui a novidade do universo narrativo moderno desde o Dom Quixote. Podemos dizer que a ironia se confunde com esse jogo. Aquela estrutura desvendada em sua ambigüidade por Preston o produz. Por isso gera no leitor um efeito dissonante que será amplamente discutido pela teoria literária moderna, principalmente pela teoria do efeito estético da Escola de Constança, e ainda mais especificamente por Wolfgang Iser em seus livros The Implied Reader e The Act of Reading7. Para compreender a ironia como jogo é imprescindível passar em revista alguns conceitos e algumas discussões desse autor, como, por exemplo, os conceitos de vazio estrutural e de leitor implícito.
Iser parte da fratura exposta pelo romance, o que marca a diferença dessa forma literária moderna em relação à obra de arte antiga. A mudança de horizonte da obra de arte clássica -onde a construção era organicamente unívoca -para a obra de arte moderna, que se compraz, especialmente no caso do romance, em parodiar e transformar a coerência em uma incoerência intencionalmente construída, instaura um problema moderno de leitura: a dissonância domina como a condição central da comunicação no romance.
6 Entre outros estudos, poderíamos enumerar: SENNA, Marta de. O Olhar Oblíquo do Bruxo (ensaios em torno de Machado de Assis). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1998.; BRAYNER, Sônia. Labirinto do Espaço Romanesco. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/MEC, 1979; REGO, Enylton de Sá. O Calundu e a Panacéia (Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. 7 ISER, Wolfgang. The Implied Reader (Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett). London: Johns Hopkins University Press, 1974. E ainda: ISER, W. The Act of Reading (A theory of aesthetic response). London: Johns Hopkins University Press, 1978. Este já se encontra em português: ISER, W. O ato da leitura – Uma teoria do efeito estético.2 vols. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996.
A dissonância é criada precisamente pela “incoerência” ou
assimetria entre os vários planos co-jogados no texto: o do autor, o do
narrador, o da personagem e o do leitor. A “incoerência” estimula o leitor a
participar ativamente do ato da leitura, pois sua participação em uma obra
clássica, onde tudo já lhe está dado, não é requerida, apenas seu deleite e sua
adequação às normas expostas. É o velho lema do prodesse et delectare. Ao
contrário, para a tradição moderna do romance, o texto formulado deve “falhar”
para estimular o leitor. É como se a leitura fosse eivada de verdadeiros vazios
aos quais Roman Ingarden, fenomenólogo a quem Iser deve o ponto de partida
de sua teoria, chama pontos de indeterminação 8 . Os vazios derivam da
indeterminação do texto, formam buracos na conectibilidade textual, quebrando
o princípio da economia comunicacional dos textos não-ficcionais chamado
princípio da good continuation9. Dessa forma, os vazios intensificam a atividade
ideativa do leitor. Os vazios ou buracos são, em verdade, os pontos nos quais
o leitor pode entrar no texto, formando suas próprias conexões e concepções e
o sentido configurativo do que lê:
And just as the reader is to ‘reflect’ during these ‘vacant pages’, so too must he reflect during all the other vacancies or gaps in the text. The gaps, indeed, are those very points at which the reader can enter into the text, forming his own connections and conceptions and so creating the configurative meaning of what he is reading. Thanks to the ‘vacant pages’, he can reflect, and through reflection create the motivation through which he can experience the text as a reality. He forms what we might call the ‘gestalt’ of the text,…(E assim como o leitor deverá refletir durante essas páginas vazias, assim também ele deve refletir durante todos os vazios ou buracos no texto. Os buracos, em verdade, são aqueles mesmos pontos nos quais o leitor pode entrar no texto, formando suas próprias conexões e concepções e assim criando o sentido configurativo do que ele está lendo. Graças às ‘páginas vazias’ ele pode refletir e,
8 INGARDEN, Roman . The cognition of literary work of art. Evanston, Northwestern University Press, 1973. 9 Este é um termo utilizado por Wolfgang Iser para o princípio da economia vigente na percepção diária da linguagem, pois, como diz o próprio nome – boa continuidade – não cabe à linguagem diária levantar barreiras à percepção, o que é o oposto nos textos ficcionais. Iser o retira da psicologia da percepção de Gerwitsch e Bateson: “Ele indica a ligação consistente de dados da percepção em uma forma de percepção”. Vide: ISER, W. A Interação do texto com o leitor. In: -COSTA LIMA, Luiz. (org.). A literatura e o leitor (Textos da Estética da Recepção). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, pp. 108 e ss.
através da reflexão criar a motivação através da qual ele pode experienciar o texto como uma realidade. Ele forma o que poderíamos chamar de ‘gestalt’ do texto,...) 10 .
Poderíamos considerar esta abordagem do processo de leitura como uma abordagem fenomenológica. Para essa abordagem, a obra-de-arte literária se dinamiza e se concretiza na interpenetração dialética e dinâmica de sua estrutura textual com a sua realização 11 pelo leitor. Podemos, portanto, dizer que a concretização é uma tarefa de construção do sentido não-dito, mas potencialmente estruturado pelo texto. O texto literário é uma malha de elementos que não trazem a significação já pronta. Os elementos determinados se organizam e se relacionam de tal maneira que apresentem indeterminações comunicativas entre si. A estrutura dos elementos determinados produz uma estrutura de pontos de indeterminação (Leerstellen) e negação. Por via de conseqüência, é na dialética do dito e do não-dito, do escrito e do não-escrito, que se dinamiza o papel do leitor e a concretização da obra.
Partindo da concepção ingardiana do texto como uma estrutura de correlatos oracionais intencionais (intentionale Satzkorrelate), Iser aperfeiçoa o legado da fenomenologia e psicologia da percepção ao justamente enfatizar a produtividade dos vazios estruturais. Enquanto para Ingarden o processo da leitura deve caminhar através das sentenças correlativas até a apresentação completa do mundo da obra, Iser enfatiza precisamente a não-conectibilidade entre os segmentos estruturais como os pontos de maior significação do texto. O que diferencia o texto literário do texto não-literário, e particularmente do texto científico, é justamente a nãoconectibilidade que nos leva a uma dificuldade de ideação 12 . O texto ficcional
10 ISER, Wolfgang. The Implied Reader, p. 40. 11 Realização é a tradução da palavra inglesa realization, que, por sua vez, traduz a palavra alemã Konkretisation. Estas palavras são substantivos dinâmicos que remetem ao processo de interação entre o horizonte em formação da obra e a existência concreta do leitor. Tal interação se dá no ato da leitura. 12 O conceito de dificuldade de ideação foi criado por Iser para aperfeiçoar o conceito de dificuldade de percepção dos Formalistas Russos. Para Iser, a dificuldade de ideação é mais fiel que a dificuldade de percepção ao fenômeno de constituição do sentido pelo leitor. Cf. ISER, W. How acts of constitution are stimulated. In:__. The Act of Reading, pp. 180-231.
rompe com o caráter de previsibilidade dos outros discursos, desautomatizando a percepção pela quebra do princípio da good continuation evocado pela psicologia como princípio de economia dos textos palatáveis, isto é, que não oferecem resistência à boa continuidade da compreensão. A quebra da good continuation pela estrutura dos vazios provoca no leitor uma atividade intensa de formação de imagens dadas pelo texto. A dificuldade de ideação é, portanto, um acréscimo na necessidade de construção de uma configuração (Gestalt) integrada das várias perspectivas textuais pelo leitor.
Os vazios, porém, não marcam apenas a suspensão da conectibilidade entre os segmentos, mas formam a própria condição de seu mútuo relacionamento. Eles funcionam como a estrutura de comunicação do texto, pois coordenam a permuta de perspectivas do ponto-de-vista do leitor. A primeira propriedade estrutural do vazio é justamente a possibilidade que ele cria de, a partir das conexões interrompidas, organizar campos onde se inter-relacionem e se interpenetrem segmentos e perspectivas do texto. Cabe à atividade projetiva do leitor organizar a tensão entre os segmentos em relacionamento no campo estruturado pelo seu ponto-de-vista. Daí a necessidade de perspectivar relações determinadas enquanto outras são postas em segundo plano, num processo constante e permutável de aproximação de alguns segmentos em diálogo e afastamento de outros. Essa operação funciona como se houvesse uma mudança de lugar dos vazios, focalizando um determinado agrupamento de segmentos e desfocando outros,
o que cria a necessidade de mobilidade da perspectiva do leitor. O agrupamento de segmentos focalizado torna-se tema, o não-focalizado, horizonte. A estrutura da compreensão coordena à tematização de um grupo segmental a criação de um horizonte, de tal forma que o ato de compreender só se efetiva na interpenetração dinâmica de tema e horizonte.
Portanto, o processo de interação do texto com o leitor não se dá pelo fato de este trazer sua experiência subjetiva e a despejar na forma (ô) vazia, aberta pelo texto, como muitos críticos desavisados interpretam o conceito de abertura, principalmente por uma leitura mal feita da obra de Umberto Eco, Obra Aberta. Obra Aberta não significa obra escancarada. Pelo contrário, o texto cria uma intensa atividade de projeção e frustração, ilusão e desilusão, criação de expectativas e boas intenções para posteriormente serem solapadas por sua estrutura de negações. Para Iser, esse não é um processo contínuo, mas um corolário de interrupções. Um processo no qual
We look forward, we look back, we decide, we change our decisions, we form expectations, we are shocked by their nonfulfilment, we question, we muse, we accept, we reject…
(nós olhamos para frente, nós olhamos para trás, nós decidimos, nós mudamos nossas decisões, nós formulamos expectativas, nós somos surpreendidos por sua não-realização, nós questionamos, nós ensimesmamos, nós aceitamos, nós rejeitamos...) 13
Enfim, para Iser, citando I. A.Richards, “a book is a machine to play with” (Um livro é uma máquina para se jogar com ela.) 14 . Isto é, o livro é uma estrutura intencionalmente fraturada que constrói sua coerência como livro da incoerência formal que gera aquele efeito epistemológico que Preston nos descreve. O suportar duas soluções simultaneamente contraditórias é justamente fazer da incoerência coerência. É abrir vazios que ativem a dissonância da comunicação e a ambigüidade do sentido. A ambigüidade é o efeito irônico sobre a leitura e leva o leitor a ter que desentranhar, refletir sobre
o sentido potencial e virtualmente construído, mas estruturalmente silenciado no texto. Por isso, Iser nos afirma que “a concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor” 15 . Ou ainda, que “a estrutura do texto e o papel do leitor estão intimamente unidos.” 16 O leitor é implícito justamente porque ocupa o papel que os vazios lhe oferecem, construindo-se imagem daquele leitor que o texto concede e pré-forma, silenciosamente, na sua estrutura aberta, que também poderíamos chamar de irônica. É claro que a interação leitor/texto passa por um confronto do mundo
13 ISER,W. The Implied Reader, p. 288. 14 Idem, p. 45. 15 ISER, W. O Ato da Leitura, p. 73. 16 Idem, p. 75
da ficção com o mundo da vivência do leitor, realizando-se, por isso, em diferentes graus, mas o texto mais lê o leitor do que é lido por ele.
O jogo do texto com o leitor é o jogo do sentido que se revela no ato da leitura. Para compreender a fundamental heterogeneidade do leitor no processo configurativo do sentido do texto, Iser irá dialogar com outras teorias, como com o conceito hermenêutico de jogo da obra-de-arte e de história operativa (Wirkungsgeschichte) desenvolvido por Hans-Georg Gadamer em sua obra magistral da Hermenêutica Contemporânea Verdade e Método (Wahrheit und Methode) 17 . Esses conceitos também são importantes para compreendermos o modus operandi da ironia como formatividade do texto. Para compreendê-los, passemos à exposição de seu conceito.
Segundo Gadamer, o jogo é o próprio ser da arte. Sua afirmação só pode ser entendida quando confrontada com o esquema epistemológico de conhecimento formulado pela tradição filosófica que, modernamente, se apresenta no discurso metódico cartesiano. Para René Descartes, o ego do cogito, ergo sum é o sujeito (sub-jectum=suporte) a priori de todo conhecimento e só através dele se manifesta a objetividade do objeto. Tudo que existe só existe porque há um sujeito matemático (cogito) que corrobora sua objetividade. Sujeito e objeto são os dois termos do método cartesiano. Nesses termos, ou a verdade é subjetiva ou é objetiva.
Não é o que afirma Gadamer. O ser da obra é jogo porque seu sentido não se esgota nem na subjetividade do autor ou do “fruidor”, nem na objetividade do representado. A obra-de-arte é o livre manifestar-se (Darstellung) da verdade (Alétheia) bem no meio da linguagem, é o jogo incessante daquilo mesmo que se manifesta. Seu ser não é determinado pela subjetividade nem pela objetividade, mas pela redundância do próprio movimento do jogo da obra. O que Gadamer quer dizer é que o sujeito da obra é o próprio jogo, pois aquilo que a obra é é o que se manifesta em seu jogo. Uma redundância que aponta para a auto-representação da obra, que é aquilo mesmo que se mostra sendo, não o que uma consciência ou realidade exterior
17 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método (Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica). Trad. Flávio Paulo Meurer. 2 vol. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
queira que ela seja. Assim, Gadamer liberta o conceito de arte da determinação subjetiva da estética kantiana e da idéia platônica de que a arte sempre representa (no sentido de copiar, Vorstellen) uma realidade que a circunda ou precede. A importância de Gadamer para Iser ou da Hermenêutica para a Teoria do Efeito é a de que o sentido que se manifesta não se reduz à subjetividade ou à objetividade que circundam a obra, que o sentido se manifesta num jogo que representa o próprio ser da obra e que é esse mesmo jogo que cria o papel do leitor, do autor, do narrador e do universo narrado.
O ser da arte se revela nesta redundância: o jogo é um movimento incessante que não procura um ponto único como objetivo; é a redundância do movimento. Se, numa folha de papel, estabelecêssemos dois pontos – como, por exemplo, a subjetividade e a objetividade numa relação metódica – o jogo não se ateria a nenhum dos dois pontos, mas se constituiria como o próprio movimento de ir e vir entre um e outro no espaço em branco da página. Portanto, no jogo, o movimento é uma representação que se auto-representa. Seu modo de ser é medial, é o entremeio. Por não ter objetivos fora de si, o jogo não é sério no sentido das atividades que procuram realizar um fim. A sua seriedade tem um sentido próprio, autotélico. Por isso, no jogo da arte, nem o sujeito (autor ou leitor), nem o objeto (realidade) se mantêm os mesmos, mas são transformados pela construção lúdica do texto. O que exsurge da representação do jogo da arte é algo novo, inédito, mas que, paradoxalmente, é aquilo mesmo que é verdadeiro. Isto é o que Gadamer chama de Verwandlung ins Gebilde (Transformação em Construção):
A este giro por el que el juego humano alcanza su verdadera
perfección, la de ser arte, quisiera darle el nombre de
trasformación en una construcción. Sólo en este giro gana el
juego su idealidad, de forma que pueda ser pensado y
entendido como él mismo. Sólo aqui se nos muestra separado
del hacer representativo de los jugadores y consistiendo en la
pura manifestación de lo que ellos juegan. [...] 18 Ou ainda:
18 Utilizamos a tradução espanhola: GADAMER, H. G.. Verdad y Método (Vol. 1). Quinta edición. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1993, p. 154.
Nuestro giro ‘transformación en una construcción’ quiere decir que lo que había antes ya non está ahora. Pero quiere decir también que lo que hay ahora, lo que se representa en el juego del arte, es lo permanentemente verdadero. 19
A partir da apresentação do conceito de jogo de Hans-Georg Gadamer, já podemos fazer um apanhado dessas teorias e apontar o caminho que estamos procurando seguir. Em consonância com essas teorias até aqui apresentadas, exporemos, mais à frente, o conceito de ironia estrutural de Beda Allemann, como concepção fundamental do processo lúdico-construtivo da ironia no romance. Porém, de imediato, se relacionarmos a teoria do romance inglês do século XVIII de John Preston – que aponta para as duas respostas simultâneas exigidas do leitor pelo romance – , com os vazios estruturais ou pontos-de-indeterminação apresentados pela teoria de Wolfgang Iser – vazios que exigem a participação ativa do leitor no jogo da obra e que o transformam, no ato da leitura, em leitor implícito no horizonte de sentido revelado no texto -, e ainda fundamentarmos este percurso na teoria do jogo de Gadamer – que aponta justamente para a experiência da obra de arte como uma experiência que nos revela a verdade não como continuidade com nossa subjetividade ou com a objetividade, mas como transformação pela construção do texto -, então já podemos vislumbrar o que nosso esforço teórico deseja revelar: a ironia como um jogo textual que implica a transformação da realidade e do leitor através da encenação de um mundo submetido ao paradoxo e à contradição. O jogo da obra de arte irônica deverá ser compreendido, no entanto, no horizonte da ironia romântica alemã de Friedrich Schlegel. Sua representação como construção de um sentido em constante luta e disputa de elementos e visões contrários submete a visão do leitor, a própria construção do universo narrado e a realidade representada ao jogo de ambigüidades e paradoxos. Levando a cabo as conseqüências destes elementos em diálogo crítico, poderíamos falar ainda da retórica da ficção ou, em termos mais amigáveis, dos papéis do autor e do narrador também transformados pelo jogo
19 Idem, p. 155.
irônico do romance moderno. Antes, porém, passemos por um conceito também relacionado ao universo da ironia: o humor.
Para tanto, é necessário lembrar que a mímese do romance não é a cópia da realidade, mas a re-elaboração do sentido do real no ato de representação pelo jogo da narrativa. O real realizado é confrontado pelo jogo de realização do real na dinâmica representativa do texto. Trata-se não da representação como cópia (Vor-stellung), mas como criação (Dar-stellung) 20 . A representação irônica do romance questiona a realidade ao desvelar, na dinâmica do jogo, um sentido novo, inédito e inaudito do real.
Todo fenômeno literário ou poético tem um caráter ficcional. Nem por isso ele se afasta ou torna independente da realidade vivencial, imediata. Pelo contrário, a realidade ficcional e a realidade vivencial constituem-se no exercício de uma identidade na diferença, qual espelho que reflete refletindo-se. Esta tensão especular de identidade na diferença e de diferença na identidade projeta-se e reflete-se nos elementos funcionais que constituem as duas realidades, através de uma terceira: a realidade discursivo-literária. 21
Quer dizer, a realidade ficcional não é o reflexo da realidade real, estabelecendo-se entre uma e outra um jogo dialético entre representação e transformação ou, em outros termos, entre identidade e diferença. Como a realidade ficcional é um jogo em que o real é transfigurado, o seu sentido está representado na dinâmica da auto-manifestação do jogo da obra. Se seu jogo intensifica e distorce a tensão identidade/diferença, então ele é marcado pela distorção da própria realidade discursiva do texto. Assim é a paródia. A ironia é questionamento (eironeia), pois está nessa dinâmica de representação transformadora. A paródia da motivação realista é a sua linguagem por excelência.
20 Rubens R. T. Filho, em uma passagem da discussão sobre Fichte, elucida a diferença entre Vorstellung e Darstellung: “Fichte tem, desde o começo, uma noção muito clara do paradoxo que haveria em pensar essa exposição (Darstellung) como simples representação (Vorstellung)...” In: FILHO, Rubens Rodrigues Torres. O Espírio e a Letra – A crítica da imaginação pura em Fichte. São Paulo: Ática, 1975, p. 52. 21 CASTRO, Manuel Antônio. O Acontecer Poético. A História Literária. 2 ed. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1982, p. 112.
E é assim que a ironia se aproxima do humor. O humor como
sentimento del contrario 22 , como diz Luigi Pirandello, faz fronteira com a
paródia do real revelada no questionamento irônico. Mas, assim como nem
sempre o humorismo se define pelo riso, mas pela reflexão sobre o que até
então era visto sem ser problematizado, também a ironia nem sempre se
conceitua pelo elemento cômico. Tanto a ironia quanto o humorismo, por sua
natureza paradoxal, reúnem tensionalmente o cômico e o trágico. O que
significa que não se detêm apenas no jogo de aparência que leva ao riso
cômico, mas lançam-se ao desvelamento do sentido que vai além das
aparências, revelando a essência trágica do real.
Ainda em seu texto-ensaio sobre o humorismo, Pirandello, apesar
de afirmar não ser possível defini-lo, dá uma explicação muito límpida sobre o
seu caráter:
Ordinariamente – já disse alhures e aqui me é forçoso repetir – a obra de arte é criada pelo livre movimento da vida interior que organiza as idéias e as imagens em uma forma harmoniosa, na qual todos os elementos correspondem entre si e à idéia-mãe, que as coordena. A reflexão, durante a concepção, assim como durante a execução da obra de arte, não permanece inativa: assiste ao nascer e ao crescer da obra, segue suas fases progressivas e goza com elas, aproxima os vários elementos, coordena-os, compara-os. A consciência não ilumina todo o espírito; notadamente para o artista ela não é um lugar distinto do pensamento, que permita à vontade atingi-la qual a um tesouro de imagens e de idéias. A consciência, em suma, não é uma potência criadora, mas o espelho interior no qual o pensamento se mira; pode-se dizer, antes, que ela é o pensamento que vê a si mesmo, assistindo aquilo que ele faz espontaneamente. E, comumente, no artista, no momento da concepção, a reflexão se esconde e permanece, por assim dizer, invisível: é quase, para o artista, uma forma de sentimento. À medida em que a obra se faz, ela a critica, não friamente como faria um juiz desapaixonado, analisando-a, mas improvisadamente, segundo a impressão que dela recebe. [...] Pois bem, nós veremos que, na concepção de toda obra humorística, a reflexão não se esconde, não permanece
22 PIRANDELLO, Luigi. Essenza, caratteri e matéria dell’umorismo. In:-. L’Umorismo. Milano: Arnaldo Mondadori, 1989,129-168.
invisível, isto é, não permanece quase uma forma de sentimento, quase um espelho no qual o sentimento se mira; mas se lhe põe diante, como um juiz; analisa-o, desligando-se dele; decompõe a sua imagem; desta análise, desta decomposição, porém, surge e emana um outro sentimento: aquele que poderia chamar-se, e que eu de fato chamo o sentimento do contrário. 23
Neste trecho singular de consciência poética – só encontrado em grandes criadores -, ficam claros alguns pontos fundamentais levantados até aqui: há, na obra-de-arte, uma harmonia de idéias e imagens criadas pelo “livre jogo de vida interior” que poderíamos aproximar do livre movimento de jogo da obra apontado por Gadamer. Mas, além disso, há outro elemento central levantado por Pirandello: a consciência que, no processo de concepção e execução, obedece ao ritmo de formação da obra, chegando ao fato de que, no momento da concepção, a reflexão se esconde e “permanece, por assim dizer, invisível”. Esse fato, porém, não se repete na obra humorística, pois nela a reflexão toma um papel central. Para exemplificar essa constatação, Pirandello nos dá um exemplo brilhante, não incluído em nossa citação, mas que se refere a uma imagem, como se uma imagem de um livro, em que ele, o autor, vê uma velha senhora com os cabelos retintos, pintados de um óleo horrível, vestindo roupas juvenis e desajeitadamente maquiada. Se ele ri do que vê é porque adverte que aquela senhora é o contrário do que deveria ser uma velha senhora. Essa advertência do contrário é o cômico. Mas se, além da advertência, a reflexão intervém e comenta, por exemplo, que aquela senhora talvez não tenha nenhum prazer em se vestir daquela maneira papagaiada, mas que só o faz para tentar segurar o seu amor mais jovem, aí então, além da advertência, a reflexão nos faz passar para o sentimento do contrário. Esse é o humor.
Quer dizer, é na reflexão que a distorção da realidade se manifesta como realidade distorcida. Só temos consciência do ridículo do real quando representamos a consciência do ridículo. Essa consciência é a ficção
23 PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo. Tradução e notas de Dion Davi Macedo. São Paulo: Editora Experimento, 1996, pp. 131-132.
que, para representar o real e, mais que o real, seu aspecto estranho, estranha a representação e nos dá, além do ridículo, a consciência do ridículo. O real não é só representado como distorcido, mas também é analisado e explicado em sua distorção. Mais à frente, na parte referente ao conceito de ironia no Romantismo Alemão, veremos como que esse jogo de espelhamento da consciência e da autoconsciência é que compõe a reflexão como ponto central da ironia romântica. É na reflexão, como consciência do jogo entre realidade e aparência, que ironia e humor se aproximam. Esse jogo é que cria o teatro entre reflexão e representação no caso da narrativa, ou entre enunciação e enunciado, conhecido como retórica da ficção.
O sentimento del contrario é, por sua vez, retomado no romance Um, nenhum, cem mil (1926) 24 , onde Pirandello “assinala,[...], a crise da representação convencional da realidade dita objetiva, crise que trouxe no seu bojo a problematização dos tipos no registro ficcional” 25 . A contradição entre os papéis subjetivo e social, as várias máscaras que somos obrigados a vestir e a tensão entre este imperativo e o nosso eu interior também em transformação, é o tema dessa obra magistral, que assinala a ironia dos padrões de comportamento estabelecidos por uma sociedade hipócrita e medíocre.
Continuando, porém, em nossa busca de fenômenos implicados no jogo irônico da narrativa, devemos falar sobre a retórica da ficção, que poderíamos traduzir como a verificação de que, no jogo da ironia, autor e leitor são co-jogados pela estrutura polifônica, transformando-se em papéis dramatizados pelo teatro do texto. Autor e narrador são os outros dois pólos do jogo irônico e é isso que implica a retórica da ficção. Porém, é importante lembrar que assim como o leitor é implícito, também o são o autor e o narrador. No caso do romance machadiano, a perspectiva do autor é o papel cambiante que marca a complexidade e a revolução decisiva de seu universo ficcional. A máscara do autor assume em Machado de Assis a feição multiperspectiva do narrador, do comentarista, do humorista, do moralista, do satirista, criando um
24 PIRANDELLO, L. Um, nenhum e cem mil. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo, Cosac & Naify Edições, 2001, Coleção Prosa do Mundo. 25 Idem, p. 7. Apresentação de Alfredo Bosi.
ritmo de perspectivação tão complexo e multifacetado quanto o sentido que muda de valência às vezes quase que de linha para linha. A ambigüidade e a contradição são próprias desse jogo. Por isso, no ritmo de transe da construção irônica, autor, narrador e leitor são papéis, nunca se atendo a um sentido fechado monologicamente.
Um desses papéis cambiantes e multifacetados é o do autor implícito 26 à narrativa. A figura do autor como comentarista ou diretor de cena é um papel do texto. O autor implícito não é o narrador, mas um papel dramatizado pelo texto. Mesmo narrativas em 1ª pessoa, onde há um diálogo constante entre o narrador e o universo passado de sua existência como personagem, podem apresentar a intromissão do autor implícito. Ele é uma imagem do autor dramatizada e exigida pelo próprio romance. Poderíamos mesmo dizer que ele é a personagem principal do teatro ficcional, através da qual temos acesso ao universo aberto pelo texto. Nas palavras de Wayne C. Booth:
Even the novel in which no narrator is dramatized creates an implicit picture of an author who stands behind the scenes whether as a stage manager, as puppeteer, or as an indifferent God, silently paring his fingernails. This implied author is always distinct from the ‘real man’ – whatever we may take him to be – who creates a superior version of himself, a ‘second self’, as he creates his work. ( Mesmo o romance que não tem um narrador dramatizado cria a imagem implícita de um autor nos bastidores, seja ele diretor de cena, operador de marionetes ou Deus indiferente que lima, silenciosamente, as unhas. Este autor implícito é sempre distinto do ‘homem sério’ – seja o que for que pensemos dele – que cria uma versão superior de si próprio, um alter ego, tal como cria a sua obra.) 27 .
O autor autoconsciente do jogo, criado em consonância com o movimento formativo 28 da obra, é um autor irônico. Em suas várias facetas
26 Conceito chave da teoria da narrativa moderna. O autor implícito é, segundo Wayne C. Booth, um second self, uma máscara que intervém metaficcionalmente na narrativa. O texto de Booth será citado logo adiante. 27 BOOTH, Wayne C.. The Rhetoric of Fiction. Second Edition. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1983, p. 151. 28 O adjetivo formativo é tomado à concepção da obra de arte como formatividade da estética de Luigi Pareyson, correlata à concepção de jogo de Gadamer. Em suma, a formatividade é a concepção do ato criativo como concomitância de execução e invenção, isto é, uma concepção
durante o processo narrativo, dada a maior ou menor distância do mundo ficcional ou dos capítulos metaficcionais, o autor implícito se apresenta em constante metamorfose no romance, aparecendo tanto como um narrador autoconsciente, quanto como um narrador intruso ou ainda como um unreliable narrator (narrador não-confiável) 29 dos eventos do mundo ficcional. De qualquer forma, a representação de vários papéis estabelece um acesso multifacetado ao universo da ficção, o que problematiza e ironiza o processo de compreensão pelo leitor. Entre o narrador e o autor, representados nas várias modulações da voz do autor implícito, ou no silêncio do narrador, que se afasta estrategicamente da narração, estabelecem-se vazios ou fissuras 30 que ativam a imaginação e a ideação do leitor.
Com relação ao diálogo entre os eus criados, autor e leitor implícitos, pode-se dizer que só se efetiva em consonância com a ironia estrutural do texto, a qual produz um diálogo de meias palavras e silêncios verminosos, aletréticos, que se coaduna ao ritmo do jogo de claro e escuro da estrutura sincopada e ambígua do romance. O autor e o leitor implícitos são papéis que realizam e concretizam o sentido irônico do romance porque completam ludicamente esses vazios e têm consciência da finitude da compreensão. A autoconsciência do autor é autoconsciência do sentido irônico. Por isso, sua fala é ambígua e, paradoxalmente, diz mais quando em silêncio. Por outro lado, a realização e concretização do sentido pelo leitor são, tanto quanto lhe faz ver o autor por entre a tessitura do texto, o reconhecimento da finitude de seu conhecimento perante o mundo representado na ficção. Para Booth, esta conexão se passa da seguinte maneira:
fabril e não ideativa – como a tradição estética – em que o autor cria ao executar seu projeto e executa ao criar. 29 Expressão usada por Booth e que grande significação possui no estudo na narrativa de Machado de Assis. Justamente por não se ter em mente a inconfiabilidade do narrador é que muitos leitores e até mesmo críticos são pegos de surpresa e caem em meandros da estrutura irônica da narrativa machadiana. 30 Ainda Wolfgang Iser falando do conceito de vazio estrutural ou estrutura de vazios, como já foi citado anteriormente: “Representam pois as ‘articulações do texto’, pois funcionam como as ‘charneiras mentais’ das perspectivas de representação e assim se mostram como condições para a ligação entre segmentos do texto.”In: COSTA LIMA, L. Op. Cit., p. 106.
The author creates, in short, an image of himself and another image of his reader; he makes his reader, as he makes his second self, and the most successful reading is one in which the created selves, author and reader, can find complete agreement. (O autor cria, em suma, uma imagem de si e outra imagem de seu leitor; ele constrói seu leitor, assim como constrói seu alter ego, e a leitura mais bem sucedida é aquela na qual os eus criados, autor e leitor, podem encontrar completa concordância) 31 .
Por outro lado, a máscara do autor implícito cria uma outra máscara, a do narrador, para tornar ainda mais complexo o jogo. Trata-se aqui da construção da situação narrativa. No nosso universo de trabalho, a obra de Machado de Assis, duas situações narrativas se apresentam basicamente: o romance narrado em terceira pessoa e o romance narrado em primeira pessoa. Porém não basta a percepção gramatical da estrutura narrativa, é necessário que se observe também sua fenomenologia, isto é, o sentido de sua estruturação de tal ou qual maneira. Conseguiremos essa abordagem a partir do estudo da tipologia do narrador verificado pelo teórico da narrativa austríaco Franz Stanzel 32 .
Stanzel elucida a fenomenologia do narrador ao revelar que, em verdade, o narrador de 3ª pessoa aparece em um tipo específico de narrativa chamada autoral, onde dialogicamente 33 o autor se desdobra em comentarista do romance e em narrador. O plano do autor comentarista é aquele desdobramento chamado anteriormente por Booth de autor implícito. Esse autor comentarista está fora do universo ficcional, realiza um papel metaficcional, podendo disfarçar-se, às vezes, de cronista a quem foi contada a estória e, assim, fazendo a ponte com o mundo ficcional. A distinção dos dois campos de realidade, a ficcional e a metaficcional, garante ao narrador o papel dialógico de narrador autoral que tem uma posição de superioridade ou
31 BOOTH, Wayne C.. Op. Cit., p. 138. 32 STANZEL, Franz. Narrative Situations in the Novel (Tom Jones, Moby Dick, The Embassadors, Ulysses). Translated by James P. Pusack. Bloomington: Indiana University Press, 1971. 33 O termo dialógico vem de dialogismo da teoria de Mikhail Bakhtin e tem sentido diverso do da dialética formal por suportar harmonicamente os contrários sem subssumir um termo ao outroda questão. É uma dialética material.
distanciamento sobre os personagens. Nesse distanciamento se cria a ilusão da narrativa e aí está inserido o problema da ironia.
O maior ou menor distanciamento entre o narrador autoral e o universo ficcional estabelece um papel muito próximo ao de um personagem, levando-o a uma situação análoga à de 1ª pessoa, na qual o narrador sempre aparece como um personagem do mundo ficcional, porém temporalmente distanciado. Esse traço é fundamental, o tempo. A relação do narrador autoral com o universo ficcional é de posterioridade, vindo geralmente indicada na conclusão da narrativa, quando o tempo da ficção se encontra com o tempo da narração. Nesse momento privilegiado, a apresentação passada do tempo pelo narrador é suspensa e ele passa a contar no presente da enunciação que é o futuro do enunciado. A distância que implica essa ambigüidade lhe dá o privilégio metaficcional do controle sobre o que o leitor vai ou não ver, vai ou não saber. Enfim, nesse jogo e nesse lapso ficcional se dá o vazio da narrativa, esse vazio gera os comentários metaficcionais e requer a reflexão do leitor que leva à ironia.
No caso da narrativa de 1ª pessoa, o tempo é também fundamental. O tempo do narrador implica diferença existencial em relação ao personagem, que é o narrador mesmo em outro momento de sua vida, quando ainda não via o que vê agora. Há, portanto, uma diferença de avaliação e de interpretação entre os dois eus – narrador e narrado. O narrador ou o eu de agora, sujeito da enunciação, distingue-se temporal-existencialmente do personagem ou eu de outrora, sendo os dois a mesma pessoa. Nas palavras de Stanzel, as condições para a narrativa de 1ª pessoa são:
1. The narrating self is identical in persona with the experiencing self;
2 . The narrating self in the act of narration stands in a relationship of posteriority to the experiencing self and to the action; the narrative distance is designated in the narrative;
3. If the narrative distance is greater than the duration of the narrative matter, then the narrating self regards the action as completed; the narrating self then has the privilege of foreknowing all the action to be narrated; for this reason the narrating self can rise to panoramalike surveys; he can give glimpses of partial resolutions or reveal the ending;
4. the narrating self distinguishes itself from the experiencing self by greater insight and maturity, by a tendency to retrospection and reflection, and often by a completely different way of life; between the experiencing self’s experience of an event and the narrative re-creation of the same event at the hands of the narrating self there are therefore differences of valuation and interpretation which become visible in the structure of meaning of the novel.
(1. o eu-narrador é idêntico em persona ao eu da experiência;
1. o eu-narrador permanece no ato da narração em relação de posterioridade ao eu da experiência e em relação à ação;
2. se a distância narrativa é maior do que a duração da matéria da narrativa, então o eu-narrador considera a ação como completa; o eu-narrador tem então o privilégio de saber antes de toda a ação a ser narrada; por essa razão o eu-narrador pode elevar-se a uma forma de visão panorâmica; ele pode dar olhadas parciais na resolução ou revelar o fim;
3. o eu-narrador distingue-se do eu da experiência pelo maior insight e maturidade, por uma tendência à retrospecção e reflexão e, freqüentemente, por um meio completamente diferente de existência; entre a experiência de um evento do eu da experiência e a recriação narrativa do mesmo evento nas mãos do eu-narrador há, no entanto, diferenças de avaliação e interpretação que se tornam visíveis na estrutura de sentido do romance.) 34 .
Em suma, apesar do eu-narrador e o eu personagem (eu da
experiência) serem a mesma pessoa, encontram-se em momentos diferentes e
a distância temporal implica uma mudança de visão de mundo que cria a
contradição entre narrador e personagem. O eu-narrador narra ironizando a
sua existência e, por isso, como o tempo implica mudanças, ele as marca na
narrativa tanto através da divergência mais declarada quanto através do
silêncio que corrói sua consciência e sua insciência do que era ou é. A
incongruência de visões gera os vazios e gera também, no caso da narrativa
34 STANZEL, F.. Op. Cit., pp. 70-71.
autoral, o comentário metaficcional que revela a consciência irônica de que a
realidade é ficção e de que, por isso, o sentido está em construção.
A luta entre autor e narrador ou entre narrador e personagem,
entre enunciação e enunciado, revela a ironia em dois planos: no plano da
enunciação como consciência metaficcional sobre o ato de narrar e, no plano
do enunciado, como consciência trágica da insuficiência da existência e de seu
sentido, gerando, tanto num quanto noutro plano, o conúbio entre os vazios ou
silêncios que o leitor deverá ouvir e as contradições geradas por esse mesmos
vazios.
A contradição em harmonia ou a reversibilidade dos contrários 35
revela o mecanismo estrutural da ironia. Nas palavras de Beda Allemann:
...da un lato, ciò che é detto, espresso, formulato, ciò che comunque, nell’opera d’arte, sembra fare ironicamente dei salti da scimmia; dall’altro, ciò che è inesprimibile e rimane oscuro sullo sfondo, ma costituisce il terreno dove affondano le radici dell linguaggio. Solo dalla tensione esistente fra ciò che é stato espresso col darvi una forma definita, e ciò che cè d’oscuro nella profondità primigenia da cui esso deriva, può trarre il linguaggio poético la ricchezza ed il ritmo che gli sono propri e che lo distinguono cosí nettamente della lingua usata come puro veicolo di comunicazione o d’espressione. (...de um lado, o que é dito, expresso, formulado, o que de qualquer maneira na obra de arte parece saltar ironicamente como macaco; do outro,
o que é inexprimível e permanece obscuro sob o fundo, mas que constitui o terreno onde se afundam as raízes da linguagem. Somente da tensão existente entre o que é expresso de uma forma definida e o que há de obscuro na profundidade primigênia de onde deriva pode trazer à linguagem poética a riqueza e o ritmo que lhe são próprios e que a distinguem tão claramente da língua usada como puro veículo de comunicação ou de expressão.) 36
A harmonia tensional do dito e do não-dito é o que se revela no
jogo irônico da linguagem do romance. Em suma, Allemann nos apresenta o
conceito de ironia estrutural, conceito que se centra sobre a própria construção
ou estrutura formativa da obra. A esse jogo irônico que tensiona a palavra e o
35 Princípio da crítica de Ronaldes de Melo e Souza que será apresentado no próximo capítulo. 36 ALLEMANN, Beda . Ironia e Poesia. Milano, Mursia, 1971, p. 185.
silêncio, a esse jogo claro-escuro de vozes que fundam uma retórica truncada de ditos e entreditos, de palavras e meias-palavras, chamamos, -fazendo referência ao capítulo XVII de Dom Casmurro, Os Vermes (capítulo metaficcional) -de a letra e os vermes, pois, assim como no texto casmurro, “esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído” 37 , também nós como leitores ruminantes queremos roer o roído. Trata-se, portanto, de interpretar a ironia do romance machadiano como o jogo dos contrários complementares e não excludentes que se atualiza na estrutura narrativa através das ambigüidades e paradoxos implícitos nos silêncios e nas dobras da letra e do texto. Isso implica que compreender os silêncios verminosos de sua obra é conviver com as dissonâncias e reversibilidades que exigem do leitor e do crítico uma visão de mundo complexa que não exclua a contradição e o paradoxo. Para realizarmos esse casamento crítico entre a estrutura irônica e o sentido paradoxal do mundo através da ironia, deveremos passar pelo seu conceito no Romantismo Alemão. A ironia que se realiza na obra de Machado de Assis é a ironia romântica.
Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. (João Guimarães Rosa).
O conceito de ironia no Romantismo Alemão é um capítulo à parte na história da ironia, uma vez que pertence a um contexto mais amplo, um outro capítulo excepcional, porém na história da filosofia: o Idealismo Alemão. A ironia no Romantismo Alemão é a ironia no pensamento de Friedrich Schlegel. A especificidade da ironia de Schlegel é o paradoxo radical, isto é, a ironia é a harmonia tensional de duas visões antitéticas que não chegam a uma síntese. A ironia de Schlegel não é, por sua vez, a ironia 37ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: -. Obra Completa. Vol 1. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1992, p. 827.
socrática, não é a ironia de Kierkegaard, é a ironia trágica que põe em xeque ante litteram o idealismo hegeliano e nos mostra o fundo do abismo que será posteriormente tema do pensamento de Nietzsche e dos poetas modernos.
Sob o ponto-de-vista estético-filosófico, a ironia romântica é a novidade contundente que funda o aspecto mais radical da modernidade: o casamento indissolúvel entre imaginação e reflexão. Casamento singular também ocorrido na filosofia desde a Doutrina-da-Ciência de Fichte, solo a partir do qual se desenvolve a filosofia de Schlegel. Portanto, a teoria romântica da arte e da ironia é consubstancial à invenção de uma nova filosofia pelo Idealismo Alemão, se é que podemos chamar ao pensamento da escola de Jena de filosofia, uma vez que carece da sistematicidade dos sistemas filosóficos tradicionais, mas nem por isso deixando de lado a sistematicidade. Elucidar o complexo quadro desse paradoxo é tarefa difícil como nos esclarece Rubens Rodrigues Torres Filho no ensaio de abertura dos fragmentos de Novalis:
O avesso é adverso. As esplêndidas construções sistemáticas que a tradição filosófica nos legou sob o título de “idealismo alemão” (Fichte, Schelling, Hegel) edificam-se sobre um solo de crise – a metafísica minada pela crítica da razão (Kant) – e erguem sua travação conceitual como que a esconjurá-la. Do que se pensou no reverso desses sistemas, no epicentro dessa crise, os escritos do primeiro romantismo (Novalis, Tieck, os irmãos Schlegel) dão alguma medida, e não é de admirar que, já na forma, se apresentem como fragmentários. 38
Em sua obra capital, a Doutrina-da-Ciência 39 , Johan Gottlieb Fichte funda um sistema filosófico que abdica de todo o edifício da metafísica ocidental ao afirmar a imaginação – e não mais a razão – como o solo da ontologia. A razão só se realiza enquanto força implementadora da imaginação. Toda ontologia é uma epistemologia na medida em que revela a força formadora como uma capacidade auto-reflexiva da consciência. O conhecimento é, nessa ciência auto-reflexiva, a revelação concomitante do
38 NOVALIS, Friedrich von Hardenberg. Pólen. Tradução, apresentação e notas Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001, p. 11. 39 FICHTE, J. G. A Doutrina-da-Ciência de 1794 e Outros Escritos. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Abril, 1980. (Coleção Os Pensadores).
saber e do não-saber, a reunião de consciência e inconsciência do eu que se funda no ato genesíaco da reflexão. Para Fichte, todo ato da consciência se funda num ato reflexivo de autoconsciência. A autoconsciência tende, na reflexão, ao infinito ou à transcendência. Se todo saber é, transcendentalmente, inesgotável como a consciência e a imaginação que o instauram, todo saber é também e “apenas” uma intuição, uma intuição intelectual (Intellektuelen Anschauung). A intuição intelectual dispõe harmonicamente co-jogados o saber e o não-saber, pois o eu que sabe nunca se esgota na consciência do eu sabido por ser congenialmente imanente e diferente do seu próprio saber. O eu que se pensa na autoconsciência da imaginação não se esgota no eu-pensado e é constantemente diferente de si mesmo. O drama do saber é o diferir-se incessantemente do sabido, num processo que tende a uma circularidade infinita. Finito e infinito se complementam no transfinito da consciência. Concriativamente ao drama do saber da reflexão romântica de Fichte, o poeta moderno enuncia:
Chegado aqui, onde hoje estou, conheço Que sou diverso no que informe estou. No meu próprio caminho me atravesso. Não conheço quem fui no que hoje sou. 40
O perigo ao se empreender a compreensão de pensamento fundamentado na polêmica é o de se querer reduzi-lo à contradição lógica ou à contraposição dialética. Não infenso a esses dois remédios racionalistas, o pensamento de Fichte é original e originário por ser congenial ao pensamento poético, único não contaminado pelo dogmatismo da filosofia ocidental e, por esse mesmo motivo, sempre reduzido ao estranho, ao anormal, ao irracional. O paradoxo em que se funda o pensamento de Fichte é radicalmente diverso da dialética hegeliana e de sua tendência à síntese, que não deixa de ser uma lógica. A indisponibilidade ao jogo de contrários como uma harmonia palindrômica é própria de um filosofar que se fundamenta na razão e não na imaginação. Fichte fala a linguagem original do conúbio entre a força formativa
40 PESSOA, Fernando. Cancioneiro. In:_. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 93.
da razão e a potência caótica da imaginação; fala a linguagem do filosofar que se poetiza para produzir ciência. A imaginação (Einbildungskraft) se atualiza como força formadora ou forma formante, revelando assim seu poder de produtividade (Bildungskraft) ou capacidade de construção.
A nova epistemologia proposta por Fichte, centrada na imaginação, estabelece como tarefa paradoxal pensar a contingência de maneira absoluta – um idealismo absoluto. Por isso ela tem que reunir os opostos em um todo cuja radicalidade é a autonomia e a liberdade de pensar de maneira sistemática o assistemático; a morte, por exemplo. A finitude do infinito na infinitude do finito é o paradoxo da doutrina-da-ciência. O jogo de contrários está na base do idealismo absoluto ou transcendental de Fichte, uma vez que deseja realizar, pôr no mundo, o ideal, o que não deixa de ser uma idealização do real. Poderíamos relacionar aqui esse filosofar com a tarefa do poeta que, ao imaginar, funda uma cosmogonia, ou que, na linguagem de Luigi Pareyson, executa inventando e inventa executando, não priorizando uma atitude ou outra, mas realizando-as concomitantemente. Filosofia e poesia são tarefas do gênio (Kraftsmensch), do homem com skill, do habilidoso, do inventor. A filosofia é crítica e não metafísica, pois se inventa e reinventa na capacidade de julgar e imaginar e não de se adequar ao pensado. Aqui está uma diferença fundamental do pensamento de Fichte em relação à tradição, diferença que ele irá buscar na crítica kantiana. Apesar de sua obra se chamar Doutrina-da-Ciência, o pensamento de Fichte, como todo pensamento póskantiano não é uma doutrina, mas uma crítica, no sentido em que não se baseia em regras pré-doadas. Além disso, e aqui está a diferença decisiva da crítica em relação à doutrina, cabe à crítica submeter dogmas e opiniões ao pensamento livre e esclarecido, é o sapere aude kantiano. Kant vai ainda mais longe ao chamar sua Crítica da Razão de investigação transcendental. A crítica é uma verdadeira revisão do discurso filosófico, exigindo por isso um novo leitor, capaz de desenvolver o conhecimento através do uso livre da razão e não da erudição.
Numa filosofia crítica, portanto, o devir nunca já está pensado, também já não está dado (Vorstellung), mas é sempre uma doação e uma exposição da originalidade do evento (Darstellung), é uma facticidade (Tathandlung) e não um fato (Tatsache). A doutrina-da-ciência é a auto-exposição da doutrina-da-ciência, é uma ciência da ciência, pois assume o risco de pensar seu sistema assistematicamente, na medida em que o alcance de sua sistematicidade é a própria inventividade do sistema que se pensa ao pensar. A dobra da atividade do pensar sobre si mesma transcende o pensar habitual e funda uma imaginação transcendental, cuja ciência do uno se dispersa na multiplicidade da insciência do diverso e contingente. Imaginação transcendental e intuição intelectual se implicam mutuamente nesse sentido. Como nos explica Rubens Rodrigues Torres Filho:
Ora, o ponto de descontinuidade, a cesura na exposição, o momento em que ela passa de uma linguagem a outra, a transição em que se instaura, pelo abandono do nível propedêutico, o nível propriamente transcendental, é sempre marcado por aquilo que Fichte chamou em 1794 de imaginação criadora: oscilação entre os opostos absolutos, inconsistência intransponível do raciocínio que, precisamente como tal, adquire consistência – e uma consistência, por assim dizer, instantânea – momento que não aparece à consciência natural e nem sequer à consciência como tal, mas cuja verdade transcendental se prova por si mesma. A partir desse momento
o filósofo não intervém mais como filósofo na marcha da dedução, a reflexão filosófica deixa de existir como atividade autônoma para dar lugar à auto-reflexividade do saber, a doutrina-da-ciência se torna propriamente aquilo que é: ciência da ciência, ciência de si mesma, filosofia da filosofia 41 .
É importante frisar a diferença da doutrina-da-ciência em relação a um pensamento metafísico. A doutrina se apresenta como crítica. A crítica parece ser uma metalinguagem do discurso filosófico, isto é, é um discurso de um ponto-de-vista superior, um filosofar sobre o próprio filosofar:
41 FILHO, Rubens Rodrigues Torres. O espírito e a letra (A Crítica da Imaginação Pura, em Fichte). São Paulo: Editora Ática, 1975, p. 18.
A crítica não é a própria metafísica, mas está acima dela; está para a metafísica precisamente como esta está para o ponto-de-vista habitual do entendimento natural 42 .
Anterior ao pensamento de Fichte está a Crítica como filosofia transcendental em Immanuel Kant. Kant marcará, mesmo que paradoxalmente, uma vez que a tradição criticada não lhe é impertinente, o fim da metafísica e o início de uma filosofia que se pergunta pelas próprias condições do pensar ao pôr-se de fora do método do pensar da tradição filosófica metafísica. Este feito será apreendido por um dos fragmentos de Schlegel:
Kant descobriu o fim da metafísica – nas três idéias, Deus, liberdade, imortalidade -, mas Fichte o início, não, porém, no eu e no não-eu, mas na liberdade interna da reflexão. 43
Fichte terá que considerar, na linguagem da filosofia transcendental inaugurada por Kant, a anterioridade da reflexão ao pensamento objetivo. A novidade de Fichte é que ele eleva a consciência representada no eu penso da reflexão kantiana a uma consciência absoluta ou a um Eu absoluto. A absolutização ou transcendentalização da consciência é a criação da autoconsciência na reflexão, este será o feito maior da doutrina-daciência, ou, numa linguagem técnica da crítica, a unidade originariamente sintética da apercepção apresentada por Kant na dedução das categorias (parágrafos 16 e 17 da Kritik der Reinen Vernunft) é elevada à condição de absoluto.
O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações, se assim não fosse, algo se representaria em mim, que não poderia, de modo algum, ser pensado, que o mesmo é dizer, que a representação ou seria impossível ou pelo menos nada seria para mim. A representação que pode ser dada antes de qualquer pensamento chama-se intuição. Portanto, todo o diverso da intuição possui uma relação
42 FICHTE, Johan Gottlieb. Begriff – Über den Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogenannten Philosophie, 1794, (SW, I). Em português: Sobre o conceito da Doutrina-da-Ciência ou da assim chamada filosofia. (Coleção “Os Pensadores”). Apud: FILHO, Rubens Rodrigues Torres. Op. Cit., p. 27. 43 SCHLEGEL, Friedrich. Philosophisches Lehrjahre, IV, 1019. Apud: SUZUKI, Márcio. O Gênio Romântico (Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel). São Paulo: FAPESP/Iluminuras, 1998, p. 16.
necessária ao eu penso, no mesmo sujeito em que esse diverso se encontra. Esta representação, porém, é um ato da espontaneidade, isto é, não pode considerar-se pertencente à sensibilidade. Dou-lhe o nome de apercepção pura, para a distinguir da empírica ou ainda o de apercepção originária, porque é aquela autoconsciência que, ao produzir a representação eu penso, que tem de poder acompanhar todas as outras, e que é una e idêntica em toda a consciência, não pode ser acompanhada por nenhuma outra. Também chamo à unidade dessa representação a unidade transcendental da autoconsciência, para designar a possibilidade do conhecimento a priori a partir dela. Porque as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência; quer dizer, enquanto representações minhas (embora me não aperceba delas enquanto tais), têm de ser necessariamente conformes com a única condição pela qual se podem encontrar reunidas numa autoconsciência geral, pois não sendo assim, não me pertenceriam inteiramente. Desta ligação originária se podem extrair muitas conseqüências 44 .
A possibilidade do conhecimento é dependente da intuição como
anterior ao pensamento ou à razão. A intuição faz parte da autoconsciência
como o pensar do pensar, ou a unidade transcendental e sintética da
consciência que dá unidade à diversidade de representações dadas. A unidade
analítica da apercepção implica uma consciência anterior à consciência, a
autoconsciência, que, não sendo totalmente racional, é intuitiva. Fichte vai
“ultrapassar” Kant justamente ao dar à autoconsciência do eu da reflexão a
categoria de Eu absoluto. Fichte “ultrapassa” Kant através de Kant. Na
verdade, a Doutrina-da-Ciência é uma interpretação sui generis da Crítica de
Kant, na medida em que põe o eu penso como condição de toda atividade da
consciência e não do conhecimento objetivo, isto é, conhecer é desdobrar-se
no eu sabido e no eu sabente, se assim podemos nos expressar. Note-se que,
diferentemente do cogito cartesiano, o eu penso kantiano é condição da
consciência na medida em que é autoconsciência. Kant aponta esse fato como
44 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 4 ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Caloute Gulbenkian, 1997, pp. 131-132.
condição da apercepção, mas Fichte o estabelece como princípio e posição originária de todo pensamento.
É justamente este o princípio que detona a grandiosidade do pensamento de Fichte e sua importância para os primeiros românticos. Não que estes e o filósofo da Doutrina-da-Ciência tenham sempre concordado, pois a avaliação que Schlegel e Novalis fizeram da teoria fichtiana é muito mais teórica do que desejara o seu próprio autor, mas foi justamente a audácia de estabelecer a reflexão como princípio absoluto da consciência que interessou sobremaneira os primeiros românticos. A grande diferença entre as duas posturas está na ênfase dada pelos românticos à infinitude do processo reflexivo e, por Fichte, à tentativa de controlar essa infinitude e levá-la para o campo pragmático.
Para Fichte, o pôr ou pôr-se da ação incondicionada do Eu-absoluto é mais importante do que a reflexão em si, pois já a ação seria uma reflexão em si. Na cadeia de representação infinita da reflexão fichtiana 45 , a reflexão deve levar ao momento em que a representação coincide com o representante, havendo, assim, “uma duplicação interna no Eu” 46 . Quando isso ocorre, porém, há uma cessação da infinitude da cadeia reflexiva, pois, se assim não fosse, seria impossível nos determos diante da infinitude do Eu. Como elucida Walter Benjamin, ainda em estudo sobre o conceito de crítica de arte no Romantismo Alemão, citando novamente as palavras de Fichte num trabalho fragmentário de 1797 (Tentativa de uma nova exposição da doutrina-da-ciência):
45 Walter Benjamin explica esse círculo infinito do idealismo de Fichte citando um trecho de sua Doutrina-da-ciência: “Segundo Fichte, o Eu vê como sua essência uma duplicação infinita que está no pôr. Isto se passa da seguinte maneira: o Eu põe-se (A), contrapõe-se na imaginação um Não-Eu (B). A ‘razão intervém [...] e a determina a escolher B no A determinado (no sujeito); mas então o A, posto como determinado, tem de ser mais uma vez delimitado por um B infinito, com o qual a imaginação procede exatamente como acima; e assim prossegue até a delimitação completa da razão (aqui teórica) por si mesma, quando não é mais preciso na imaginação nenhum B delimitante fora da razão, isto é, até a representação do representante. No terreno prático, a razão prossegue ao infinito, até a idéia pura e simplesmente indeterminável da suprema unidade, que só seria possível depois de uma infinitude perfeita, que é por si impossível’ “. In: BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Tradução, introdução e notas Márcio Seligman-Silva. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999, p. 33.46 Idem, p. 34.
Tu tens consciência de ti mesmo, dizes; logo distingues necessariamente teu Eu-pensante do Eu-pensado no pensamento do Eu. Mas, para que possas fazê-lo, o pensante, nesse pensar, tem de ser, por sua vez, objeto de um pensar superior, para poder ser objeto da consciência; com isso, obténs, ao mesmo tempo, um novo sujeito, que deve novamente ter consciência daquilo que antes era o estarconsciente-de-si. E aqui argumento mais uma vez como antes; e depois de termos principiado a inferir segundo essa lei, não podes mais indicar nenhum lugar onde devêssemos nos deter; logo, para cada consciência, precisamos de uma nova consciência, cujo objeto é a primeira, e assim ao infinito; logo, jamais chegaremos a poder admitir uma consciência efetiva 47 .
Para Fichte, a reflexão infinita é um risco da atividade reflexiva. Portanto, para que não caiamos num círculo infinito e assim desmobilizemos a efetividade da consciência, Fichte nos propõe uma atitude do espírito em que a consciência já esteja dada imediatamente sem cair na reflexão infinita. Essa atitude é a do pensar. A reflexão tem, portanto, um paradoxo: sua imediatez e sua infinitude. Para domá-lo, em função de uma ação prática, Fichte recorre ao pensar como estar-consciente-de-si, quando sujeito e objeto (eu pensante e eu pensado) coincidem. A consciência imediata do pensar é a intuição.
Portanto, mesmo para Fichte o paradoxo da reflexão infinita se torna, em dado momento, indesejável. Isto não é o mesmo para Schlegel e para Novalis. Para eles, o paradoxo é o próprio infinito, ele é que é o bom do pensar, pois revela a harmonia indissolúvel de finito e infinito na reflexão, a harmonia palindrômica dos contrários. Assim se configuram as convergências e divergências entre os românticos e Fichte. Para este, consciência é “Eu”; para aqueles, é “si-mesmo” (reflexão). A reflexão é, em Fichte, um médium-reflexivo para o Eu absoluto; nos românticos, é fim em si mesma e, por isso, é paradoxalmente infinita. Nas palavras de Benjamin:
Enquanto Fichte pensa poder transferir a reflexão para a posição-originária, para o ser-originário, suprime-se para os românticos aquela determinação ontológica singular localizada na posição. O pensamento romântico supera ser e posição na reflexão. Os românticos partem do simples pensar a si mesmo
47 Ibidem, pp. 34-35.
como fenômeno; o que é apropriado para tudo, pois tudo é si-mesmo. Para Fichte, um si-mesmo cabe apenas ao Eu, isto é, uma reflexão existe apenas e unicamente correlata a uma posição. 48
A reflexão é o elemento principal do pensamento de Schlegel 49 .
Contrapondo-se a Fichte, Schlegel não quer domar a reflexão e, por isso, ataca
a intuição intelectual como a imediatez do pensar que objetiva o sentido ou o
objeto. É o que Benjamin chama de o primeiro grau da reflexão, o pensar o
sentido, “o simples pensar com o algo pensado que lhe é correlato constitui a
matéria da reflexão” 50 . Para Schlegel, a reflexão propriamente dita só nasce ao
se pensar esse pensar; a isso Benjamin chama de segundo grau da reflexão.O
pensar do pensar é a reflexão enquanto imediatez da reflexão, é um
pensamento epistemologicamente ambíguo e paradoxal. É o
autoconhecimento do próprio pensar: “O sentido que vê a si mesmo torna-se
espírito” 51 .
O pensar do pensar, por sua vez, aponta, como reflexão, para o
pensar do pensar do pensar ou para o terceiro grau da reflexão. E aqui se
configura a diferença decisiva entre Fichte e Schlegel: para Fichte a
consciência tem de ser intuída como reflexão que leva ao Eu absoluto; para
Schlegel, a consciência é o estar-aí ou a presença do paradoxo, um “sistema”
48 Ibidem, p. 38. 49 Segundo Benjamin: “O pensamento na autoconsciência refletindo a si mesmo é o fato fundamental do qual partem as considerações gnosiológicas de Friedrich Schlegel e, em grande parte, também as de Novalis.” In: Ibidem, p. 29. 50 Ibidem, p. 37. 51 SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução, apresentação e notas Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997, p. 112 (Biblioteca Pólen). O fragmento completo (se é que é possível!) diz: “Sentido que se vê a si próprio se torna espírito; espírito é sociabilidade interna, alma é amabilidade oculta. Mas o ânimo é a verdadeira força vital da beleza e da perfeição e acabamento interno. Pode-se ter algo de espírito sem alma; e muita alma em pouco ânimo. Mas assim que aprende a falar, esse instinto de grandeza moral que chamamos ânimo tem espírito. Assim se agita e ama, é completamente alma; e, quando amadurece, tem sentido para tudo. Espírito é como uma música de pensamentos; onde há alma, aí também os sentimentos têm contorno e figura, nobre proporção e atraente colorido.Ânimo é a poesia da razão sublime e, pela unificação com filosofia e experiência moral, dele surge a arte inefável que capta a vida confusa, fugaz, e a forma para a unidade eterna.”(Athenäum, 339).
de pensamento em que a lógica da reflexão de primeiro grau não tem
prioridade, apenas o pensar do pensar (do pensar) como desdobramento da
consciência do eu pensante sobre o eu pensado e novamente sobre si mesmo.
Assim nasce a filosofia cíclica 52 de Schlegel, sistematicamente assistemática,
fragmentária: a filosofia não é fim, é meio, o médium-de-reflexão. Filosofar é
um ato mediativo, começa pelo meio, não havendo síntese (sem fim), apenas o
embate dos contrários que deixam de ser contraditórios e se tornam
complementares.
Na base da filosofia deve repousar não só uma prova alternante, mas também um conceito alternante. Pode-se a cada conceito e a cada prova perguntar novamente por um conceito e sua prova. Daí a filosofia ter de começar, como a poesia épica, pelo meio, e é impossível recitá-la e contar parte por parte de modo que a primeira parte fique completamente fundamentada e clara para si. Ela é um todo, e o caminho para conhecê-la não é, portanto, uma linha reta, mas um círculo. O todo da ciência fundamental deve ser derivado de duas idéias, proposições, conceitos [...], sem recurso a outra matéria. 53
O caráter alternante do conceito em filosofia é a afirmação da contingência dos modelos metafísicos tradicionais. O fragmento é a expressão mais acabada do filosofar crítico, pois traz implícito à sua incompletude, a completude; à sua finitude, o infinito. Sua leitura é espiralada, labiríntica, não obedece a um modelo previamente determinado – uma espécie de cosmogonia caótica. Imitar e repetir não fazem parte das possibilidades do fragmento, que se engendra e re-engendra na busca do impossível, a realização do absoluto que, justamente por sua impossibilidade, preconiza a própria finitude do ideal num idealismo categoricamente liberal, reflexivamente inconsciente, que idealiza o real na medida das possibilidades geniais do poeta que realiza o ideal. A sintaxe do fragmento obedece a esse ritmo alternante entre o mostrar e o esconder. O sentido não está completamente exposto no fragmento, mas
52 Citação de Benjamin do termo usado pelo próprio Schlegel para se referir ao seu pensamento. Op. Cit., p. 51. 53 Idem. Benjamin arremata, na mesma página, a idéia de uma filosofia cíclica, com a seguinte colocação: “A filosofia começa pelo meio; significa que ele não identifica nenhum de seus objetos com a reflexão originária, mas vê neles um meio termo no médium.”
está ali (Darstellen), pedindo para ser revelado pelo leitor crítico. A totalidade do todo não está toda apresentada – mesmo porque a forma fragmentária já marca a impossibilidade da totalidade total ou do uno único unificante da tradição metafísica -, mas está implícita na parcialidade da parte, criando-se o círculo hermenêutico da filosofia crítica. O expor do Darstellung do fragmento nunca se esquece do Dasein. Expor é revelar no fragmentário as possibilidades engendrativas do que não foi dito; o verdadeiro não se apresenta no início nem no fim, mas bem no meio do caminho. A exposição do sentido entre-dito é a revelação do inédito e do inaudito. Nesse processo o ponto de descontinuidade, o nível propriamente transcendental, é a imaginação criadora, a liberdade do espírito, a singularidade do universal na formação orgânica do individual (Bildung). Um fragmento resume a hermenêutica dos fragmentos: “Letra é espírito fixado. Ler significa libertar o espírito estabilizado, portanto uma ação mágica.” 54
O princípio da alternância ou determinação recíproca dos contrários é o princípio originário da filosofia cíclica dos fragmentos. Este princípio pode ser observado no fragmento número 434 da revista Athenäum: “Deve então a poesia ser pura e simplesmente dividida? Ou permanecer una e indivisível? Ou alternar entre separação e vínculo?” 55 Ou em variações que apontam para a oscilação entre os opostos absolutos, para o paradoxo, para a harmonia palindrômica. A alternância deseja fazer a complementaridade dos contrários que a tradição filosófica desuniu. Para tanto, Schlegel inventou, calcado na liberalidade da filosofia de Fichte, o verbo romantizar (romantizieren), que Novalis traduziu com a invenção fichtizar (fichtizieren).
54 SCHLEGEL, Friedrich. Philosophisches Lehrjahre (Anos de Aprendizado Filosófico, IV, 1229). Apud: SUZUKI, Márcio. Op. Cit., p. 203. 55 SCHLEGEL, Friedrich. Op. Cit., p. 139. A íntegra (?!) do fragmento 434 é: “ Deve então a poesia ser pura e simplesmente dividida? Ou permanecer una e indivisível? Ou alternar entre separação e vínculo? A maioria dos sistemas de representação do sistema cósmico da poesia ainda é tão grosseira e pueril quanto os antigos modos de representação do sistema astronômico antes de Copérnico. As divisões habituais da poesia são apenas armação sem vida para um horizonte limitado. O que quer que alguém possa fazer ou que quer que se aceite, a terra em repouso permanece no centro. No próprio universo da poesia, porém, nada está em repouso, tudo vem a ser, se transforma e move harmonicamente; e também os cometas têm leis inalteráveis de movimento. Mas enquanto a trajetória desses astros não puder ser calculada, enquanto o retorno deles não puder ser previsto, o verdadeiro sistema cósmico da poesia ainda não estará descoberto.”
Fichtizar e romantizar revelam a vocação construtiva e imaginativa do espírito transcendental do romantismo, a reunião do espírito e da sensibilidade, da razão e da emoção, do ideal e do real, da filosofia e da vida. Significam potencializar a imaginação criadora ao último grau da razão formativa. Não há criação sem liberdade, mas a liberdade implica a criação de uma nova ordem ou razão. Criação implica reflexão: tornar sensível o espírito e espiritualizar o sensível.
Nessa senda, o fragmento é a revelação do paradoxo entre o espírito e a letra, entre a totalidade do todo e a parcialidade da parte, transfigurada na totalidade parcial da parte que reverbera o todo (círculo hermenêutico). Schlegel assim o explica, também em um fragmento: “Um fragmento tem de ser igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho.” 56 O que desencadeou a resposta irônica de Novalis: “O porco-espinho – um ideal.” 57 Aqui se revela outro aspecto importante do filosofar cíclico dos fragmentos: a sinfilosofia ou a filosofia em simpósio entre os vários autores e espíritos criativos do romantismo alemão, filosofia que culmina na coletânea Pólen, publicada em 1798 na revista Athenäum (de August Wilhelm e Friedrich Schlegel). Essa coletânea apresenta os fragmentos de Friedrich von Hardenberg/Novalis sobre os fragmentos de Friedrich Schlegel.
Retomando, porém, o princípio da alternância ou determinação recíproca dos contrários como o princípio formativo dos fragmentos e considerando-se que os fragmentos são “a forma da filosofia universal” (Athenäum, 259), poderíamos encontrar ainda o problema da complementaridade dos pólos opostos num outro texto de Schlegel, a Conversa sobre a Poesia 58 .
O termo “conversa” é tradução do alemão Gespräch – o título original alemão é Gespräch über die Poesie -, que também pode indicar “diálogo”. A Gespräch é forma inspirada no diálogo platônico por sua fusão
56 SCHLEGEL, F. Op. Cit., p. 82. (Athenäum, 206). 57 NOVALIS, F. H. Crítica dos fragmentos em fragmentos. In: SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos, p. 244. 58 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a Poesia e outros fragmentos. Tradução, prefácio e notas Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Editora Iluminuras, 1994. (Biblioteca Pólen).
entre o filosófico e o poético, e também pela sua referência livre às formas clássicas, parodiando-as e parodiando inclusive os membros do grupo romântico de Iena – como nos informa o tradutor do texto para o português, Victor-Pierre Stirnimann: “Ludovico” sendo Schelling; “Lothario”, Novalis; “Marcus”, Tieck; “Andrea”, August Wilhelm Schlegel; “Amália”, Caroline (esposa de August Schlegel); “Camila”, Dorothea Veit (companheira de Friedrich Schlegel); e “Antônio”, o próprio Friedrich Schlegel. Como também nos explica
o tradutor, a tradução como “conversa” e não “diálogo” é justamente para fazer jus ao espírito livre e criativo da filosofia romântica, evitando assim o rigor do “diálogo” da tradição filosófica.
Encontramos na Conversa o princípio da complementaridade dos elementos opostos já desde a disposição em diálogo entre amigos que representam pontos-de-vista completamente antagônicos. Ao fim e ao cabo da leitura, notamos, porém, que o objetivo apresentado no início foi realizado: “Como na conversa que se segue, que deve apresentar em oposição pontos-de-vista completamente diferentes, cada qual podendo apontar o espírito infinito da poesia sob uma nova luz, e todos eles se esforçando, mais ou menos, às vezes de um ângulo, às vezes de outro, para alcançar o âmago da questão.” 59 Não se trata meramente de expor pontos-de-vista antagônicos, mas de representar sua mútua convergência, sua existência como pólos opostos e necessários da mesma questão central: “...poesia era o objeto, o motivo e o centro desses encontros” 60 . Observe-se também o problema do círculo hermenêutico já anteriormente mencionado ao se colocar que os pontos, apesar de antagônicos, não são excludentes, pois cada um traz em si a totalidade do problema que, sob cada nova ótica, cada nova luz, se representa todo naquela perspectiva ou parte.
Aproximando da natureza a poesia e a filosofia, especificidade do idealismo alemão, e, por conseguinte, a formação da poesia da formação da biologia, da física e até mesmo da química – veja-se o caso do chiste, por
59 Idem, p. 31. 60 Ibidem.
exemplo 61 – a Conversa abre com a exposição do par antagônico espírito e
forma. A verdadeira relação entre esses elementos implica um processo
orgânico de realização do ideal e de idealização do real, o jogo livre entre
poesia e natureza, entre o absoluto e o contingente, ou, em termos da estética,
entre a forma formada e a forma formante:
Imenso e inesgotável é o mundo da poesia, como o reino da viva natureza o é em animais, plantas e criações de toda espécie, forma e cor. Mesmo as obras artificiais ou produtos naturais que levam o nome e a forma de poemas: até o espírito mais abrangente não irá, com facilidade, a todos abranger. E que são eles ante a poesia sem forma e consciência que se faz sentir nas plantas, que irradia na luz, que sorri na criança, cintila na flor da juventude, arde no peito amoroso das mulheres? Esta contudo é a originária, a primeira, sem a qual certamente não haveria nenhuma poesia das palavras. Nós todos humanos, não temos nenhum outro objeto e nenhuma outra matéria de toda ação e alegria, sempre e eternamente, que não o poema único da divindade, de que somos também parte e flor – a terra. Somos capazes de perceber a música do infinito mecanismo, de compreender a beleza do poema, porque em nosso íntimo também vive uma parte do poeta, uma fagulha de seu espírito criador, que, bem debaixo das cinzas de nossa própria desrazão, nunca cessa de arder com secreta violência.” 62
Lembra-nos o trecho acima o tom psico-físico do Eu absoluto
fichteano. A beleza do poeta e do seu espírito criador é uma percepção real do
ideal, da música do infinito mecanismo, do jogo incessante que arde em
“secreta violência”. O jogo da congenialidade Deus/Natureza. Poema, aqui, soa
não só como obra de poesia escrita, mas também como obra da natureza, da
vida, da realização do ideal da divindade. O alcance de uma secreta e difícil
harmonia dos contrários que se revela em outras expressões do texto, como a
tradução do que é o objeto da conversa: a iniciação “nos sagrados mistérios da
natureza e da poesia”, algo alcançado através da simpatia do pensamento com
a “interna abundância de vida” desses elementos. Como nos revela um
61 Nos fragmentos de Athenäum encontramos: “Entendimento é espírito mecânico, chiste é espírito químico, gênio é espírito orgânico.” (Athenäum, 366). Apud: SUZUKI, M. Op. Cit., p.
219. 62 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a Poesia, pp. 29-30.
fragmento das Idéias (157): “Se quiser penetrar no íntimo da física, inicie-se nos mistérios da poesia.” 63
Intercalam-se, no texto, vários discursos e posições polêmicas. Primeiramente, Andrea expõe sua teoria das “Épocas da arte poética”. Complementam-se nesse discurso o espírito vivo da antigüidade grega e a letra cultivada da época moderna. Correspondendo ao idealismo da originalidade da obra de arte antiga, Andrea situa a fonte de toda poesia na Grécia, mais especificamente em Homero e na antiga escola dos homéridas. Porém, mesmo correspondendo a um espírito de organicidade clássica ao afirmar a origem da poesia no gênero épico, seu discurso abruptamente intercala a concepção dialética da formação desse gênero:
Em dois centros diferentes se unifica a massa de lendas e canções. Aqui um grande empreendimento comum, um acúmulo de força e discórdia, a glória dos mais corajosos; acolá a profusão do sensível, do novo, do estranho, do atraente, a felicidade de uma família, uma imagem da mais ágil inteligência, de como ela tem êxito, finalmente, em seu difícil retornar ao lar. Através dessa separação original foi preparado e constituído o que chamamos Ilíada e Odisséia, e o que nela encontrou uma sólida base para chegar à posteriadade, sobrevivendo a outros cantares desse tempo. 64
Observem-se os termos “dois centros” e “separação original” que marcam a alternância dos contrários na base do discurso de Andrea, que, no entanto, insiste no ideal de um “todo uno e indivisível” como “solo firme da poesia antiga”. A luta e a disputa entre o conceito clássico do orgânico ea nascente visão romântica do aórgico insistem e persistem na concepção da história das formas ou das épocas da arte poética 65 . É que formar dando forma
63 SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos, p. 157. 64 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a Poesia, p. 35. 65 A harmonia do orgânico e do aórgico é um conceito da obra do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) para “explicar” a luta e a disputa dos contrários complementares na Tragédia Grega: “Na medida em que o singular, quando se acha em seu extremo, se universaliza cada vez mais em sua ação frente ao extremo aórgico, ele deve se desprender sempre mais de seu ponto central. Já o aórgico, ao contrário, deve concentrar-se cada vez mais frente ao extremo singular e conquistar, cada vez mais, um ponto central para tornar-se mais singular. E ali, portanto, onde o aórgico tornado orgânico parece se reencontrar e retornar a si mesmo, ao se manter na individualidade do aórgico e onde o objeto, o aórgico, parece encontrar a si mesmo ao encontrar, nesse mesmo momento, o orgânico no extremo máximo do aórgico, nesse momento, portanto, NESSE NASCIMENTO DA MAIS ELEVADA
à forma das formas (Ur-bild) é deformar toda e qualquer forma (real). O paradoxo romântico já está implícito em sua origem.
Seguem-se deste paradoxo as conclusões de Andrea que culminam na afirmação da arte de Cervantes e Shakespeare como a síntese poética da arte antiga na modernidade. Shakespeare pela genialidade de deformar a organicidade clássica do gênero dramático aristotelicamente subordinado à seriedade trágica. Assim o fez através da “profunda engenhosidade” que reuniu o trágico ao cômico, criando a tragi-comédia moderna. Cervantes pela sua “espirituosidade fantástica e uma pródiga abundância de audaciosa invenção.” Nos dois elementos, a tensão entre modelo e deformação funciona como expressão do engenho e da criatividade defendidas no pensamento romântico como fontes da liberdade poética.
No tom controverso da conversa, Marcus, Lothario e Ludovico lamentam o fato de Andrea não ter apresentado uma teoria dos gêneros poéticos. Ao contrário, Amália se posiciona favoravelmente a Andrea por sempre lhe causar “arrepios” abrir um livro “em que a fantasia e suas obras são classificadas em rótulos”. A posição de Amália culmina na pergunta: “Por que não toda a poesia una e indivisível?”, que busca a forma originária proposta por Andrea, mas que se choca principalmente com a posição de Marcus. Mediando os dois posicionamentos opostos surge a voz de Ludovico no “Discurso sobre a Mitologia”.
Também Ludovico busca um centro para a poesia e para o poeta moderno. Encontra novamente o problema em oposição à arte antiga e aponta nossa desvantagem em relação à mesma no fato de não termos uma mitologia. Ao contrário, porém, dos antigos, a poesia dos modernos criará sua mitologia “a partir do mais profundo do espírito”, “terá de ser a mais artificial de todas as obras de arte”, que constituirá o “místico poema” ou o “poema infinito”. A busca do místico como a nova mitologia é encontrada no Idealismo, que pode ser, segundo Ludovico, melhor percebido na “visão mitológica da natureza”
ANIMOSIDADE, PARECE REALIZAR-SE A MAIS ELEVADA CONCILIAÇÃO.”In: HÖLDERLIN, Friedrich. Reflexões. Tradução Márcia C. de Sá Cavalcante e Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 83.
observada na física e seu novo realismo que se manifesta como poesia, “uma
poesia amparada justamente na harmonia do real e do ideal”.
Ludovico encontra na natureza e em sua forma livre e
incessantemente originária de acontecimento físico as bases da nova mitologia
que dará o ideal ao homem moderno, que lhe fornecerá as fontes do espírito
(Geist) e de sua religiosidade, em seus “paradoxos dinâmicos”, no seu “caos
originário”:
Aqui encontra muita semelhança com aquela grande espirituosidade da poesia romântica, que não se mostra em lampejos isolados mas na construção do todo e que nosso amigo já nos desvendou quanto às obras de Cervantes e Shakespeare. Pois esta confusão artificialmente ordenada, esta excitante simetria de contradições, este maravilhoso e eterno jogo alternado de entusiasmo e ironia, vivo até mesmo nos melhores segmentos do todo, já me parecem uma mitologia indireta. A organização é a mesma, e o arabesco é, com certeza, a mais antiga e originária forma da fantasia humana. Nem esta espirituosidade nem uma mitologia podem subsistir sem algo de primordial, inimitável, pura e simplesmente indissolúvel, e que ainda deixe transparecer a antiga natureza e força, após todas as reformulações, lá ante a ingênua profundidade deixa que transpareça a aparência de pervertido e demente ou de tolo e simplório. Pois este é o princípio de toda poesia, superar o percurso e as leis da razão racionalmente pensante e transplantar-nos de novo para a bonita confusão da fantasia, o caos originário da natureza humana, para os quais não conheço, até agora, símbolo mais belo que a multidão colorida dos antigos deuses. 66
Enfim, o diálogo segue em seu tom controverso até o fim,
realizando a oposição de pontos-de-vista anunciada no início do texto. No
entanto, se se reparar melhor sua articulação, sua forma de polêmica, nota-se
que ele sempre representa um mesmo tema que, como parte de um todo, se
revela totalmente em cada parte ou fragmento. É a realização do princípio
fichtiano da alternância ou determinação recíproca dos contrários que
anteriormente apontamos como princípio formativo dos fragmentos de
Schlegel.
66 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a Poesia, p. 55.
O importante é observar o método polêmico do texto, em que nenhum assunto ou personagem tem completa razão, mas se põe em disputa com a visão de outro que complementa, em sua contradição, o sentido do seu antagonista. Nessas várias vozes ou esferas que o texto articula, vemos representado o paradoxo da origem da poesia e da natureza no tom reflexivo que harmoniza pensamento, poesia e mundo – que inclui tanto as formas naturais como sua derivação na visão telúrica das etapas no caminho da vida, constituindo uma verdadeira filosofia da vida (Lebensphilosophie).
A filosofia da vida é o ponto crucial do pensamento de Schlegel, pois é a própria negação do ponto de vista absoluto do idealismo de Fichte em direção a um ponto de vista ligado à experiência concreta do mundo. A filosofia da vida de Schlegel e a filosofia da natureza de Schelling são o desfazer do travo (Anstoss) da doutrina-da-ciência e da crítica kantiana. Apesar de Kant e Fichte terem pensado o absoluto em tensão com o contigente, seus sistemas ainda não admitem a realização da filosofia da vida, pois o filósofo só o é pela absolutização do seu pensamento. Pensar é uma forma de elevar o homem comum ao ideal, idealizando o real e, mesmo que teoricamente a idealização do real fale de uma possível realização do ideal, isso é ainda uma possibilidade teórica que, para Fichte, está muito distante da realização real. Para seu autor, a doutrina-da-ciência nunca passará de uma especulação criativa do espírito. Filosofia é especulação: a doutrina-da-ciência é o saber que, ao saber, se representa como saber, ou o eu sujeito que se vê objeto no ato da representação do seu saber. Mas é justamente esse poder especulativo do filósofo que o afasta do mundo da vida do homem comum. Em Fichte, o filósofo sempre terá um ponto de vista transcendental totalmente avesso ao mundo da prática. O pôr-se da ação é sempre incondicionado e absoluto – paradoxo de quem busca no pôr-se a possível realização prática do idealismo absoluto, tirando-o do círculo vicioso da reflexão.
É justamente por esse paradoxo fichtiano que Schlegel questiona
o espírito transcendental da doutrina-da-ciência e da crítica da razão. Elas comprovam muito bem a idealidade absoluta do ideal, mas agora cabe ao romantismo tratar da realidade absoluta do ideal. Essa passagem só se dá na
obra do gênio, isto é, na individualização do ideal que encontrará voz
historicamente na forma do romance. O romance é a forma polêmica que reúne
os pólos em luta e disputa. O romance é a expressão do romantismo. Nas
palavras de Novalis:
O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário. Romantizar nada é, senão uma potenciação qualitativa. O si-mesmo inferior é identificado com um si-mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmos somos uma tal série potencial qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida. Na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspecto misterioso, ao finito um brilho infinito, eu o romantizo – Inversa é a operação para o superior, desconhecido, místico, infinito – através dessa conexão este é logaritmizado – Adquire uma expressão corriqueira, filosofia romântica. Língua romana. Elevação e rebaixamento recíprocos. 67
Os românticos contrapõem ao homem transcendental de Fichte e Kant o homem sensível de Schelling – em sua Naturphilosophie -e Schiller em sua Educação Estética do Homem. Romantizar é encontrar esse ponto medial entre o ideal e o real que somente a arte consegue harmonizar. A Lebensphilosophie do romantismo é a luta contra a abstração da Wissenschaftslehre do idealismo. Algo bem diverso daquilo que costumamos entender como romantismo na tradição brasileira. Como expressão da realização do ideal ou da concretização artística do absoluto aparece o romance como forma da Lebensphilosophie. Não é à toa que Schlegel irá escrever sobre os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe. Para Schlegel, o absoluto da filosofia transcendental só se realiza na construção (Bildung) individual do gênio, que encontra sua forma mais acabada na arte, mais especificamente no romance como forma romântica de expressão da realização individual da consciência:
67 NOVALIS, F. H. Pólen, p. 142.
Quem tem fantasia, tem de poder aprender poesia, ainda se tem que chegar ao ponto em que todo filósofo escreva um romance 68 .
Para Schlegel, como nos revela o trabalho magistral de Márcio Suzuki: “o romance não é [...] a narrativa da vida de uma única personagem, mas de uma ‘individualidade plural’” 69 . Ou ainda: “A individualidade criada pelo romancista não é uma pálida imagem do criador, mas a coesão orgânica interna de um caráter plural.” 70
O romance quer expressar o homem inteiro que harmonize a poesia e a vida, o pensamento e a prática, o ideal e o real. É o que na Conversa sobre a Poesia se apresenta como doutrina-da-formação-da-arte-davida que é a plena realização do princípio da alternância dos contrários que funda o realismo transcendental da arte em tensão com o ideal transcendental da filosofia.
A poesia, como realização da consciência individual, corresponde ao casamento entre imaginação e razão preconizada pela crítica e pelo pensamento fichtiano. A dialética entre a consciência e a autoconsciência é uma dialética material e não meramente racional, daí o ataque de Schlegel à dialética hegeliana que se fundamenta na lógica formal. Somente no âmbito da vida e da natureza como vivificação do diálogo é que a dialética entre o eu da consciência e o não-eu se torna a presença misteriosa de um tu. A dialética é e deve ser diálogo, por isso não aponta para uma abstração, mas para uma materialização, não busca uma visão sintética, mas uma inconclusividade poética.
É na vida que o diálogo se realiza, daí “a necessidade de entender a lógica dialética como ‘lógica dialógica’” 71 . O homem inteiro e não cindido, o ideal do homem realizado como homem de carne e osso só se dá através do diálogo que, no mundo da vida, se traduz pelo “amor” e pela “amizade”; na filosofia, pela conversa e pelo simpósio entre amigos; na poesia,
68 Apud: SUZUKI, M. Op. Cit., p. 112. 69 Idem, p. 114. 70 Ibidem. 71 Ibidem, p. 161.
pela forma do romance e da ironia que representam a paródia recíproca e a bufonaria transcendental. A luta e a disputa (no simpósio) entre o eu individual
– como autoconsciência entre eu-sujeito e eu-objeto – e o eu dos outros, revela a possibilidade de autocompreensão e desenvolvimento do indivíduo.
Nos fragmentos se traduz esse poder da ironia de realizar a consciência poética do homem inteiro, que através da dialética reconhece seu proto-Eu (Ur-ich) – versão romântica do daimon socrático: “Na ironia unificam-se a autolimitação [Selbstbeschränkung] e o interesse [Teilnahme] por toda a vida.” 72 Ou ainda, no âmbito da dialética: “A ironia é a análise [contrapondo-se à síntese] de tese e antítese. (Ironie ist Analyse der These und Antithese).” 73
A dialética socrática é reinterpretada pela sinfilosofia schlegeliana, uma vez que o daimon, a subjetividade radical, não é algo estranho à consciência, mas entranho a ela. Cumpre à dialética chegar à plena consciência do eu como objeto do conhecimento. Todo conhecimento é autoconhecimento sem deixar de lado o reconhecimento do jogo opositivo interior-exterior. A ironia é a interface entre esses dois pontos. A ironia socrática como drama do saber romantiza-se quando no jogo dialético entre saber e nada saber o eu sabente toma consciência não só de si, mas do outro que é entranho ao si, do diálogo que se é, de que o eu que pensa é sempre outro ao tomar consciência do que é. A ironia romântica não é a separação entre a consciência e a insciência, mas o reconhecimento de que saber é saber-se, de que ser é dialogar com as várias faces de si mesmo e de que, por isso, só se realiza a consciência de si mesmo, como formação de uma individualidade, na consciência de um tu que se é pela própria condição dialética da consciência na autoconsciência. Em um fragmento de Novalis:
A suprema tarefa da formação é – apoderar-se de seu si-mesmo transcendental – ser ao mesmo tempo o eu de seu eu. Tanto menos estranhável é a falta de sentido e entendimento completos para outros. Sem auto-entendimento perfeito e
72 Apud: SUZUKI, M. Op. Cit., p. 165. 73 SCHLEGEL, F. Fragmente. In: HASS, Hans Egon e MOHRLÜDER, Gustav – Adolf (org.). Ironie als literarisches Phänomen. Köln: Kiepenheuer & Witsch, 1973, p. 289.
acabado nunca se aprenderá a entender verdadeiramente a outros 74 .
Não há a separação entre o saber e o não-saber, a consciência não é uma dualidade antagônica, mas há uma união entre o eu e o não-eu, entre o eu-sujeito e o eu-objeto na reflexão, formando uma unidade dual.A unidade dual da ironia romântica é expressa pelo paradoxo, leia-se o fragmento 48 do Lyceum: “ A ironia é a forma do paradoxo. Paradoxo é tudo o que é ao mesmo tempo bom e grande.” 75
A ironia socrática é transformada pelo romantismo alemão na “clareza de consciência” ou “lucidez” (Besonnenheit) 76 que se expressa não na forma de uma razão superior, mas de um diálogo permanente entre eu e o outro, interna (eu e mim) ou externamente (eu e tu) à consciência, negando a síntese lógica da dialética formal que aniquila o outro.
Não confundir a ironia socrática com a ironia oratória ou situacional é outro esforço do romantismo alemão. Ao contrário dessa ironia, a ironia socrática é retomada “onde quer que se filosofe em conversas faladas ou escritas”, não estando restrita apenas a um foro predeterminado como a assembléia ou o tribunal, mas ligada à ágora, à praça pública, à própria vida da polis. Vem dessa ligação o uso da palavra latina “urbanidade”, retomada pelos românticos alemães, para se referir à ironia:
A filosofia é a verdadeira pátria da ironia, que se poderia definir como beleza lógica: pois onde quer que se filosofe em conversas faladas ou escritas, e apenas não de todo sistematicamente, se deve obter e exigir ironia; e até os estóicos consideravam a urbanidade uma virtude. Também há, certamente, uma ironia retórica que, parcimoniosamente usada, produz notável efeito, sobretudo na polêmica; mas está para a sublime urbanidade da musa socrática, assim como a pompa do mais cintilante discurso artificial está para uma tragédia antiga em estilo elevado. Nesse aspecto, somente a poesia pode
74 NOVALIS. Op. Cit., p. 55. 75 SCHLEGEL, Friedrich. O Dialeto dos Fragmentos, p. 28. 76 Leia-se o fragmento 36 das Observações Entremescladas de Novalis: “ O que Schlegel tão rigorosamente caracteriza como ironia não é, segundo meu parecer, nada outro – senão a conseqüência, o caráter da genuína clareza da consciência – da verdadeira presença de espírito. O espírito aparece sempre apenas em forma alheia, aérea. A ironia de Schlegel parece-me ser genuíno humor. Vários nomes são proveitosos a uma idéia.” In:__. Pólen, p. 59.
também se elevar à altura da filosofia, e não está fundada em passagens irônicas, como a retórica. Há poemas antigos e modernos que respiram, do início ao fim, no todo e nas partes,
o divino sopro da ironia. Neles vive uma bufonaria realmente transcendental. No interior, a disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade; no exterior, na execução, a maneira mímica de um bom bufão italiano comum (Lyceum, 42) 77 .
A liberdade representada pela tomada de consciência individual através da ironia dá “os ares” da “sublime urbanidade da musa socrática”. Os romanos – que, segundo a Conversa sobre a Poesia, “tiveram [...] apenas um curto acesso de poesia” e, por isso, “natural era-lhes apenas a poesia da urbanidade, e só com a sátira enriqueceram o reino da arte” 78 – se referiam a um órgão próprio para reconhecer o homem refinado pelos ares da ironia, capaz de fazer e aceitar a brincadeira: o nariz. Isto explica o fragmento: “Os romanos sabiam que o chiste é uma faculdade profética: chamavam-na de nariz”(Lyceum, 126). 79
Chiste e ironia estão intimamente ligados no romantismo alemão. O chiste é considerado o próprio princípio orgânico da filosofia do idealismo, uma vez que sua forma fragmentária descobre relações inesperadas que expressam o que Schlegel chama de “explosão do espírito estabilizado.” Sendo a filosofia ironia, como vimos em fragmentos anteriores, a ironia, assim como a filosofia, encontra organicidade na forma fragmentária e profética do chiste, em suas explosões galvânicas de espirituosidade. Pois, enfim, o chiste poderia ser expresso como uma capacidade orgânica de apreender a totalidade ou a química do universo em fagulhas ou fragmentos intuitivos desse todo:
Um achado chistoso é uma desagregação de elementos espirituais, que, portanto, tinham de estar intimamente misturados antes da súbita separação. A imaginação tem de estar primeiro provida, até a saturação, de toda espécie de vida, para que possa chegar o tempo de a eletrizar de tal modo pela fricção da livre sociabilidade, que a excitação do mais leve
77 SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, pp. 26-27. 78 SCHLEGEL, F. Conversa sobre a Poesia, p. 39. 79 SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, p. 41.
contato amigo ou inimigo possa lhe arrancar faíscas fulgurantes e raios luminosos, ou choques estridentes (Lyceum, 34). 80
O próprio conceito de gênio romântico está ligado à capacidade
profética de combinar elementos inesperados no chiste:
Filosofia da filosofia = arte da invenção e do chiste combinatório ou fundação de uma arte e ciência proféticas. Oráculos combinatórios. Princípios proféticos.(Anos de Aprendizado Filosófico, V, 375) 81
Ou ainda:
Não é o chiste totalmente idêntico à genialidade? (Fragmentos sobre Poesia e Literatura, V, 1038) 82 Chiste é uma faculdade sincrética e eclética, mas isso também parece ser o caso do gênio. Gênio é chiste + το ποιειν, a faculdade da formação (das Bildungsvermögen). Portanto, chiste é propriamente genialidade fragmentária. 83
Retomando o problema da liberdade do idealismo apontado pela
ironia socrática em sua acepção romântica, é importante salientar que tomar
consciência de si no jogo reflexivo da ironia romântica é assumir a duplicação e
a determinação recíprocas, como forma de autocriação e auto-aniquilamento,
no solilóquio interior da alma. O solilóquio é o diálogo que prodigaliza a cisão
que ocorre “no interior de nós mesmos”:
Essa cisão [em dois princípios, um superior e outro inferior], essa duplicação de nós mesmos, esse comércio secreto entre dois seres, um que pergunta e outro que responde, um que sabe, ou melhor, que é a própria ciência, e outro que não sabe, que luta por clareza, essa arte de conversação interior é o mistério propriamente dito do filósofo, arte interior da qual a arte exterior, que daí se chama dialética, é apenas a refiguração [ou cópia: Nachbild] e, onde se torna mera forma, é aparência vazia e sombra. 84
A ironia romântica realiza o casamento entre o filósofo e o poeta,
uma vez que a especulação ou a busca do conhecimento do filósofo implica a
80 SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, pp. 24-25. 81 Apud: SUZUKI, M. O Gênio Romântico, p. 196. 82 SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, p. 169. 83 Idem. 84 SCHELLING, F. W. J. Die Weltalter. Fragmente, p. 5. Apud: SUZUKI, M. Op. Cit., p. 163.
autoconsciência da natureza reflexiva do pensamento que se materializa no mundo da vida e da contingência, nunca encontrando uma síntese final e racional de onde possa julgar sem ser julgado. Toda autocriação implica auto-aniquilamento, portanto. Criar entusiasticamente implica refletir sobre si e sobre o objeto criado ao mesmo tempo. A sinfilosofia é a verdadeira Bildung do filósofo-artista ou artista-filósofo, que na plena lucidez da consciência, cria refletindo e reflete criando, inventa executando e executa inventando. A ironia é apenas a expressão da integralidade das capacidades imaginativa e racional simultaneamente no mesmo eu.
... a verdadeira Bildung consiste justamente na mediação e iluminação recíproca – nesse constante diálogo interior a que se entregam os indivíduos de um único e mesmo eu, que é, a um só tempo, filólogo e filósofo, criador e intérprete, autor e leitor de si mesmo. 85
Ou nas palavras de Friedrich Schlegel:
Um homem verdadeiramente livre e culto [gebildet] teria de poder se afinar a seu bel-prazer ao tom filosófico ou filológico, crítico ou poético, histórico ou retórico, antigo ou moderno, de modo inteiramente arbitrário, como se afina um instrumento, em qualquer tempo e em qualquer escala (Lyceum, 55). 86
A autoconsciência reflexiva do eu sujeito sobre o eu-objeto se expressa na poesia, mais precisamente no romance, forma moderna do diálogo socrático 87 , através do jogo entre narração e digressão, entre criação e reflexão, entre modelo e paródia, entre realidade e aparência ou entre ficção e metaficção que aparece no distanciamento crítico do eu criador sobre a obra e
o universo ficcional. Na ironia romântica do romance, ficção implica metaficção, criação é já auto-aniquilamento pela desconstrução metaficcional da aparência de ingenuidade da inspiração. Nas palavras de Karin Volobuef:
85 SUZUKI, M. Op. Cit., pp. 183-184. 86 SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, p. 29. 87 Lyceum 26: “Os romances são os diálogos socráticos de nossa época. Nessa forma liberal, a sabedoria da vida se refugiou da sabedoria escolar.” In: SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos, p. 23.
A ironia romântica não se esgota na mera interrupção do fluxonarrativo com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se destina a fomentar uma constante discussão e discussão sobre literatura – um processo do qual o leitor forçosamente participa. Essa participação é alcançada na medida em que o escritor destrói a ilusão da verossimilhança e desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para como o texto foi construído 88 .
A súmula poética da consciência reflexiva sobre o processo criativo é a forma da ironia como parábase expressa no fragmento: “A ironia é uma parábase permanente” (Anos de aprendizagem Filosófica, 668) 89 . A parábase (Parekbase) é o interlúdio ou o contraponto crítico inserido na estrutura da comédia ática. Referindo-se à autoconsciência criativa inscrita no texto pela ironia, este fragmento faz a síntese entre genialidade entusiasta e consciência reflexiva. A arte, que para os românticos é uma produção concriativa do gênio do artista e da natureza, é uma desnaturalização, pois cria criticamente o que a natureza realiza espontaneamente. Por isso não é ingênuo o ato criativo, uma vez que implica a consciência da espontaneidade. Segundo D. C. Muecke 90 , ao estudar a ironia de Schlegel, a criação artística possui duas fases “ contraditórias mas complementares”: a fase expansiva, em que o artista é ingênuo e expansivo e a fase reflexiva, onde ele é consciente, crítico e irônico. A liberdade do artista vem justamente da capacidade parabática de refletir sobre a espontaneidade e representar, assim, em sua crítica, a capacidade de harmonizar a inconsciência e a consciência. Não há inspiração sem crítica, nem obra de arte sem reflexão – assim o artista realiza a superação criativa da criatividade, aproximando-se da natureza ao desnaturalizá-la produzindo algo que tem a sua completude e vivacidade, o belo. O ato de imitar a força formatriz da natureza, dando-lhe completude no belo, só é possível na mais elevada tensão entre criação e aniquilamento, inspiração e reflexão. O belo como um organismo vivo e completo em si é uma
88 VOLOBUEF, Karin. Frestas e Arestas – A prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999, pp. 98-99. 89 Apud: HASS & MOHRLÜDER (org.). Op. Cit., p. 289: “Ironie ist eine permanente Parekbase.” 90 MUECKE, Douglas C. Ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1995.
desnaturalização do natural que cria uma segunda natureza. Como a crítica é a
lógica da poesia, a ironia é uma verdadeira beleza lógica. No mais alto grau de
imitação da natureza como jogo incessante de velamento e desvelamento
fisiocríptico eclode o mais alto grau de artificialidade criativa. A ironia mais
radical da criação artística é que ela é uma paródia da natureza.
Em estudo decisivo sobre a ironia romântica de Schlegel,
Ronaldes de Melo e Souza afirma sobre a ironia como parábase:
A concepção da ironia como parábase permanente se fundamenta, não só na estrutura da antiga e nova comédia, mas também numa determinada forma de ficção narrativa, que é a narração regida pelo princípio irônico de composição. Nas narrativas irônicas, a função crítica da parábase é assumida pelo narrador autoconsciente, que não se limita a narrar eventos, mas se compraz em sustar o enunciado propriamente com o deliberado propósito de assinalar criticamente que o narrado não é dado na realidade, mas construído pela instância da enunciação. A intrusão do narrador cumpre desempenho bem definido ao sustar a ilusão ficcional e advertir ao leitor que não se deve confundir fato com ficção. [...] Na ficção narrativa autenticamente irônica, o narrador se desvia constantemente do fluxo inercial das ações para estabelecer um intercâmbio polêmico com a sua própria obra. Desdobrado em autor e crítico de sua criação, o narrador autoconsciente solicita um leitor criticamente atento. A interação dialógica do autor e do leitor é uma exigência do narrador irônico 91 .
A contradição como estrutura polêmica da narrativa se estende também sobre o universo humano. A ironia marca a tensão entre o narrador e
o autor implícito metacriticamente desdobrado na sua autoconsciência, mas também a contradição entre o visto e o invisível, a certeza e a incerteza, a ilusão e a desilusão, a vida e a morte contraditoriamente representados no horizonte de experiência das personagens. A ironia expõe a constituição inacabada do conhecimento do homem diante da abertura da experiência, mas, diferentemente de sua leitura na tradição filosófica, não procura o esgotamento das possibilidades do ser, mas apresenta a própria inesgotabilidade desta experiência. Saber é sempre e apenas um ponto-de
91 SOUZA, Ronaldes de Melo e. Introdução à poética da ironia. In: Linha de Pesquisa (I, 2000): 27-48.
vista diante da abertura do horizonte. Toda certeza ou busca de um ideal é mediada pela aproximação e vivência do real que multiperspectiva a visão do eu e o desdobra dramaticamente em outros eus e outras experiências ou pontos-de-vista. Ao princípio da certeza e da objetividade da mimese realista, a ficção irônica contrapõe o princípio da incerteza e da transitoriedade de todo ponto-de-vista objetivo. O que o narrador vê e narra é metacriticamente infirmado pelo comentário do autor implícito ou narrador autoconsciente, assim como o que o leitor vê deve ser criticamente lido (colhido) no horizonte móvel do texto. Autor, narrador e leitor são papéis do jogo e da estrutura irônica do texto. O mundo da ficção é a cena transvista do mundo da realidade que é tematizado no jogo da narrativa. A ficção realiza a transposição crítica do mundo poeticamente relido pelo olhar móvel da ironia. Nesse processo, o real está em constante realização e a leitura em construção. Ler o universo ficcional arquitetado ironicamente exige, portanto, não só a compreensão do jogo entre
o texto e o meta-texto, mas também a compreensão da representação do mundo do homem na linguagem da contradição e do paradoxo que não se mostram em sua totalidade e inteireza, exigindo, por isso, a leitura do silêncio (escritura verminosa) do texto e da vida como jogo irônico de ficção e realidade.
Na leitura das duas partes deste capítulo, fica implícita a complementaridade entre literatura e filosofia. A compreensão do problema literário da ironia implica a elucidação do trajeto que nos leva daquilo que nos parece uma interpretação insuficiente – o problema retórico -, passa pela construção de uma interpretação da ironia como travejamento estrutural do texto – o que implica sua compreensão no horizonte hermenêutico como jogo e solicita o conceito de ironia estrutural de Beda Allemann em consonância com os conceitos de autor e leitor implícitos, além de problematizar o narrador -, até chegar ao conceito dinamizador do jogo irônico da narrativa: o conceito de ironia romântica de Friedrich Schlegel.
Na explicação sobre a ironia como parábase permanente do trecho supra-citado, fica clara a interação dialógica do autor, do narrador e do leitor no jogo polêmico de ficção e metaficção. O importante é compreender que essa interação não se esgota no problema estrutural do texto, mas exige o comparecimento da interpretação do que é dialógico e do que é interação. Não basta entender o funcionamento mecânico do jogo de vozes da narrativa, é necessário desvelar o mundo que esse jogo revela. Dizer que há dois eus é fácil, complexo é entender que, se há dois eus, um e outro falam e que o mundo de um eu não esgota a visão do outro e nem se esgota diante dela. Muitas vezes é criticada a compreensão do fenômeno literário em diálogo com
o filosófico, como se fosse uma forma de explicar um problema com algo totalmente exterior a ele. Não se trata deste caso em nossa tese, pois o filosófico aqui é uma solicitação do próprio conceito em questão – ironia -, além de que não se trata de um pensamento filosófico embasando o texto crítico, mas de um verdadeiro poetar pensante que fundou uma filosofia poética. Portanto, estamos seriamente convencidos de que sem a compreensão do idealismo alemão e do quadro de sua discussão é impossível entender o conceito de ironia e, mais especificamente, o conceito de ironia romântica que comparece na narrativa moderna. Este, inclusive, é outro ponto polêmico de nossa tese, pois afirmamos que para compreender um autor supostamente realista é necessário estudar o conceito de ironia romântica que estrutura a narrativa moderna. É que, a partir do momento que saímos da nomenclatura literária tradicional, compreendemos o romance de Machado de Assis em diálogo com a tradição nascida com Miguel de Cervantes, fundador barroco da modernidade literária, que poderia ser conceituada a partir da revolução metapoética da estrutura do texto artístico. O Romantismo Alemão é, por sua vez, um momento decisivo de apreensão e transformação desse legado, deixando uma teoria poética que irá inseminar todo o horizonte da poesia posterior a partir da problematização metacrítica e irônica da realidade pela ficção. Nesse horizonte se inscreve a obra de Machado de Assis.
Esse tipo irônico de narrativa que chega ao seu ápice no romance do século XVIII com Laurence Sterne, Henry Fielding e Denis Diderot, tendo sua origem moderna no Don Quijote de Miguel de Cervantes, marca a conquista máxima da autoconsciência poética que irá culminar no século XX em autores como Thomas Mann e Robert Musil. No século XIX no Brasil, esta teoria revolucionária passa pela obra de Machado de Assis. Esse tipo singular de narrativa está, por sua vez, em consonância com a filosofia poética ou o poetar pensante do Romantismo Alemão.
A prova da modernidade do Romantismo Alemão é que, agenciado pela filosofia poética e pela crítica de Friedrich Schlegel, sua teoria da imaginação radical em conúbio com a reflexão estará presente também no Romantismo Inglês e Norte-Americano que serão fundamentais para a construção da lírica moderna do Simbolismo Francês de Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé. Baudelaire irá interpretar a imaginação radical e a ironia do romantismo como as bases da teoria crítica da lírica moderna e do universo arquitetônico d’As Flores do Mal. A autoconsciência poética é mesmo o ponto central de sua obra que procura construir uma cosmogonia polêmica do homem moderno através da poesia cáustica e crítica do poeta dramaticamente desdobrado e despersonalizado na figura não só do sentidor como também do sentente. O precursor poético da lírica moderna e da obra de Baudelaire, o poeta romântico norte-americano Edgar Allan Poe, chegou a teorizar em sua “Filosofia da Composição” sobre a consciência matemática do poeta ao construir o “efeito” desejado no poema. Enfim, esses elementos apontam para a modernidade do conceito de ironia do Romantismo Alemão e para a complexidade do problema. Afirmamos que esse conceito comparece na obra poética de Machado de Assis, o que acarretará um longo trajeto de polêmica e de comprovação dessa tese, passando primeiramente pela revisão do tratamento da ironia na crítica da obra machadiana.
CAPÍTULO II O conceito de ironia e a sua recepção na
“O crítico é um leitor que rumina. Deveria, por isso, ter mais de um estômago.” (Friedrich Schlegel. Lyceum, 27).
A história da crítica machadiana é a história da crítica literária brasileira. Poucos escritores conseguem alcançar essa importância numa literatura, chegando ao ponto de, ao se falar de sua obra, abranger-se todo o universo da recepção, desde o mais avesso às suas inovações até à mais complexa exegese. Machado de Assis, se trouxermos a idéia de cânone de Harold Bloom 92 para o nosso universo crítico, é o centro da literatura brasileira. É o autor que, amando-o ou o odiando, estamos direta ou indiretamente lendo e discutindo. Poder-se-ia mesmo demarcar nossa literatura a partir de um momento: antes e depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), obra que assinala a conquista máxima dos meios de expressão do autor.
É claro que, tendo escrito em período de forte influência do estilo romântico, tendo por sinal demarcado a decadência desse estilo, além de ter apontado as contradições do estilo realista ainda nascente, Machado sofreu sob o olhar supercilioso de uma e outra estéticas, pois não se submeteu nem a uma nem à outra. Sua obra fundou uma senda inédita, que demorou a ser compreendida e muita controvérsia gerou na crítica.
O problema é que a radicalidade do estilo de Machado é paradoxal mesmo à lógica de observadores distanciados como nós do século XXI, diga-se lá aos seus contemporâneos e às gerações logo posteriores à sua. Tal radicalidade está à altura de sua modernidade que, por sua vez, está calcada no fato de ter atualizado um legado filosófico e literário que não eram comuns à sua época (nem muito menos à nossa). Procedimento paradoxal, portanto, pois é moderno na medida em que recupera e dialoga com procedimentos estéticos e filosóficos do século XVIII e os põe para falar no 92 BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1994. Para Bloom: “O Cânone, assim que o tomemos como a relação de um leitor e escritor individuais com o que se preservou do que se escreveu, e nos esqueçamos dele como uma lista de livros de estudo obrigatório, será visto como idêntico à literária Arte da Memória, não ao sentido religioso do termo”, p. 25.
final do século XIX. Sua modernidade tem mesmo raízes anteriores ao século XVIII -como observamos no capítulo anterior -, pois se liga e se filia à modernidade do romance ocidental-europeu nascido com Miguel de Cervantes que, segundo Milan Kundera 93 , tem, como única razão de ser, explorar aquilo que a ciência e a modernidade nascidas com René Descartes não exploraram e nos legaram, segundo Martin Heidegger, como o “esquecimento do ser”. Esse aquilo que é o do que se esquecem a ciência e a filosofia é o que podemos chamar a exploração do ser, ou, em termos literários, a compreensão da existência em termos dialógicos e não lógicos. Para tanto, Machado se inscreve criativamente no diálogo com essa tradição ao parodiar o Romantismo e satirizar o Realismo-Naturalismo que não a compreendiam -uma vez que primavam por uma estética monológica, de tendência idealista no Romantismo e de pendor cientificista no Realismo-Naturalismo – e também realizar o casamento entre criação e reflexão em sua visão artística.
Sua postura colecionou desafetos e, através dos tempos, críticas destemperadas. Afrânio Peixoto chega mesmo a, ou maldosa ou cegamente influenciado pelo fisiologismo naturalista, acusar seus capítulos e períodos curtos de frutos de sua gagueira:
Ele podia escrever dezenas de volumes como o fez Marcel Proust. Disso foi impedido porque era gago, o que tornava a sua frase curta, sem fôlego, fragmentada, na medida de sua respiração. 94
Seu mais conhecido crítico da época, Silvio Romero, que também abraçou a causa naturalista por seu positivismo exacerbado, compara-lhe o estilo ao de Tobias Barreto, ao qual dá os louros contra o “sestro tartamudeante” de Machado. Romero reconhecia no escritor carioca certo talento que, por sua vez, por submetido ao humor, nunca ultrapassaria a
93 KUNDERA,Milan. A herança depreciada de Cervantes. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, pp. 7-23.94 PEIXOTO, Afrânio, Prefácio à tradução francesa de Dom Casmurro. Paris: Instituto de Cooperação Intelectual da Liga das Nações, 1936. Apud: SOUZA, Ronaldes de Melo e. O Estilo Narrativo de Machado de Assis. In: SECCHIN, Antônio Carlos, ALMEIDA, José Maurício Gomes de & SOUZA, Ronaldes de Melo e (org.). Machado de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-fólio, 1998, p. 68.
seriedade de Barreto. O que está em jogo é a relação entre estilo e doutrina,
entre estilo e ideologia que, sob a ótica da crítica positivista, Machado não
respeitava. Uma vez que a febre e a moda eram o pseudo-cientificismo que,
mais de uma vez, Machado satirizou, coube a Romero combatê-lo:
Esse auxiliar de todos os ministérios, esse rábula de todas as idéias, é, quando muito, o conselheiro da comunidade letrada. O que ele quer é representar o seu papel equívoco. O autor de Brás Cubas, bolorento pastel literário, assaz o conhecemos por suas obras, e ele está julgado. 95
Ou ainda em 1885, nas páginas de crítica dos Estudos de
Literatura Contemporânea:
O Sr. Machado de Assis representa hoje o nosso romantismo velho, caquético, opilado, sem idéias, sem vistas, lantejoulado de pequeninas frases, ensebadas fitas para efeito. Ele não tem um romance, não tem um volume de poesias quefizesse época, que assinalasse uma tendência. É um tipo morto antes do tempo na orientação nacional 96 .
Como crítico, por sua vez, Machado se mostrou consciente das
aporias que o cercavam. Em ensaio intitulado A Nova Geração 97 , assim se
refere às estéticas do seu tempo:
...Nem tudo é ouro nessa produção recente; e o mesmo ouro nem sempre se revela de bom quilate; não há fôlego igual e constante; mas o essencial é que um espírito novo parece animar a geração que alvorece, o essencial é que esta geração não se quer dar ao trabalho de prolongar o ocaso de um dia que verdadeiramente acabou. Já é alguma coisa. Esse dia, que foi o Romantismo, teve as suas horas de arrebatamento, de cansaço e por fim de sonolência, até que sobreveio a tarde e negrejou a noite. A nova geração chasqueia às vezes do Romantismo. Não se pode exigir de extrema juventude a exata ponderação das coisas; não há impor a reflexão ao entusiasmo. [...] 98
95 ROMERO, Silvio. Estudos de Literatura Brasileira (1885). Apud : MONTELLO, Josué. Os inimigos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, p. 137. 96 ROMERO, Silvio. Estudos de Literatura Contemporânea (1885). Apud: MONTELLO, Josué. Os inimigos de Machado de Assis, p. 143. 97 ASSIS, Machado, A Nova Geração. In: -. Crítica. Obras Completas. 8 ed.. Vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, pp. 809-836. 98 Idem, pp. 809-810
Ou ainda em outro trecho:
Ia-me esquecendo uma bandeira hasteada por alguns, o Realismo, a mais frágil de todas, porque é a negação mesma do princípio da arte.[...] Um poeta, Victor Hugo, dirá que há um limite intranscendível entre a realidade, segundo a arte, e a realidade, segundo a natureza. Um crítico, Taine, escreverá que se a exata cópia das coisas fosse o fim da arte, o melhor romance ou o melhor drama seria a reprodução taquigráfica de um processo judicial. 99
Machado ironiza abertamente a estética realista-naturalista, depois é claro de declarar a decadência do Romantismo. Sua posição é bem clara: o Realismo e sua tendência em pesar nas cores e na descrição minuciosa do real não correspondem ao papel da arte, posição esta mais definida em outro ensaio, Eça de Queirós: O Primo Basílio 100 , onde, ao analisar a obra do escritor português, Machado aponta uma “incongruência de concepção” 101 resultante da submissão do caráter da heroína, Luísa, ao “espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas” 102 do naturalismo. Chega a dizer que os que argumentam que Eça poderia ter expurgado algumas coisas para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou não vêem que o “realismo sem condescendência” 103 , calcado na sensação física, é a “medula da composição” 104 do livro. E aos que o condenam pela crítica, responde que não quer lecionar ou curar: “...exerço a patologia, não a terapêutica.” 105
A crítica é à composição do livro, não à pessoa de Eça de Queirós. Por extensão, a crítica é à estética naturalista e sua doutrina servil e taquigráfica de reproduzir a realidade sob o crivo do cientificismo positivista que submete ações e personagens à ideologia do determinismo de raça, meio e momento. No entanto, a crítica a um princípio que, naturalmente, também é
99 Idem, p. 813. 100 ASSIS, Machado de, Eça de Queirós: O Primo Basílio. In: -. Crítica. Obras Completas. 8 ed. Vol. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, pp. 903-913 101 Idem, p. 906. 102 Idem, p. 907. 103 Ibidem. 104 Ibidem. 105 Ibidem
ao sentido que revela esse princípio, é demais para a crítica brasileira (e mesmo portuguesa), sempre tão afeita às impressões estéticas e aos modismos filosóficos. O que para um artista como Machado de Assis, dedicado, obsessivo e consciente, é o dia-a-dia de sua labuta, para a crítica impressionista é estranhíssimo. Acreditamos que até hoje seja pouco compreensível a dicção construtiva da crítica machadiana, mesmo depois da entrada em nosso meio acadêmico de conceitos como o de procedimento da forma dos Formalistas Russos que nos mostra a indissolubilidade de forma e conteúdo e a primazia do fazer sobre o sentir ou o fruir.
Com relação à controvérsia com a estética realista-naturalista, ela é a prova de que não há em sua obra positivismo ou determinismo. O que nos leva a afirmar que, se na historiografia literária brasileira o Realismo se confunde com o Naturalismo por serem cientificistas e objetivistas 106 , Machado de Assis não é realista. E muito menos teve uma fase romântica. Seu estilo, como ficara entredito na crítica a’O Primo Basílio, é avesso às descrições e crítico mordaz das ideologias cientificistas ou idealistas. Apesar das polêmicas, hoje não é mais razoável, salvo entre alguns “críticos” que se aventuram a escrever bobagens 107 , que se discuta o estilo machadiano colocando de lado sua ambigüidade, sua tendência ao fragmentário, ao elíptico. Estranha também se torna a postura sociologizante ou partidarista de querer ver expostos abertamente temas sociais da época, com bandeiras demarcadas, quando é mais do que sabido hoje que o político do texto literário não está no que ele expõe, mas no como ele dispõe o texto e a realidade. Buscar em Machado um discurso político armado contra a escravidão é ser cego à radical crítica urdida silenciosa e causticamente nas suas entrelinhas não só à escravidão, mas também à constituição política do Brasil, à inércia da oligarquia dominante tão bem satirizada em suas personagens e às bases filosóficas que dão sustentação a essa ideologia, principalmente o positivismo. E Machado não 106 Na versão da historiografia literária tradicional, realismo e naturalismo são praticamente o mesmo movimento que, subordinado ao momento histórico, é marcado pelo objetivismo, pelo cientificismo, pelo positivismo. Tudo o que Machado de Assis satiriza. 107 Recentemente assistimos ao retorno da crítica ideológica rasteira e mal fundamentada. É o caso da obra do Prof. Flávio René Köthe. O Cânone Imperial. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001.
deixa, com seu estilo silencioso e irônico (por isso mesmo gritante), pedra sobre pedra. Seu estilo, no entanto, é, na aparência, tão gramaticalmente correto, tão lídimo, que a leitura desavisada se engana. Muitos viram na “pureza” desse estilo uma forma de se embranquecer, de se lavar de sua negritude, de querer ser branco ao menos na escrita. Olhar de uma ideologia dominante que, por ser também cínica, procura encontrar explicações aceitáveis ao que ela abomina. É também nesta senda que caminhou a didatização da obra de Machado nas escolas de ensino médio, dividindo-a em duas fases – uma romântica, outra realista – para torná-la palatável. O que essa leitura não percebe ou procura não perceber é que o político de Machado de Assis está na proporção direta da radicalidade de seu estilo, que deixa entredito, não-dito, um sentido radicalmente novo e inovador. Um estilo que mais fala quando cala, pois deixa-nos perplexos com o absurdo do universo regido pela lógica do ideológico e do estético, ambos anti-éticos.
O problema ideológico e social e sua forma de tratamento através de um estilo cheio de alusões e contradições encontrou, por sua vez, além da crítica fisiológica positivista, outras explicações ao longo da história da crítica de acordo com a fundamentação e a orientação do trabalho e do autor que o abordou. É o caso de uma linha de explicação que longa vida teve em nosso imaginário sobre a obra de Machado de Assis: a explicação psicológica. Trata-se, agora, de compreender o estilo através de fatos da vida e procurar explicar aspectos construtivos da obra como expressão do drama do próprio autor. Talvez a autora que mais tenha desenvolvido esta linha de abordagem da obra machadiana tenha sido Lúcia Miguel Pereira.
Sua leitura de Machado é toda fundamentada na biografia, chegando mesmo, em certos momentos, a um reducionismo psicológico que, por seu poder de fundamentar (forçosamente) e escarafunchar a vida do autor, pode nos dar a ilusão de ser verdade, apesar de não concordarmos com sua tese. Sua tese é a de que Machado encontrou no papel a válvula de escape para seus traumas do passado como criança pobre do Morro do Livramento: “Então o recurso apareceu, o papel, o papel amigo onde debateria todos os problemas” 108 . Suas personagens seriam, segundo a autora, a encarnação das
dúvidas da alma do escritor carioca e, em suas peles e no papel, ele
encarnaria esse drama:
Depois, com o tempo, foram vindo as dúvidas e os remorsos. Para os discutir consigo mesmo, Machado lançou mão do subterfúgio habitual dos romancistas: meteu-se na pele de Guiomar, a heroína de A mão e a luva, e procurou provar que os cálculos da ambição nem sempre são indícios de maus sentimentos, que não é impossível conciliarem-se o interesse e a nobreza do caráter 109 . [...] A preocupação do autor é sempre justificar os cálculos – e mostrar o valor da ambição. [E citando um trecho do romance]: ‘A vontade e a ambição, quando verdadeiramente dominam, podem lutar com outros sentimentos mas hão de sempre vencer, porque elas são as armas dos fortes, e a vitória é dos fortes’, diz ele comentando e aplaudindo o triunfo final dos dois ambiciosos. 110
É interessante que a abordagem psicológica, que deveria primar pela compreensão das alusões e subentendidos no diapasão crítico da ambigüidade, é a primeira a literalizar a voz do narrador, apontando-a como a própria voz do autor real. Passa, assim, por cima das contradições estruturais da narrativa que revelam a contradição não da alma do autor, mas da alma humana ao ser vista pelo olhar crítico da ficção. Fica clara a incompreensão do ludismo polêmico das vozes da estrutura irônica da narrativa machadiana.
Outro autor que caminha pelo veio psicologizante da crítica é Augusto Meyer. Em sua obra, A chave e a máscara 111 , defende a tese de que, “no romance machadiano, como esquema psicológico de composição, predomina a pseudo-autobiografia.” 112 Ainda na visão de Meyer, as narrativas em primeira pessoa seriam, justamente porque expressão da visão de um eu, a expressão mais acabada do esquema de composição supra-citado: “Brás
108 PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis – Estudo Crítico e Biográfico. 6 ed. rev. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.155. 109 Idem, p. 157. 110 Ibidem, p. 158. 111 MEYER, Augusto. A chave e a máscara. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1964. 112 Apud: BOSI, Alfredo; GARBUGLIO, J. C. et alii. Machado de Assis: Antologia e Estudos. São Paulo: Ática, 1982, p. 357.
Cubas, Dom Casmurro, Memorial de Aires pesam mais nos pratos da balança do que as duas tentativas de feito objetivo: Quincas Borba e Esaú e Jacó.” 113
Sua tese da “pseudo-autobiografia” como “esquema psicológico de composição” procura deflagar nos romances “a construção de um simulacro de vida confessada”, “a permanência do tom subjetivo” que aponta para um homem subterrâneo na alma do escritor, que o persegue em sua obra 114 . E mesmo que toque em elementos fundamentais da construção do romance machadiano, não lhes dá a devida importância por estar em busca do eu por trás do eu do autor. É o que notamos, por exemplo, em vários momentos onde aponta a falta de coragem de Machado “de cortar ou moderar as digressões do autor”, o que impediria “um mais perfeito acabamento na composição” 115 . Sua busca também se utiliza de referencial teórico moderno, como o conceito de ponto-de-vista de Percy Lubbock, mas acaba reduzindo-o, sendo coerente com sua própria tese, ao ponto-de-vista monocórdico do autor. Mesmo deflagrando a composição irônica: “Da ambigüidade irônica – e podemos dizer que a ambigüidade é o seu tema essencial – decorre o prismatismo dessa obra, onde há muitas acomodações para muitos leitores” 116 , insiste em sua tese que, ainda que o não impeça de ver a ambigüidade estrutural da narrativa, não se descola de uma busca que confunde a estrutura do romance com a psicologia do autor, mesmo que elaborada de maneira rebuscada como a tese do eu subterrâneo (o que nos leva a discordar dessa concepção):
Aguçado ao extremo o campo visual da pesquisa, aparece a imagem de um eu dúbio, “errata pensante” que é e não é o autor. Todo ele se envolve em um casulo de reticências e interrogações, para cultivar a arte dos graciosos desmentidos. De um ponto de vista psicológico, portanto, o crítico é levado a sustentar que o tema principal da obra é o próprio autor, tais e tantas as suas interferências no entrecho romanesco. ‘Ainsi, lecteur, je suy moy-même la matiére de mon livre’, daria a entender. Mas a crítica de conteúdo, sempre viciada de prenoções, acaba desse modo confundindo a obra-de-arte
113 Idem. 114 Ibidem. 115 Ibidem, p. 359. 116 Ibidem, p. 363.
literária com a pura autobiografia, ou a simples tentativa de auto-retrato psicológico” 117 .
Sob o pretexto de um eu subterrâneo, Meyer diz não fazer crítica psicológica. Mas a relação entre texto e personalidade do autor insiste por detrás da tese do “eu subterrâneo”, do “eu dúbio”. Isso é interessante, porém não explica a dinâmica do texto.
Se então Augusto Meyer invoca Dostoiévsky em sua teoria do homem subterrâneo para explicar a complexidade da psicologia que se revela na obra machadiana, Barreto Filho, também sem conseguir sair do psicologismo, irá invocar o espírito da tragédia de Nietzsche para explicar a obra do autor carioca. Em sua obra Introdução a Machado de Assis 118 , Barreto faz uma longa biografia introdutória onde procura demonstrar que a visão de mundo que se encontra nos romances, contos e crônicas de Machado, pode ser rastreada em elementos da sua biografia, naquilo que aponta como uma formação gradual de uma “visão trágica do mundo”. Para o autor, o Machado dos saraus e teatros da primeira juventude já traz dentro de si – graças a elementos da infância como a morte prematura da mãe, posteriormente do pai, aperturas financeiras – o que virá a ser o homem com “sobriedade de espírito e temperança dos sentidos” da idade madura, que coincide principalmente com a fase que se abre com Memórias Póstumas. Sua sobriedade enquanto personalidade corresponde à visão trágica que se contrapõe à visão “derramada” do romantismo e exagerada do naturalismo.
A afirmativa de que Machado é um autor que biograficamente desenvolve uma visão trágica do mundo se confunde então com a própria visão estética: Machado seria um autor trágico. E aqui Barreto Filho consegue demonstrar o que desde o início do livro vem afirmando: ao contrário da tibieza do Romantismo e da objetividade científica do Naturalismo, Machado de Assis desenvolveu uma outra objetividade, a objetividade dos clássicos, da sobriedade que irá se manifestar em seu espírito trágico:
117 Ibidem. 118 FILHO, Barreto. Introdução a Machado de Assis. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1980.
O Romantismo favorecia as experiências individuais, desligadas da tradição artística, corrompia o senso de universalidade acentuando a tendência local e nacionalista, perdia de vista o homem e seus problemas essenciais, para considerar a natureza no seu pitoresco e na sua barbaria, a fundar a arte no sentimento. A poesia romântica era uma expansão sentimental ou um gosto da sensação, enquanto a chamada arte naturalista tinha como norma a materialização do impulso poético, uma preferência pelos aspectos torpes da vida. Suportando a pressão de ambos, Machado salvou entre nós a linha da universalidade e o padrão da grande arte, fato que o colocou no centro ou antes no ápice de sua época, como um ponto eminente ao qual tem de se referir a todo momento a nossahistória literária. É um gênio tutelar das nossas letras, porque impedirá sempre, enquanto for lido, que as novas gerações cedam à tentação que se renova em cada época, de fazer da arte um instrumento de propaganda, ou lhe dar qualquer outra aplicação extrínseca. Ele não somente o formulou, mas se constituiu num portador vivo daquele conceito de que a arte é a única coisa que tem o fim em si mesma. 119
Ou ainda em outro trecho:
O que fascina na personalidade de Machado de Assis é um encontro com um representante genuíno do espírito trágico. Reconhecemos nele um exemplar dessa raça superior que penetrou a essência dolorosa da vida, destruindo impavidamente as aparências. E que isso tenha ocorrido em nossa literatura, é coisa que nos desvanece. A presença do trágico é, com efeito, sintoma de grande maturidade, porque está sempre ligada à época clássica de uma nação, ao apogeu e equilíbrio de suas forças. O artista trágico cria então os modelos que hão de sobreviver e inspirar a alma popular, retificando a consciência e o caráter da coletividade. 120
Barreto Filho, apesar de embasar sua tese na leitura do conceito
nietzschiano de tragédia, reduz tanto a obra, quanto o autor e o próprio
conceito de trágico a uma visão pessimista e maniqueísta que não se
apresenta nem na tragédia nem na obra do pensador alemão, por isso não
cabendo também à obra de Machado. É o que o leva a interpretar
precipitadamente a tragédia e o homem dionisíaco através de uma visão que
119 Idem, p. 62. 120 Ibidem, p. 97.
esbarra o tom moralizante: “A contemplação da verdade faz com que não percebam mais em tudo senão o absurdo e o mal da existência” 121 . No senão se apresenta uma exclusividade negativa da tragédia, “o absurdo e o mal da existência”, que não se coadunam à controvérsia entre dionisíaco e apolíneo, claro e escuro, vida e morte que o espírito da tragédia solicita sem que haja a preponderância de um elemento sobre o outro. E aqui está nosso senão a Barreto Filho: abordando a obra de Machado de Assis a partir de um referencial teórico que suporta a sua ambigüidade estrutural, o reduz a uma visão que não condiz com esta mesma complexidade. Barreto Filho acabou por compreender a estrutura dialética de Machado de Assis de maneira lógica, mesmo se utilizando de um referencial teórico dialético. Sua leitura preparou todo o arcabouço de compreensão, mostrando a presença de uma concepção tragi-cômica da literatura em Machado, mas não soube chegar às conclusões a que sua teorização levava, reduzindo a tensão entre cômico e trágico ao ocaso das ilusões do pessimismo.
E este é um erro de leitura que parece se repetir ad nauseam na crítica brasileira. Talvez por não ter uma tradição filosófica forte que a sustente, não está afeita a uma teoria dialética realmente dialética, mas sempre busca uma dialética sintética que não condiz com o universo da literatura. O problema é que o discurso poético é o único discurso que se projeta para fora do círculo maniqueísta da lógica ocidental, além, é claro, do discurso religioso – religioso no sentido mistérico da palavra, não no moralista, o que, no entanto, não é nosso tema aqui e agora. Somente filósofos poetas ou um poetar pensante podem compreender esta especificidade.
Parece-nos que veremos, por isso, a mesma redução à psicologia do autor até mesmo em obras tão comentadas como a de Afrânio Coutinho 122 . O renomado crítico parece ter feito uma leitura pascaliana de Machado de Assis e não uma leitura machadiana de Pascal. Pois é assim que se dá o problema da influência na obra de arte: não é a filosofia que determina a obra,
121 Ibidem, p. 98. 122 COUTINHO, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.
mesmo que o autor lhe faça referência, mas é a obra que re-elabora a teoria dentro da sua forma própria de ser enquanto ficção. Se deflagramos a pluralidade de vozes e máscaras dentro do universo ficcional machadiano, não podemos afirmar que a referência a um autor pessimista determine o pessimismo da obra, pois o pessimismo é jogado no coro das vozes da narrativa, sendo seu valor relativizado pelo texto. Mais questionável ainda é, ao ler um texto, afirmar, através da voz do narrador ou através do universo ficcional, o que pensava ou não seu autor. E é isso o que fez Afrânio Coutinho: Machado tinha uma visão do mundo ensombreada pelo pessimismo. Só enxergava o lado mau da natureza humana. É nisto que consiste verdadeiramente o seu pessimismo. 123
Ou ainda:
Machado só via no mundo misérias e dores, maldades e sofrimentos. Não enxergava o que há de grandeza na vida, não sabia apreender, por incapacidade espiritual, e por tenebrosos ressentimentos íntimos, o que a vida, por momentos, apresenta de grandeza. Não acreditava na grandeza humana. 124
E, com relação ao seu humorismo:
O humorismo de Machado é uma válvula de escapamento da sua angústia e dos recalques da sua alma, acumulados através das injustiças da vida, da maldade humana, do sofrimento físico e moral, do espetáculo do mundo. É o disfarce da própria miséria pelo riso dos ridículos alheios. 125
Toda a complexidade e a riqueza do jogo narrativo e do humorismo são reduzidas a uma “válvula de escapamento” da angústia do autor. Claramente está colocada uma explicação biográfica do humorismo que
o subordina aos complexos psicológicos e à amargura da vida, sem entendê-lo em sua dinâmica poética.
123 Idem, p. 26. 124 Ibidem, p. 28. 125 Ibidem, pp. 30-31.
A aprendizagem da leitura do silêncio da obra machadiana foi,
portanto, longa e laboriosa. Não fora apenas o silêncio, pois não se trata
apenas de ter o não-dito como um enigma, mas a especificidade do não-dito
sua reversibilidade, sua tensão harmônica dos contrários -, a tarefa teria sido
mais fácil. Não nos surpreende, por isso, encontrar nas mãos de um mestre da
crítica como Antonio Candido um dos primeiros e decisivos gestos de
deflagração da complexidade ao nos mostrar a ponta do novelo do estilo
silencioso e irônico de Machado. Em ensaio sobre o autor, afirma:
Logo que ele chegou à maturidade, pela altura dos quarenta anos, talvez o que primeiro tenha chamado a atenção foram a sua ironia e o seu estilo, concebido como “boa linguagem”. Um dependia do outro, está claro, e a palavra que melhor os reúne para a crítica do tempo talvez seja finura. Ironia fina, estilo refinado, evocando noções de ponta aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isso se associava uma idéia geral de urbanidade amena, de discrição e reserva. Num momento em que os naturalistas atiravam ao público assustado a descrição minuciosa da vida fisiológica, ele timbrava nos subentendidos, nas alusões, nos eufemismos, escrevendo contos e romances que não chocavam as exigências da moral familiar. 126
Não há nada de comportado no estilo machadiano como pode enganosamente parecer a partir da leitura da última frase. A finura ea ironia de seu estilo são mordazes. Sua obra não choca a moral da época com os quadros grotescos do naturalismo, mas ri e ironiza dessa mesma moral e seu pequenino mundo de convenções, como, por exemplo, no conto O Espelho, em que o personagem central, o alferes Jacobina, descobre ser literalmente nada sem sua farda, que, na lógica do conto, é sua alma exterior que se confundiu com a interior, o que nos diz ironicamente que o papel social tão aceito pelos familiares e amigos é a própria cifra da alienação mental e social do personagem. Ou ainda em Quincas Borba quando Rubião, vestindo a alma exterior do humanitismo, se perde no papel do rico capitalista que a todos compra e torna cifras, mas que enlouquece justamente no auge desta sua
126 CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:__. Vários Escritos. 3 ed. revista e ampliada. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, pp. 21-22.
atuação, morrendo louco e pobre, sob a mira da ironia impiedosa do riso do
narrador. Quem tudo comprava não é nada diante da corrosão trágica do
destino e da representação irônica do romance. O riso do narrador é impiedoso
e sua ironia mostra-nos quão cômica é a tragédia de um idiota. Esta
ambigüidade ou complementaridade dos contrários, cômico e trágico, real e
ficção, será ainda apontada por Antonio Candido como elemento central na
obra de Machado de Assis, constituindo aquilo que o crítico aponta como a
“reversibilidade” do universo do autor:
Outro problema que surge com freqüência na obra de Machado de Assis é o da relação entre o fato real e o fato imaginado, que será um dos eixos do romance de Marcel Proust, e que ambos analisam principalmente com relação ao ciúme. A mesma reversibilidade entre a razão e a loucura, que torna impossível demarcar as fronteiras e, portanto, defini-las de modo satisfatório, existe entre o que aconteceu e o que pensamos que aconteceu. Um de seus romances, Dom Casmurro, conta a história de Bento Santiago, que, depois da morte de seu maior e mais fiel amigo Escobar, se convence de que ele fora amante de sua mulher, Capitu, o personagem feminino mais famoso do romancista. A mulher nega, mas Bento junta uma porção de indícios para elaborar a sua convicção, o mais importante dos quais é a própria semelhança de seu filho com o amigo morto. Uma estudiosa norte-americana, Helen Caldwell, no livro The Brazilian Othelo of Machado de Assis, levantou a hipótese viável, porque bem machadeana, de que na verdade Capitu não traiu o marido. Como o livro é narrado por este, na primeira pessoa, é preciso convir que só conhecemos a sua visão das coisas, e que para a furiosa “cristalização” negativa de um ciumento, é possível até encontrar semelhanças inexistentes, ou que são produtos do acaso (como a de Capitu com a mãe de Sancha, mulher de Escobar, assinalada por Lúcia Miguel Pereira). Mas o fato é que, dentro do universo machadeano, não importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a conseqüência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói a sua casa e a sua vida. E concluímos que neste romance, como noutras situações de sua obra, o real pode ser o que parece real. E como a amizade e o amor parecem mas podem não ser amizade nem amor, a ambigüidade gnosiológica se junta à ambigüidade psicológica para dissolver os conceitos morais e suscitar um mundo escorregadio, onde os contrários se tocam e se dissolvem. 127
A “ironia fina” e o “estilo refinado” de Machado de Assis, sua finura, estão em consonância com o conceito de ironia que buscamos na leitura de sua obra. O conceito de reversibilidade, por sua vez, passa a marcar a ambigüidade dialógica na abordagem da obra machadiana depois deste estudo. Sem contar a clara relação que encontramos com o anteriormente citado estudo da ambigüidade epistemológica (aqui gnosiológica) da obra de Henry Fielding apontada por John Preston no capítulo I desta tese.
Uma vez, porém, detectados a ironia e o humorismo, ainda assim não estamos aptos a deflagrar o sentido aberto por essa verificação. É o que acontece com obras que retomam o aspecto retórico e mesmo psicológico como explicação da ironia, chegando à conclusão de que seu humorismo é pessimista e de que é fruto de recalques raciais e sociais, como anteriormente vimos. Essa abordagem de cunho bio-psicológico da ironia e do humor machadianos só será superada quando dos estudos da relação de sua obra com a tradição satírica de Menipo de Gadara, de Luciano de Samósata e seu legado em Erasmo de Roterdã, François Rabelais, Miguel de Cervantes e ainda no Romance Inglês do Século XVIII. Nessa linha de abordagem, destacam-se os estudos de José Guilherme Merquior, Sônia Brayner, Enylton de Sá Rego, Marta de Senna, Dirce Côrtes Riedel, entre outros 128 .
Antes, porém, de passarmos em revista a esses autores, gostaríamos de lembrar a outra obra pioneira na abordagem dialética do universo de Machado de Assis; anterior, inclusive, a Antonio Candido. Trata-se da obra de Astrojildo Pereira, Machado de Assis: Ensaios e Apontamentos Avulsos, publicada em 1958 129 . Em capítulo magistral sobre o pensamento
127 Idem, pp. 30-31. 128 MERQUIOR, José Guilherme. Gênero e Estilo nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Colóquio (1972) 8: 12-20; BRAYNER, Sônia. Labirinto do Espaço Romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1977; REGO, Enylton de Sá. O Calundu e a Panacéia (vide acima nota 4); SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do bruxo (vide nota 4); RIEDEL, Dirce Côrtes. Metáfora: o espelho de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. 129 PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis: Ensaios e Apontamentos Avulsos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1948.
dialético da obra de Machado de Assis, “Pensamento Dialético e Materialista”,
Astrojildo assinala os contrastes entre a realidade e a ficção machadiana,
apontando-a como a grande tradução da realidade nacional justamente pelo
princípio da representação dialética da percepção ocular das coisas e do real.
Para o crítico carioca, o princípio dialético de problematização do real pela
ficção machadiana se apresenta e se representa em todas as suas obras:
A obra de Machado de Assis, livro por livro, página por página, ficção e crônica, prosa e verso, se desenvolve toda ela segundo uma linha quebrada ou sinuosa de movimentação dialética. Tudo nela é contraste, contradição, conflito, formas as mais diversas da dialogação social, reflexos do próprio jogo da vida em sociedade – essa vida que um de seus personagens definiu como sendo “uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios.” 130
Mais do que assinalar a apreensão dialética da realidade pela
ficção machadiana, Astrojildo Pereira se notabiliza por demonstrar que a obra
do ficcionista carioca é a melhor tradução da realidade nacional, fundando o
nacionalismo crítico, porque a própria realidade é uma contradição:
Era Machado de Assis um homem bom, um homem mau? O ponto preliminar a esclarecer neste caso é o seguinte: o fato de botar a nu a crueldade, a dissimulação, a hipocrisia, as pequenas vaidades e os secretos apetites de homens e mulheres observados na sociedade, e revividos em contos e romances, significa que o psicólogo, que estuda e desnuda o caráter alheio, seja ele próprio portador das taras e defeitos que analisa? Outra pergunta: o fato de alguém possuir tão agudo dom de análise é em si mesmo um defeito ou uma tara? Parece-me claro que não. Seria o mesmo que atribuir ao cirurgião a malignidade do tumor que ele rasga e extirpa do enfermo. 131
Astrojildo Pereira desengana a crítica de cunho psicológico e abre
uma nova quadra da crítica machadiana: a crítica dialética. Mostra-nos,
portanto, que a contradição está em toda parte, tanto na obra como no mundo
com que a obra de Machado de Assis dialoga:
130 Idem, p. 167. 131 Ibidem, p. 198.
A contradição está em toda parte – eis um fenômeno de constante verificação no trato das coisas e das gentes. Seu reflexo nos escritos de Machado corre parelha com os fatos observados, repetindo-se freqüentemente na mesma ou parecida frase – “a contradição é deste mundo.” 132
Uma vez tendo apresentado a contribuição decisiva de Astrojildo Pereira à fortuna crítica machadiana e verificado sua consonância com a reversivilidade de Antonio Candido, retomemos aquele ponto do problema que deixamos anteriormente em suspenso para mais tarde retornarmos a ele. Trata-se da relação entre a obra do escritor em questão e o universo do sério-cômico da tradição satírica. O primeiro autor que citamos e um dos pioneiros nesta abordagem foi José Guilherme Merquior. A novidade do estudo de Merquior é a de aproximar a leitura da obra de Machado do referencial teórico de Mikhail Bakhtin. Merquior afirma que as Memórias Póstumas de Brás Cubas são “um representante moderno do gênero cômico-fantástico” 133 e apresenta uma lista de características que colocariam o autor como um satirista. Entre essas características estão a ausência do distanciamento enobrecedor que, na epopéia e na tragédia, exalta os personagens e suas ações; a mistura do sério e do cômico; a não-observância da verossimilhança; a presença de estados psíquicos aberrantes; e o uso de gêneros misturados. Seguindo a deixa do autor implícito de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Merquior relaciona as Memórias com o seu precursor citado na obra, Laurence Sterne, principalmente em seu The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman 134 . Observa, contudo, que dois elementos diferem Machado do romancista inglês do século XVIII: “a feição filosófica e sardônica do humorismo machadiano” e “a natureza fantástica da situação narrativa” das Memórias, com seu defunto-autor. A aproximação de Merquior é bastante pertinente, pois efetivamente o Tristram Shandy é uma das variações
132 Ibidem, p. 171. 133 MERQUIOR, J. G.. Op. Cit., p.13 134 STERNE, Laurence. The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman. London: Penquin Books, 1985. Também em excelente tradução para o português do poeta, crítico e ensaísta José Paulo Paes: STERNE, Laurence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
modernas da paródia da motivação realista, aproveitando-se dos elementos satíricos para construir seu universo ficcional; mas ainda assim Merquior irá mal-interpretar sua descoberta ao falar de pessimismo na visão sardônica de Machado, sem levar em consideração o aspecto não-sintético da sátira menipéia, aspecto esse que o próprio Bakhtin irá salientar.
Para outra autora que trabalha nessa linha de pesquisa, Sônia Brayner, a obra machadiana apresenta como desafio uma “tendência à estrutura ficcional dialógica” 135 . Machado assimila a cultura literária anterior e a re-articula em sua própria obra. Como resultado do dialogismo, tomado à Bakhtin como princípio de subversão, Machado produz um texto contestatório e polifônico, dominado pela ambivalência. Nesse sentido, aponta a ironia como conceito fundamental na leitura de sua obra.
A ironia revela duas idéias segundo Brayner: “a capacidade de auto-representação da obra-de-arte” e “a idéia de que o artista cria de forma consciente mas também inconsciente” 136 . Para a autora, Machado de Assis é o primeiro a trazer para a literatura brasileira a ironia e a paródia como princípios de composição da narrativa. Porém, assim como a tradição crítica anterior, Merquior e Brayner também submetem – desta vez não por motivos biopsicológicos, mas filosóficos – a ironia a uma visão pessimista da existência. Segundo Brayner:
Machado de Assis é o grande intérprete da ironia como contradição existencial na literatura brasileira do séc. XIX. Sua obra – das primeiras crônicas e contos aos últimos romances – encerra uma evolução sempre contínua em direção à atmosfera de niilismo, de pessimismo, de radicalização fundamental frente à essência da vida e dos seres. 137
Sob o ponto-de-vista construtivo, o autor dá ênfase à paródia como processo dialógico e ironicamente metaficcional, apontando o narrador como a instância que comanda a estrutura ficcional. Aponta também a filiação de Machado à tradição dos humoristas ingleses do século XVIII, sobretudo
135 BRAYNER, Sônia. Op. cit., p. 53. 136 Idem, pp. 102-103. 137 Ibidem, p. 103.
Sterne, Fielding, Thackeray. Mas, ainda assim, interpreta na radicalidade da ironia do autor das Memórias Póstumas um problema de pessimismo: “O humour típico dos ingleses, absorvido pelo pessimista Machado, é a mais radical forma de ironia, a consciência cética do absurdo da vida.” 138
Não podemos concordar como essa conclusão. Acreditamos que
o absurdo e a contradição da vida sempre foram e sempre serão tematizados e representados pelo humorismo, porém não aceitamos que esta seja uma visão pessimista e niilista, uma vez que a contradição não é excludente, mas harmoniza o sim e o não, o sentido e o não-sentido, o sério e o cômico, constituindo assim um horizonte em que no seio da tragédia o autor e o leitor são jogados pelo riso que toma consciência do absurdo e nos revela o sentido contraditório da vida. Quer dizer, a leitura de Merquior e Brayner dialogizou o processo de compreensão, mas não fez o mesmo com o sentido.
Coube a resolução desse problema a Enylton de Sá Rego 139 que, submetendo toda a crítica anterior a acurado escrutíneo sob a ótica da tradição da sátira menipéia, desvela um princípio fundamental dessa tradição: “ o estatuto ambíguo e o caráter não-moralizante da maior parte de sua [Luciano] sátira, na qual nem o elemento sério nem o elemento cômico tem preponderância, mas apenas coexistem.” 140
Seguindo o dialogismo como princípio, não poderia haver a preponderância – no sério-cômico – nem do sério nem tampouco do cômico. O elemento dialógico pertence a uma tradição não-sintética que não resolve o contraste dos elementos pela submissão de um a outro. O dialógico não é dialético, pelo menos não no sentido hegeliano moderno de dialética. Por isso, Hegel não aceitou a ironia schlegeliana, pois como o próprio Schlegel diz: a ironia é a análise de tese e antítese (não a síntese) 141 . A tradição não-sintética do spoudogeloion 142 não se coaduna à tradição sintética da dialética hegeliano
138 Ibidem, p. 105. 139 Vide nota 4. 140 REGO, Enylton de Sá. O Calundu e a Panacéia, p. 45. 141 Vide nota 72. 142 A palavra vem do grego σπουδογήλοιον e é citada em Mikhail Bakhtin como “ o domínio do sério-cômico”. Vide: BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini et alii. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1988, p.
lukácziana do romance como mímesis da história 143 , aí se encontrando inclusive a razão da não-aceitação por Georg Lukácz da novidade paródica dos romancistas modernos que culmina com a experiência mirabolante de escritura em James Joyce.
Enfim, se o romance pertence a uma tradição dialógica, não pode haver em sua ironia um pendor pessimista, pois tanto a euforia criativa quanto a disforia reflexiva se harmonizam tensionalmente. Em outros termos: não pode ser pessimista a ironia machadiana, uma vez que não aponta para uma visão acabada do real, mas para o questionamento das visões ideologicamente definidas e desvela um jogo constante entre dito e não-dito, entre ser e não-ser, em construção no horizonte do texto e dinamicamente transformador do real. Quanto a seu aspecto existencial, não aponta para um homem irremediavelmente sórdido e hipócrita, mas descobre na ironia da hipocrisia social e existencial a possibilidade de o homem se ver no espelho crítico que desdobra a transformação de sua visão e, no processo da leitura, da visão do leitor, em consonância com a mudança e transformação do narrador que, prodigalizado pela dinâmica fantástica da morte e subseqüente revelação da máscara irônica do defunto-autor, se ironiza e se transmuta no processo da escritura, passando a estranhar -e, em seu olhar, transformar -tudo e todos que o cercam.
*
Na senda da leitura que relativiza o absoluto maniqueísta das respostas lógicas, uma outra obra foi de fulcral importância para a crítica. Trata-se do estudo da norte-americana Helen Caldwell, The Brazilian Othelo of Machado de Assis 144 , que se notabilizou por mudar o eixo da leitura de Dom Casmurro ao argumentar que o narrador não merece credibilidade quando
412. 143 Vide: LUKÁCZ, Georg. Teoria do Romance (Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica). Tradução, posfácio e notas José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. 144 CALDWELL, Helen . The Brazilian Othelo of Machado de Assis ( A study of Dom Casmurro). Berkeley-Los Angeles, University of California Press, 1960. Agora em tradução brasileira: CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado do Assis. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002.
afirma o adultério de sua esposa Capitu, pois “a ironia não está nele ter sido
enganado por Capitu, mas por ter sido enganado por si mesmo.” 145
Caldwell aproxima a obra de Machado da obra de Shakespeare e
mostra que a distorção da certeza em incerteza, do “lenço de Desdêmona” em
“fantasia de semelhança”, denuncia a ambigüidade como princípio dramático
de construção de Dom Casmurro. Mostra-nos ainda que “a desconfiança de
Santiago em relação a Capitu é a urdidura de sua narrativa” 146 , mas que sua
voz não é a única que constrói o relato, pois este é contrapontuado pela voz de
um autor anônimo – segundo a autora, uma intromissão do próprio Machado
de Assis – que desdiz o que o narrador diz:
Mas há um personagem de alguma proeminência, cujo nome Santiago retém deliberadamente, e faz tanto alvoroço em torno da retenção do nome que nossa curiosidade é atiçada. Estou me referindo ao autor anônimo do Panegírico de Santa Mônica. Por que esta lacuna? E por que esse homem de nome desconhecido é introduzido no enredo com seu panegírico, no fim das contas? Será esse episódio uma digressão? Por que Machado de Assis, um dos mais parcimoniosos escritores, permitiria tal digressão nesta que é sua obra-prima, e uma obra-prima da parcimônia? Por que, ao que parece, ele não permite interferir, devido ao método adotado na construção do romance. 147
Sob o impacto dessa revelação, outro crítico nos apresenta o desequilíbrio estrutural que intensifica a ambigüidade como princípio construtivo do universo machadiano. Trata-se de Silviano Santiago em seu artigo A Retórica da Verossimilhança 148 . A questão central para Santiago é que a narrativa machadiana, especialmente em Ressurreição -que foi o livro por ele estudado nesse ensaio, em diálogo com Dom Casmurro -, submete a razão à retórica ao narrar não o que é racionalmente verdadeiro, mas o que, no discurso, parece verdadeiro, verossimilhante. O jogo entre verdade e retórica funda a retórica da ironia de Machado que, em Ressurreição, brinca, através
145 Idem, p. 54. 146 Idem, p. 38. 147 Idem, p. 194.. 148 SANTIAGO, Silviano. A Retórica da Verossimilhança. In: -. Uma literatura nos trópicos. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, 27-47.
do domínio do saber do narrador, com o saber do leitor e dos personagens.
Santiago revela o jogo dramático de saberes envolvidos na encenação do
romance machadiano, enfatizando o que chama de “retórica da
verossimilhança”, isto é, a capacidade do narrador de narrar não fatos, mas a
representação da possibilidade de acontecimento dos fatos e do real, que gera
a ambigüidade irônica do narrador sobre o universo narrado. Enfim, Machado
não narra fatos, mas a possibilidade de acontecimento dos fatos.
Narrar a acontecibilidade e deixar falar concomitante e
tensionalmente o acontecido e o não-acontecido, eis a trama irônica da
narrativa de Machado de Assis. Em outros termos, narrar a acontecibilidade
dos fatos significa narrar representando as possibilidades do real e não apenas
o real. Está em jogo aqui o conceito de mímesis, não como cópia da realidade,
mas como representação do que poderia acontecer, acepção aristotélica que
grande influência exerceu sobre o romance moderno desde Cervantes 149 .
Juracy Assmann, em outro estudo que vem se afirmando diante
da crítica, apresenta, apetrechada e respaldada por importante referencial
teórico, o projeto estético de Machado de Assis fundamentado na relação
narrador e leitor 150 . Passando em revista a vasta bibliografia teórica sobre a
narração e o narrador desde Percy Lubbock 151 até os estruturalistas, sem
149 Referimo-nos à passagem da Poética no capítulo IX: “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.”(ARISTÓTELES. Poética. 2 ed. Tradução, Prefácio, Introdução, Comentário e Apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, p. 115.) Em interpretação original dessa passagem nos afirma Luigi Pareyson: “L’essenziale dell’argomentazione aristotélica è che il falso può diventare credibile, e quindi coerente, e perciò artístico.”(PAREYSON, Luigi. Il verissimile nella Poetica di Aristotele. In: -. L’Esperienza Artística. Milano: Marzorati Editore, 1974, p. 33.) Essa afirmação vai ao encontro das palavras do próprio Machado de Assis anteriormente apresentadas na página 24. Sobre sua relação com a tradição de Cervantes, ver a excelente dissertação de mestrado de Robson André da Silva, O jogo da ficção e da realidade em Don Quijote de la Mancha (UnB, 2001). Ou ainda: FORCIONE, Alban K. Cervantes, Aristotle and the Persiles. Princeton: Princeton University Press, 1970. 150 SARAIVA, Juracy Assmann. O Circuito das Memórias em Machado de Assis. São Paulo: Edusp/São Leopoldo: Editora Unisinos, 1993.151 O estudo de Percy Lubbock, The Craft of Fiction (1922), se notabilizou na década de 1920 por ter apresentado a diferença entre a forma telling e showing de narrar. O próprio título, A técnica da Ficção, já traz o intuito de apresentar um divisor de águas mais técnico para a ficção, que seria a obra de Gustave Flaubert, Madamme Bovary, e a de Henry James, com o conceito de refletor narrativo, uma das formas dramáticas mais revolucionárias da ficção contemporânea.
deixar de lado os formalistas russos, Assmann discute com clareza o estatuto ficcional do romance e demonstra a posição nuclear do narrador no processo de sua construção, com a decorrente necessidade de se estabelecer com precisão o tipo de mediação que ele engendra para uma correta interpretação do significado da narrativa.
Assmann conclui seu capítulo de embasamento teórico com as seguintes premissas para a entrada na obra de Machado de Assis: Enquanto ato produtor da narrativa, o discurso só se formaliza pela mediação de um agente, que se torna, então, responsável por sua enunciação. O narrador é esse sujeito, e para ele convergem todos os componentes do processo discursivo. 152
Fundamentalmente Assmann percebe o conúbio indissolúvel entre narrador e leitor, entre o método da apresentação épica do narrador e o dramático, em que se expõe a máscara do comentarista ou do autor-intruso, marcando a união de narração e reflexão e a necessidade de o leitor fazer a ponte do processo de leitura. Enfim, nas palavras da autora: Quando a apresentação dos acontecimentos ocorre como reflexo da experiência do narrador onisciente ou de uma personagem, seu tratamento é pictórico-dramático, isto é, ajustam-se os pontos-de-vista do narrador e do leitor, pela confluência do ‘narrar’ e do ‘mostrar’. 153
Ainda no âmbito da crítica preocupada com a complexidade do ato enunciativo em Machado de Assis, encontram-se dois outros textos que apresentam conclusões diversas ou mesmo contrárias. Trata-se do importante estudo de Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo (Machado de Assis) 154 , e do mais recente ensaio de Ronaldes de Melo e Souza sobre o assunto, “O estilo narrativo de Machado de Assis” 155 .
152 SARAIVA, Juracy Assmann. Op. Cit.,p. 34 153 Idem, p. 30. 154 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo (Machado de Assis). São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1990. 155 SOUZA, Ronaldes de Melo e. O Estilo Narrativo de Machado de Assis. In: SECCHIN, Antônio Carlos; ALMEIDA, José Maurício Gomes de; SOUZA, Ronaldes de Melo e. (Org.) . Machado de Assis – uma Revisão. Rio de Janeiro: Editora In-Fólio, 1998, pp.65-79.
Roberto Schwarz notabilizou-se por respaldar sua crítica no
marxismo e na teoria lukacziana do romance. Crítico habilidoso, de viés
sociológico, Schwarz procurou relacionar o problema ideológico da classe
dominante brasileira do final do século XIX com a técnica narrativa de
Machado. Chegou, assim, ao princípio da volubilidade do narrador, que se
enuncia:
O movimento se completa no plano da forma, pela babel das modalidades literárias: trocam-se estilos, escolas, técnicas, gêneros, recursos gráficos, tudo comandado pelo mesmo afã de uma superioridade ‘qualquer’. Assim, a narrativa passa do trivial ao metafísico, ou vice-versa, do estrito ao digressivo, da palavra ao sinal (o capítulo à moda shandyana, feito de pontinhos, exclamações e interrogações), da progressão cronológica à marcha-à-ré do tempo, do comercial ao bíblico, do épico ao intimista, do científico à charada, do neoclássico ao naturalista e ao chavão surrado etc. etc. Os contrastes são inúmeros, entre frases, entre parágrafos, entre capítulos, mas o efeito visado é um só, a satisfação da mesma constante veleidade. Mais que baixo contínuo, esta é a mediação geral que dá pertinência, pelo toque insensato, aos materiais do romance. Digamos então que no curso de sua afirmação a versatilidade do narrador faz pouco de todos os conteúdos e formas que aparecem nas Memórias, e os subordina, o que lhe proporciona uma espécie de fruição. Neste sentido a volubilidade é, como propusemos no início destas páginas, o princípio formal do livro [Memórias Póstumas de Brás Cubas]. 156
Enumerando versatilmente todas as modulações e modalidades
do estilo do narrador das Memórias Póstumas, Schwarz nos demonstra que a
narrativa machadiana obedece a um ritmo de metamorfose vertiginoso. Atribui
a essa mudança a volubilidade como princípio. Volubilidade do narrador,
entenda-se. Isto é, a transmutação constante do discurso é a forma como
Machado representaria a falta de postura ideológica definida do seu narrador,
que é, por sua vez, a versão post mortem do personagem, que é, enfim, um
membro da elite social brasileira. A redução estrutural a que o autor submete o
romance é fruto de um problema histórico-sociológico. Estranhamente o crítico
submete de forma mimética um problema “estrutural” ou construtivo a um
156 Idem, pp. 30-31.
problema social. Em nosso ponto-de-vista, a observação e delimitação do estilo
de apostilar e parodiar várias formas do discurso é acertada, mas subordiná-la
sem outras mediações a um espelhamento direto do real é um tanto quanto
reducionista. A conseqüência principal desse espelhamento é a afirmativa de
que o narrador machadiano representaria a falta de postura ou indefinição
ideológica da classe dominante brasileira a que ele pertenceria e que, por isso,
representaria. Quer dizer, o estilo vertiginoso da mudança de máscaras seria
fruto de uma alienação ideológica do narrador, marcando sua neutralidade ou
alienação políticas.
Acreditamos, porém, que seja justamente o contrário o que ocorre
aqui. O não marcar uma voz definida é satirizar e ironizar a ideologia
dominante, por precisamente parodiar sua impostura. As vozes do narrador
mudam não porque ele é alienado, mas porque assim representam o
movimento irônico de um texto que não se compraz com o papel determinado
pela realidade, mas que se apraz em olhá-la ironicamente através dos vários
prismas que nos dão a medida de seu absurdo.
No outro texto supra-citado, o ensaio de Ronaldes de Melo e
Souza, esta discussão é levada magistralmente a cabo. Pois, ao contrário de
Schwarz, Souza vê que “mímesis nada tem a ver com imitatio” 157 , e que, por
isso, “o narrador machadiano é sempre o mesmo artista inigualável,
exatamente por não permanecer jamais como o mesmo personagem” 158 . O que
Ronaldes de Melo e Souza faz é resgatar um conceito de representação que
se perdeu na crítica brasileira por miopia sociológica – se é que chegou a
existir. Trata-se do conceito dramático de mímesis da tragédia grega,
interpretado na corrente criativa da arte: “Dramatizar significa tornar-se outro,
outrar-se.” 159 Por conseqüência, não há uma redução quando da mudança e
transformação do narrador, mas é este mesmo processo de mudança e
transformação do narrador machadiano que garante a efetividade e eloqüência
do estilo.
157 SOUZA, Ronaldes de Melo e. Op. Cit., p. 67. 158 Idem. 159 Idem, pp. 65-66.
Aliando este estudo a outro seu anterior, “O princípio da
reversibilidade em Machado de Assis”, que apresenta tal princípio como a
harmonia dos contrários (não a harmonia sintética, mas a disposta a uma
dialética schlegeliana), poderíamos encontrar um aporte crítico que nos dê a
envergadura das tensões estruturais, dos silêncios verminosos, das
ambigüidades e contradições do jogo entre autor-narrador-leitor. O princípio da
reversibilidade assim se enuncia:
A consumada arte da narrativa de Machado de Assis se apresenta e se representa na estrutura fugata de uma série de variações de um mesmo tema fundamental, de uma mesma lei narrativa, que denominamos princípio geral da reversibilidade, e que se explica na proliferação de ambivalências dramaticamente inconciliáveis e dualidades tragicamente irredutíveis. Todas as situações dramáticas da narrativa machadiana coincidem e convergem na encenação e na teatralização de pares de contrários em luta contínua, em permanente disputa. 160
Enfim, a representação dramática do narrador ea apresentação de um mundo subordinado à reversibilidade são dois aspectos complementares do estilo de Machado de Assis. É preciso relacionar esse princípio de harmonia dos contrários ao universo schlegeliano da contradição e do paradoxo. Machado de Assis realiza e constrói sua narrativa a partir do princípio dos contrários da ironia romântica alemã. Cabe-nos prová-lo no corpus escolhido.
Acreditamos que há um amplo e inusitado campo de investigação por entre as frinchas desses textos críticos e que a compreensão de seu potencial na interpretação direta das obras é algo a ser ainda construído. Para tanto, nos esforçamos até aqui para discutir com tão amplo universo teórico e tão intrincado universo crítico. A compreensão do conceito de ironia romântica alemã aliada ao silêncio como efeito dissonante dessa estrutura irônica nos levou à escolha do corpus. Acreditamos que, apesar da ironia ser um princípio construtivo que perpassa toda obra machadiana, há, no entanto,
160 SOUZA, Ronaldes de Melo e. O princípio da reversibilidade em Machado de Assis. Revista Humanidades, Brasília, v. 8, n. 3, pp. 335-345, 1992.
textos em que efetivamente o silêncio como paradoxo e contradição da compreensão é elevado ao plano da própria intencionalidade construtiva ou formatividade. É como se em alguns textos a ironia não se desse como explícita mobilidade autoconsciente e humorística, tal qual lemos em Memórias Póstumas ou Quincas Borba, mas na intrincada e, muitas vezes, disfarçada arte de esconder o sentido e proliferar ambigüidades no silêncio. A escolha do corpus obedeceu a essa percepção, isto é, de que a ironia está, como princípio, em praticamente toda a obra de Machado de Assis, mas que, em alguns textos, parece fazer o conúbio entre silêncio e sentido de maneira mais baixo barítono e mais operesca. Vemos, assim, uma estrutura sob a estrutura, um movimento recorrente entre Ressurreição e Dom Casmurro, o silêncio latente que insiste na leitura, aperfeiçoando-se neste último de maneira genial. Por outro lado, esse mesmo silêncio está persistentemente em Iaiá Garcia, tornando-se um verdadeiro oráculo por sua ambigüidade em Memorial de Aires. Há, portanto, uma circularidade entre o primeiro e o último romances de Machado de Assis, cujo fio condutor é a estrutura irônica de composição eo sentido paradoxal da ironia romântica alemã.
Entre outras conseqüências de nossa forma de abordagem, apontamos a crítica ao conceito de ironia como tropos gramatical e, por outro lado, como forma pessimista de olhar o mundo. A ironia é um silêncio fecundo e um vazio prenhe de sentido que aponta para a transformação e metamorfose como horizonte. Além disso, graças à imbricação do primeiro com o último romance e com outras duas narrativas construtivamente estratégicas da obra de Machado de Assis, Iaiá Garcia e Dom Casmurro, colocamos em xeque a abordagem que separa em fases sua obra. Uma vez que há correlação da construção irônica entre o primeiro e o último romances, não há divisão em fases, mas um esforço criativo que se aperfeiçoa. Não há, portanto, um Machado romântico, pois a ironia destrói todo o idealismo do romance romântico como veremos no próximo capítulo. Por outro lado, não houve, graças também à ironia, concordância com a estética realista-naturalista, pois sua obra não faz cópia do real como apregoam essas estéticas. Machado de Assis não é, ao contrário do que diz a leitura tradicional, realista; pelo menos não no sentido monológico que essa leitura preconiza.
de caracteres e a ironia
“Tu te perguntas, curioso, quais serão seus gestos, balbuciamento, quando descerdes nas espirais deslumbradoras do esquecimento...
E acima disso, buscas saber Os seus instintos, suas tendências... Espiar-lhe na alma por conhecer O que há sincero nas aparências.” (Manuel Bandeira. Poemeto Irônico.)
“Time present and time past Are both perhaps present in time future And time future contained in time past. If all time is eternally present All time is unredeemable.”
(T. S. Eliot. Burnt Norton.)
Primeiro romance de Machado de Assis, publicado em 1872, Ressurreição é uma verdadeira obra-de-arte por seu caráter controverso e, em sua aparente simplicidade, complexo. Colocado tradicionalmente como romance de diapasão romântico, é, por sua vez, avesso, como gostaríamos de comprovar, a essa caracterização. Por outro lado, como tentativa de esclarecer este equívoco, foi também apontado como uma sátira e não um romance 161 . Tese que não pretendemos corroborar, mas que já nos antecipa a complexidade do seu estudo e compreensão. O que se pode, no entanto, afirmar é que, nessa pequena obra de iniciação, Machado anteciparia germinalmente construídos todos os elementos e situações dramáticas que o fizeram um grande romancista. Ressurreição é o germe de Dom Casmurro 162 . E, como o próprio autor diz no prefácio, “é um ensaio” 163 . Ensaio em que se apresenta a grandiosidade do diálogo com a obra shakespeareana e onde o principal elemento constitutivo da estrutura irônica também já se encontra: a autoconsciência do narrador e o jogo dramático de vozes que leva à participação do leitor.
Antes de entrarmos, porém, na discussão dos meandros da narrativa, gostaríamos de apresentar ainda um pouco mais a controvérsia crítica gerada pelo romance. Para tanto, transcreveremos algumas notas recolhidas no ensaio supra-citado de Alfred MacAdam. O autor percebe o erro de avaliação crítica sobre o texto e recolhe, em longa nota, os seguintes juízos: [Nota 7] -Um crítico de temperamento muito romântico, Carlos Ferreira (a poesia “ultra-romântica” dele foi destruída numa resenha no jornal satírico “O Mosquito”, maio de 1872), disse o seguinte sobre Ressurreição no Correio do Brasil, 12 de maio de 1872:
O Sr. Machado de Assis, cujo talento incontestável para as maviosidades do lirismo e para aperfeiçoamento do estilo ninguém desconhecerá, é entretanto, julgo eu, dotado de uma imaginação fria e positiva que, por assim dizer, embaraça-lhe a pena na descrição das paixões violentas e deixa incompletos os quadros das grandes tempestades do coração. Nota-se isto no
161 Trata-se do texto de Alfred J. MacAdam. Ressurreição – Uma Releitura. In: Littera. Rio de Janeiro, 2 (4): 34-42. Janeiro – Março, 1972. Neste ensaio, MacAdam afirma: “ O que se tem definido como um romance fraco durante quase cem anos não é um romance, e, se fosse possível mostrar que o que acontece em Ressurreição é típico das obras de Machado, então todas deveriam ser reestudadas para ver exatamente qual é a relação entre a história dentro do texto e a história fora do texto.”(p. 35)162 Ver o capítulo 3 do livro de Hellen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis, intitulado “O Germe”. 163 ASSIS, Machado de. Ressurreição. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson Inc. Editores, s.d., p. 7.
seu belo romance Ressurreição; pelo menos, notei-o eu de mim para mim.
Um crítico melhor, Luiz Guimarães Júnior, no
Diário do Rio de Janeiro, nº 130, segunda-feira, 13 de maio de
1872, descreve assim o protagonista de Ressurreição (Félix), e
acrescenta mais sobre o resto da obra:
O Dr. Félix no romance de Machado de Assis é um tipo, senão
possibilíssimo, pelo menos admiravelmente compreensível. Dá-
nos o poeta (Machado) o seu perfil com aquele cuidado e garbo
com que Feuillet em traços magistrais pôs em relevo a figura do
Conde Camoz e do Marquês de Champey.
Os demais personagens de Ressurreição empalidecem ao pé
do herói; eis o motivo porque o livro de Machado de Assis será
muito estudado, mas por muito pouca gente. Não é um romance
que atraia o vulgo; é sim um quadro que chama o olhar dos
entendidos e a atenção dos amigos da boa e eficaz literatura.
O estilo é acurado, é trabalhado, e desenvolvido com uma
solicitude às vezes exagerada, o que em um ou outro ponto
parece pertencer mais aos arabescos da arte do que à
espontaneidade do sentimento.
[...]
[Nota 8] – A mesma mistura de elogio e condenação que
caracteriza as resenhas originais de Ressurreição aparece de
novo em Introdução a Machado de Assis (Rio de Janeiro,
1947) de Barreto Filho, citado aqui na versão que está na Obra
Completa (Rio de Janeiro, 1962):
Ressurreição, embora fraco, tecido de situações vulgares,
tiradas ao ambiente do romantismo europeu, é uma curiosa
tentativa de romance psicológico. Deslocando o interesse do
acontecimento objetivo para o estudo dos caracteres, essa
novela aparecia numa linha diferente, e conserva para nós um
indiscutível ar de modernidade. Ainda mergulhado na influência
do ambiente, muitos traços do romance já se definem. O livro é
feito sob a inovação de uns versos de Shakespeare, a propósito
da indecisão e da dúvida, que nos fazem perder o que
poderíamos obter, pelo medo de alcançá-lo. O enredo é a
história de um indeciso na conquista da viúva Lívia, que já é
uma dessas figurinhas tão numerosas em sua obra...(95).
Com uma atitude de não menor superioridade, descreve
Gustavo Corção [crítico mais recente] 164 Ressurreição assim
em “Os primeiros romances de Machado”, Diário de Notícias,
domingo 8 e segunda-feira 9 de junho de 1958 [ na seção
“Letras e Artes”]:
Com trinta e três anos, que era a idade que tinha quando
escreveu Ressurreição, Machado de Assis lavrou páginas que
164 Observação nossa.
merecem antologia pela graça e pelo engenho da forma; mas essa mesma perfeição realça ainda mais a pobreza do conteúdo, e deixa ao leitor, talvez por conhecer o resultado futuro, um penoso sentimento de desperdício de talento numa obra sem gênio. [...] Os paralelos entre os críticos dos dois séculos, em particular Gustavo Corção e os homens do século XIX, é quase sobrenatural. Todos concordam em que o livro é interessante, mas que é medíocre. Todos, ao parecer, o leram da mesma maneira, com os mesmos preconceitos, e por isso todos disseram mais ou menos a mesma coisa. 165
O crítico norte-americano apresenta notas em que o juízo sobre Ressurreição é, tanto para os coetâneos à sua publicação quanto em um momento posterior (meados do século XX), negativo. No primeiro dos críticos apontados, Carlos Ferreira, vemos a reação romântica ao livro: não tinha lirismo e era frio às tempestades do coração. Luiz Guimarães Júnior, por sua vez, vai ao cerne da questão: citando Feuillet e, por conseguinte, o problema moral da construção da personagem, reconhece Félix como elemento fundamental da narrativa, mas não aceita a posição central do caráter da personagem como foco de interesse em um romance. Por fim, MacAdam nos dá os juízos de Barreto Filho e Gustavo Corção, os quais se contrapõem aos dois primeiros por serem críticos do século XX. Barreto, mesmo descrevendo a construção de maneira lúcida, reduz o livro a “uma tentativa de romance psicológico”. Corção, por fim, vê no livro um “desperdício”. MacAdam, então, põe termo a suas notas observando que o primeiro romance de Machado fora considerado “medíocre” em concordância “quase sobrenatural” entre os críticos dos dois séculos, tese que ele irá contestar.
Para subverter essa recepção negativa, levanta, então, uma outra proposição: a de que Ressurreição é uma sátira e não um romance. E aqui, parece-nos que, corrigindo um erro, MacAdam acabou cometendo outro. Ao assim nos posicionarmos, no entanto, não estamos desmerecendo sua singular e pioneira percepção da incompreensão da obra pela crítica por já estarem ali
165 MAcADAM, Alfred, Op. Cit., p. 41 -42.
presentes elementos incomuns ao romance romântico. Nem diminuímos o valor de sua afirmativa de que a re-leitura de Ressurreição na linhagem satírica exigiria a re-leitura de toda a obra de Machado de Assis. Porém, concordando com a presença de elementos próprios da sátira, não concordamos com a tese de que, sendo sátira, não é romance a obra em questão.
A fim de esclarecermos nossa posição, seria interessante recorrer ao confronto de duas teorias sobre a origem do romance moderno. A primeira é a teoria de Ian Watt e se chama teoria do realismo formal 166 . A segunda é a teoria do quixotismo exemplar de Walter L. Reed 167 .
Para Ian Watt, o romance moderno, que ele estuda a partir da experiência dos escritores do século XVIII, é a expressão mais acabada da “concepção moderna da busca da verdade como uma questão inteiramente individual” 168 , concepção esta fundada pela filosofia de René Descartes em seu Discurso sobre o Método. O romance seria “a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora” 169 . A característica do romance é a “visão circunstancial da vida”, o que o faz uma imitação da realidade; e o método narrativo através do qual o romance incorpora essa visão é o realismo formal.
Na verdade o realismo formal é a expressão narrativa de uma premissa que Defoe e Richardson aceitaram ao pé da letra, mas que está implícita no gênero romance de modo geral: a premissa, ou convenção básica, de que o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares da época e locais de suas ações – detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias. 170
166 WATT, Ian. A ascensão do romance (Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding). Trad. Hildegard Feist. São Paulo, Cia. das Letras, 1990. 167 REED, Walter L. An Exemplary History of the Novel (The Quixotic and the Picaresque). Chicago and London: The University of Chicago Press, 1981. 168 WATT, Ian. Op. Cit., p. 14. 169 Idem. 170 Idem, p. 31.
Aceitando a tese filosófica da modernidade, a tese da consciência
cartesiana como pressuposto do conhecimento e fundadora da individualidade
moderna, Watt vai submeter o romance a essa concepção:
A grandeza de Descartes reside sobretudo no método, na firme determinação de não aceitar nada passivamente; e seu Discurso sobre o método (1637) e suas Meditações contribuíram muito para a concepção moderna da busca da verdade como uma questão inteiramente individual, logicamente independente da tradição do pensamento e que tem maior probabilidade de êxito rompendo com essa tradição. O romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora. 171
O pendor para a descrição minuciosa da realidade se estende
também para o século XIX. Por uma transferência histórica dos motivos da
consciência para o interesse político e social, vemos em Stendhal e em Balzac
a encenação do romance realista nos moldes modernos. Coube a este último a
consubstanciação entre personagem e meio, como já foi minuciosamente
estudado por Erich Auerbach 172 . O eminente crítico e teórico mostra-nos, com a
clareza de seu método que harmoniza o estilístico com o sociológico, um
trecho chave de Balzac em Le Père Goriot , no qual a descrição de Mme
Vauquer e do meio em que ela vive, seu bairro e sua pensão, se implicam.
A descrição é feita sob um motivo principal, que é repetido várias vezes: o motivo da harmonia entre a sua pessoa, por um lado, e o espaço em que se encontra a pensão que dirige, a vida que leva, pelo outro; em poucas palavras, a harmonia entre a sua pessoa e aquilo que nós (e às vezes também já Balzac) chamamos de meio. Esta harmonia é sugerida de forma mais penetrante: em primeiro lugar, o aspecto gasto, gordo, sujamente quente e sexualmente repulsivo do seu corpo e das suas roupas, o que concorda com o ar da habitação, que ela respira sem nojo; pouco mais tarde, em ligação com o rosto e com os gestos faciais, o motivo é considerado de forma um pouco mais moralista, a saber, acentuando energicamente a relação mútua entre pessoa e meio: sa personne explique la pension, comme la pension implique sa personne. 173
171 Idem, p. 14. 172 AUERBACH, E. Na Mansão de La Mole. In: -. Mímesis (A representação da realidade na literatura ocidental). Trad. Georg Bernard Sperber. São Paulo: Perspectiva, 1987, pp. 405-441. 173 Idem, p. 421.
A tese de Watt de que a consciência objetiva o meio dá as mãos à tese de Auerbach de que o meio implica a pessoa e vice-versa. Estamos diante de uma visão mimética do romance.
Este é o realismo francês do século XIX, nascido no romantismo de Balzac, que constituiria o gosto e a expectativa do século das luzes. É o romance de costumes que Machado de Assis irá programaticamente atacar em Ressurreição 174 e que constitui o horizonte através do qual o seu romance foi julgado: Machado deveria ter descrito, em Ressurreição, sua época, enfocando elementos históricos e não o caráter controverso de um personagem. Isto fica muito claro no juízo de Barreto Filho. Este é também o crivo que ressoa nos outros críticos apontados por MacAdam, que, por isso, ao perceber a mudança de eixo do romancista carioca, afirma que as obras de Machado “deveriam ser reestudadas para ver exatamente qual é a relação entre a história dentro do texto e a história fora do texto” 175 . Percebeu muito bem que a história dentro do texto pode percorrer formas esdrúxulas em relação à história fora do texto e que essa relação que distorce o real se deve à presença de elementos satíricos.
Discordamos, porém, de sua tese, porque não é a distorção da relação tradicional entre romance e história (relação mimética) que já destrói a forma romance. Pelo contrário, a distorção satírica é historicamente um dos elementos constitutivos do romance. Segundo Mikhail Bakhtin: “Todos esses gêneros, englobados pelo conceito de ‘sério-cômico’, aparecem como autênticos predecessores do romance,...” 176 . Tais gêneros do sério-cômico seriam: “toda a poesia bucólica, a fábula, [...], os antigos ‘diálogos socráticos’, [...], e finalmente, a sátira menipéia (como gênero) e os diálogos à maneira de Luciano.” 177
174 Referimo-nos à advertência do autor à primeira edição: “Não quis fazer romance de costumes...”, Op. Cit., p. 9. 175 MAcADAM, Alfred. Op. Cit., p. 35. 176 BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance. In: -. Questões de Literatura e de Estética – Teoria do Romance. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1988, pp. 397 –
428. 177 Idem, p. 412.
A sátira é um dos “gêneros” (a sátira é um anti-gênero, mas por falta de termo mais preciso) constitutivos do romance. Ela não o repele, ambos se atraem e se complementam 178 . Voltamos, então, à discussão do primeiro capítulo: uma vez que o romance faz a paródia da motivação realista via ironia e sátira, sua mimese não é cópia do real. A paródia, recurso estilístico central da sátira, distorce a história. O que nos leva a observar que o que em MacAdam constitui um exagero é ter ele colocado o romance em relação de exclusão com a sátira. Assim o fez porque ainda é devedor de uma visão mimética da forma romance, tese esta que também se observa na tese do realismo formal de Ian Watt. Quer dizer, não é estranho que se queira julgar o romance no diapasão da individualidade e da mímesis, fato este que está na base da sua teoria moderna. Por outro lado, sua observação é importante porque, quando a contra-argumentamos mostrando a ligação formal e histórica entre um gênero e outro, deparamo-nos com o problema do romance como um tipo de mímesis criativa que, distorcendo e re-enquadrando o real, lhe cria uma outra imagem e sentido. Caímos, então, na segunda teoria sobre a origem do romance moderno, a teoria do quixotismo exemplar.
Calcada na leitura de Dom Quixote de la Mancha, esta teoria parte de um elemento sui generis: se o Quixote transmuta sua existência a partir dos romances de cavalaria é porque a leitura da tradição não se dá por cópia, mas por invenção e re-invenção da mesma tradição. A mímesis de Dom Quixote é original na medida em que ele não se torna um escritor de romances de cavalaria de tanto ler romances de cavalaria, mas se torna um cavaleiro andante. Sua mímesis é existencial. Imitar, assim como ler, não é copiar, mas inventar.
Essa nova relação com a tradição subverte o conceito de imitação clássica. O romance se inventa e, assim, re-inventa o real. Sua visão não está calcada na épica, mas na tensão dramática da tragédia, para a qual a eminência do humano está na desmesura diante das regras. Não nos cabe
178 Para melhor discutir a relação entre a sátira e o romance em Machado de Assis, leiam-se os textos: Enylton de Sá Rego. O Calundu e a Panacéia (nota 4, página 5) e o estudo muito interessante de Laura Goulart Fonseca, A Sátira em Machado de Assis. Dissertação de Mestrado, UnB, 1996.
imitar ou aceitar o fado, mas quixotescamente transmutá-lo, mesmo que isto se constitua um horizonte trágico.
A experiência de Dom Quixote, sua loucura, instaura o drama do romance como o drama do conhecimento. Conhecer é experienciar, é viver a outredade, a tensão dramática da existência e sua excentricidade. Contrariamente ao que afirmava o realismo formal, conhecer não é permanecer
o mesmo diante do quadro do real, mas dramatizá-lo e outrar-se diante do horizonte móvel do mundo. Neste sentido, também a forma do romance é subvertida pela força metamórfica da loucura quixotesca. Autor, narrador, leitor, todos são submetidos à transformação tanto no plano do sentido quanto da forma. A lógica da subjetividade da modernidade filosófica cartesiana é substituída pela dialética da intersubjetividade da modernidade artística cervantina. Nesta tradição, ser é outrar-se, divertir na diferença similhante. 179
No mundo desse romance, o narrador, mediação monológica na visão do realismo formal, é submetido à força dramática do diálogo intersubjetivo, princípio plasmador do quixotismo exemplar. O narrador é o primeiro leitor de sua narrativa e dramatiza-se como leitor em tantas facetas quantos forem os sentidos em representação nesse mundo. O leitor é transfigurado em companheiro da aventura quixotesca, o que implica que a leitura é uma aventura metamórfica. Assim como o Quixote é leitor e se transforma na encenação e leitura de seu drama, também o leitor se torna quixotesco e se transforma pela leitura. Essas são as inovações do romance na tradição cervantina. Machado nela se insere desde seu primeiro romance, subvertendo toda a forma de narrar.Nas palavras de Walter Reed:
What Cervantes introduces is a radical dislocation of the storyteller and the story as they were conceived by oral tradition. The fictional “frame” of his narrative is the consciousness of the hero who inhabits it. Both author and audience are drawn into a confusing intermediate realm, the realm of the printed text. Don Quixote is unprecedented primarily in its existential realization of a new cultural being – the reader. […]
179 Citação livre de João Guimarães Rosa. Cara de Bronze. In: -. No Urubuquaquá, no Pinhém. 7 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 92.
The distinguishing characteristic of Don Quixote, his daemon as a hero, is the fact that he has read chivalric novels until, as the author puts it, “his brain dried up and he lost his wits”. He briefly considers taking up the pen himself, but instead begins on a much different literary project involving the sword. His mimesis is an existential one, an imitation not of nature but of literature, and not even of particular texts so much as of a certain class of texts. Furthermore, as E. C. Riley notes, his behavior is directed toward as well as by a textual ideal, for as readers we are made aware of “the account of his adventures that Don Quixote believes his personal enchanter will one day be writing, as distinct from the one that is in fact written about him”. Quixote’s behavior has no ulterior motivation in Cervantes’s account of it. It is not the result of a previous trauma – like, for example, the madness of Cardenio whom he encounters in Sierra Morena – and it is not directed at any goal or acquisition of power, other than the diffuse literary aspiration “to encrease his renown and to serve the state”. His career is rather the transformation of the passive activity of reading into an active mode. Don Quixote internalizes his experience of books and performs them. [O que Cervantes introduz é um deslocamento radical do narrador e da estória como foram concebidos pela tradição oral. A “estrutura” ficcional da narrativa é a consciência do herói que a habita. Tanto o autor como a audiência são jogados dentro de um confuso campo intermediário, o campo do texto impresso.
Dom Quixote é sem precedentes primeiramente na sua realização existencial de um novo ser cultural – o leitor. [...] A característica distinta de Dom Quixote, seu daimon como um herói, é o fato de que tenha lido romances de cavalaria até, como põe o autor, “que seu cérebro tenha secado e ele tenha perdido seu juízo”. Ele considera brevemente tomar a caneta por si mesmo, mas, pelo contrário, começa um bem diferente projeto literário que envolve a espada. Sua mímesis é existencial, uma imitação não da natureza, mas da literatura, e nem também de certos textos, mas de uma certa classe de textos. Posteriormente, como E. C. Riley nota, seu comportamento é direcionado para assim com por um ideal textual, pois como leitores somos postos a par de que “o valor de suas aventuras é que Dom Quixote acredita que seu encanto pessoal será um dia escrito bem diferentemente daquilo que sobre ele é escrito’. O comportamento de Quixote não tem nenhuma motivação oculta em sua apreensão por Cervantes. Não é o resultado de um trauma prévio – como, por exemplo, a loucura de Cardenio, quem ele encontra em Sierra Morena – e nem é dirigido a nenhum objetivo ou à aquisição de poder, a não ser a difusa aspiração literária de “aumentar sua fama e de servir ao estado”. Sua carreira é sim a transformação da atividade passiva da leitura em um modo ativo. Dom Quixote internaliza sua experiência dos livros e as performa.] 180
Enfim, nosso percurso teórico quis demonstrar que o romance machadiano implica a paródia da realidade e não deixa de ser romance por incluir o elemento satírico. A obra de Machado de Assis não está, portanto, afeita à teoria do realismo formal de Watt e nem se compraz com o romance de costumes da tradição romântico-realista balzaciana apresentada por Auerbach, mas, antes, se constitui no horizonte de diálogo com o quixotismo exemplar exposto pela teoria de Reed. Como conseqüência, em Ressurreição, a situação narrativa autoral se apresenta dramaticamente transformada pela possibilidade verossímil da lógica interna da ficção de o narrador se desdobrar em comentarista de sua própria estória. O leitor é surpreendido por essas vozes dissonantes. O narrador de Ressurreição (1872), proto-imagem do defunto autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), é a imagem consubstanciada de um novo e revolucionário romance: o romance dramático de Machado de Assis.
A estrutura dramática é antecipada no prefácio ou “advertência da primeira edição”. A máscara do autor implícito, o autor que aparece como diretor de cena, se faz presente ao comentar metacriticamente o romance e enunciar sua lei narrativa.
Minha idéia ao escrever este livro foi por em ação aquele pensamento de Shakespeare:
Our doubts are traitors And make us loose the good we oft might win By fearing to attempt. 181
Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela. 182
180 REED. Op. Cit., pp. 76-77. 181 Nossas dúvidas são traidoras/ e fazem-nos perder o bem que poderíamos ganhar/ temendo tentar. (tradução livre). 182 ASSIS, Machado de. Ressurreição, p. 9.
A citação de Shakespeare é da comédia Measure for Measure (Medida por Medida), considerada pela crítica “a mais dolorosa de suas peças” (Coleridge). Ou ainda, segundo Harold Bloom, a peça – “visão do incesto universal” – mais niilista do dramaturgo, pois “o desejo sexual, desastroso em Tróilo e Cressida, torna-se objeto de uma comédia das mais infelizes em Medida por Medida.” 183
“Comédia das mais infelizes”, “desejo sexual desastroso”, são elementos presentes também no tema de Ressurreição. O próprio nome do personagem central, Félix (em latim, feliz), é colocado em contraponto com o título do romance e seu sentido latente, uma vez que, ao fim e ao cabo da leitura, ressurreição bem poderia ser sinônimo de morte. Trocadilho que traz um fundo bíblico ironizado que também a peça de Shakespeare possui, uma vez que a expressão “medida por medida” é uma alusão ao Sermão da Montanha: “Com a medida que medis sereis medidos”, uma reverberação das palavras “com o julgamento que julgais, sereis julgados”. Efetivamente, a dúvida de Félix, tema central da narrativa, é traidora e destrói toda possibilidade de ressurreição de seu coração, que representa uma verdadeira ruína alegórica 184 . Uma história que deveria ter sido e que não foi, este é o amor de Félix por Lívia, natimorto. Sua vida é uma sombra do que poderia ter sido. O tema nasce do trágico, mas o tom é cômico. O tragi-cômico é uma faceta da ironia machadiana. O apelo dos opostos ou a reversibilidade dos contrários é dramatizado pelo drama de caracteres.
Nossa tese é, por sua vez, de que o conúbio singular entre a dramatização do caráter das personagens e a dramatização do narrador compõem a novidade e a originalidade de Ressurreição. Tanto o plano da enunciação quanto o do enunciado são submetidos à força prodigalizadora da
183 BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pp. 452-453. 184 O termo é de Walter Benjamin ao se referir ao drama barroco Na concepção de Benjamin, se imbricam vida e morte na alegoria da história. Nas palavras de Sérgio Paulo Rouanet: “Se a caveira é alegoria da morte, mas também da ressurreição, também esta é apenas alegoria.” In: BENJAMIN,Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Editora Brasiliense, 1984, p. 43.
dialogização via reversibilidade dos contrários e autoconsciência narrativa. No
mundo dessa representação, nenhum elemento permanece fora do alcance do
poder transformador do jogo dos contrários. Tanto os personagens são
apresentados no seu drama interior de vozes em luta e disputa, quanto o
narrador joga constantemente com a perspectiva do leitor através da mudança
de posições: seja narrando, seja comentando, seja refletindo.
Desde o primeiro capítulo podemos perceber que realmente
nenhum âmbito permanece intocado pela reversibilidade, haja vista o jogo de
vozes ou modulação dos tons da voz do narrador. Ele não se compraz apenas
em narrar ou descrever a cena de abertura, mas logo se inscreve num subtom
ou numa segunda voz sub-reptícia que marca um contraponto com a voz
enunciativa:
Naquele dia, -já lá vão dez anos! – o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela e cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do doutor algumas aves afeitas à vida semi-urbana, semi-silvestre que lhe pode oferecer uma chácara nas Laranjeiras. Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor e mais belo, -fruto da nossa ilusão, -e alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é um passo para morte. 185
Esse parágrafo – primeiro do romance – começa com a descrição do primeiro dia do ano, motivo pelo qual o título do capítulo é “No dia de ano bom”. O tom descritivo-narrativo se mantém às primeiras linhas até a frase: “Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano”. A partir daí, a voz do narrador não mais está narrando, porém refletindo. Primeiramente, ao comparar o passado com o presente, ao falar do que esse dia lembra “para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos”. Depois, ao entrelaçar a paisagem objetiva e a subjetiva, apontando como aquilo que nos parece
185 ASSIS, Machado de. Ressurreição, I, p. 11.
melhor e mais belo (o ano bom, a paisagem do “dia esplêndido”) é “fruto da nossa ilusão”, apenas mais “um passo para a morte”. Em outras palavras, como aquilo que nos parece bom é também ruim, como a vida é morte. A ironia como jogo do mundo se revela como o horizonte de corrosão do idealismo romântico. Desde o primeiro parágrafo, observado esse jogo de vozes, o romance não é romântico no sentido idealista da tradição brasileira, no qual é, no entanto, inserido pela aparência de ser uma estória de amor e por sua aparente linearidade.
O jogo entre ser e parecer – marcado pela repetição do verbo “parecia”/ “parece” – é a luta entre o dito e o que podemos depreender de uma leitura mais atenta. Este jogo preconiza o que acontecerá em todo o romance:
o narrador não se atém a narrar ações, mas o efeito e a comoção dos eventos sobre as personagens e sobre o leitor lhe é mais importante. Por isso sua voz apresenta-se modulada, pois sua consciência desdobra-se em narrador e refletor. Além dessas duas facetas, também outra se percebe no mesmo capítulo: a figura do comentarista ou autor implícito que chega a um tal grau de dramatização que chega a mudar a voz para a primeira pessoa a fim de se diferenciar de sua faceta de narrador: “Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas páginas, e acompanhando o herói por entre as peripécias da singelíssima ação que empreendo narrar.” 186
A alternância da enunciação da voz do narrador em terceira e em primeira pessoa marca o ritmo de transe da passagem da narração para a metaficção. Na primeira linha, o período interposto “já lá vão dez anos” contrasta com a enunciação narrativa de “Naquele dia...”. A forma em primeira pessoa apresentada anteriormente está em conúbio com a consciência presente do narrador que nos diz “já lá vão dez anos” passados. Tanto o comentário metaficcional quanto o comentário reflexivo sobre as ações do texto são variações da máscara do autor implícito. Uma se apresenta explicitamente no presente da enunciação para comentar o ato de narrar, enquanto a outra se representa ardilosamente nas frinchas do texto, destoando da narração com
186 Ressurreição, I, p. 13.
aquele tom baixo-barítono que incomoda o andamento da leitura com reflexões um tanto quanto incômodas para a narração. Os dez anos que se passaram se referem aos eventos, pois o narrador está no presente da enunciação, dez anos após o que ele enuncia ou o enunciado. De tal sorte que o leitor lê o passado sob o ponto-de-vista do presente do narrador, bem ao contrário do que ocorre com o ponto-de-vista dos personagens, que vêem/lêem o presente sob o ponto-de-vista do passado, como iremos ver mais à frente.
Essa estrutura de duas mãos transforma o ato da leitura em um jogo com a perspectiva do leitor. Este lê o narrado, porém deve perceber, no ato de enunciação do narrador, o sentido em construção. É como se ler fosse também desler. Lêem-se os eventos, mas o sentido não está onde o autor narra. Muito menos, como poderíamos pensar então, onde ele reflete. Mas está onde ele cala, ou seja, entre o que ele fala e o que ele reflete ou comenta – no silêncio verminoso do texto. Nesse sentido, não é porque percebemos a voz reflexiva do narrador dizendo que vida é morte que já tivemos acesso ao sentido. O sentido parece eclodir (darstellen) justamente quando, ao lermos o narrador comemorar o ano bom e ao mesmo tempo refletir que ele é mais um passo para morte, compreendemos o que isso tem a ver com o que lemos e onde se insere no processo de compreensão da narrativa. E mais, compreendemos sua desautomatização e corrosão do ideal pelo jogo da ironia do mundo. Compreender, por exemplo, que o que o narrador nos diz não é o que ele sabe, já que ele fala, às vezes, mais do que parece saber aparentemente. O que nos leva a desconfiar de suas falas. E assim nos inserimos no jogo irônico da narrativa. Essa construção em que a latência do sentido se inscreve no jogo de vozes fundamenta a estrutura irônica de composição.
É também importante frisar outro elemento que marca a estrutura irônica: a estrutura temporal do romance. Nesse sentido, é digno de nota que o capítulo I, “No dia de ano bom”, celebra o ano novo, portanto, o futuro. Um futuro eivado de reflexões funestas do narrador, como vimos anteriormente, mas o futuro. O último capítulo (XXIV), por sua vez, se chama “Hoje”, onde se encontram e entrelaçam o tempo da enunciação e do enunciado; é o presente do narrador e, depois de dez anos, dos personagens. Por fim, é bastante significativo que o capítulo XII, o ponto médio entre o primeiro e o último, marque a presença de um “ponto negro” dos eventos narrados. Esse ponto negro está intimamente ligado ao caráter contraditório de Lívia e de Félix, este é mesmo apresentado, em outro capítulo do livro, como “o artífice de seu próprio infortúnio” 187 .
Para comprovar e confirmar nossa leitura que denota uma construção intencionalmente eqüidistante dos capítulos, inserindo na leitura dessa estrutura um sentido entredito, latente ou silenciado, apontamos o fato de que o capítulo XI, logo anterior ao capítulo central, explica o ponto negro da alma de Félix: “o passado”, que é, inclusive, título do mesmo. Nele chega ao seu clímax aquilo que fora anunciado no prefácio: o contraste dos caracteres. Isso se dá a partir do embate entre Lívia e Félix em diálogo significativo.
Aqui seria, no entanto, importante fazer uma breve digressão em nosso encaminhamento da interpretação e falar um pouco sobre o que ainda não falamos, pois não obedecemos à estrutura das análises de texto tradicionais. Quer dizer, vamos falar um pouco do enredo. É necessário, pois apesar de já estarmos in media res às vezes precisamos saber do que tratam as ações para compreendermos como interpretar a dobra da leitura e da construção em relação ao que está sendo narrado. Trata o romance, portanto, da estória de um médico de 36 anos, solteiro e abastado -pois lhe dera a sorte uma herança, sem que, por sua vez, tenha-lhe dado a mesma sorte a natureza, como se apressa em nos dizer o narrador – que, em matéria de amor, possuía
o interessante hábito de se relacionar somente por seis meses com cada mulher, exemplo claro de alguém que tem auto-controle sobre suas emoções, ao contrário das personalidades românticas. Mas não é tão simples assim a caracterização da situação do personagem, pois apesar de sua atitude anti-romântica, ainda não é aí que está a desconstrução do romantismo pelo romance. Imaginemos, enfim, que esse espécime raro de homem senhor de
187 Ressurreição, XII, p. 132.
suas emoções, se apaixone realmente por alguém, e então teremos a complicação necessária.
No momento da apresentação de Félix, ainda no primeiro capítulo, o narrador esmera-se em pintá-lo como um “homem complexo, incoerente e caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas e defeitos inconciliáveis” 188 . Ainda segundo o narrador, “duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram totalmente diversas entre si, uma natural e espontânea, outra calculada e sistemática. Ambas, porém, se mesclavam de modo que era difícil discriminá-las e definilas”. 189
A incoerência do espírito de Félix apresenta-se, a princípio, como convicção na razão ou numa atitude sóbria e moderada que, sua posição de “médico”, respalda. Essa convicção ou confiança se revela na maneira como conduz seus amores sempre como um idílio de seis meses, calculadamente. O capítulo dois, “Liquidação do ano velho”, mostra essa faceta de seu espírito em ação, ao acabar friamente seu namoro com Cecília.
A aparência de confiança começa a ser desconstruída, porém, no momento em que entra em ação a jovem e bela viúva Lívia. Silviano Santiago já observou brilhantemente o valor significativo da ambigüidade da viúva na obra de Machado de Assis. Ela já amou uma vez e agora pode amar de novo, outro. Esse jogo entre o amor ao primeiro marido e o novo amor representa o travo que, complicado pela personalidade de um namorado ciumento, dá todo
o tempero do jogo de ambigüidades na consciência da personagem, fato este de que o narrador irá cuidadosamente se aproveitar para jogar com o leitor.
Lívia é, por sua vez, apresentada como uma jovem “extremamente formosa; mas o que lhe realçava a beleza era um sentimento de modesta consciência que ela tinha de suas graças, uma coisa semelhante à tranqüilidade da força”. 190 Contraste-se a isso o repouso ativo da personalidade
188Ressurreição, I, p. 13. 189 Ressurreição, I, pp. 13-14. 190 Ressurreição, III, p. 43.
de Félix e teremos o drama de caracteres em ação. E é justamente isso que irá
realizar o capítulo IV, “Prelúdio”.
O próprio título é significativo: prelúdio é prólogo, preâmbulo,
prefácio; mas também é peça musical que antecipa uma cerimônia. Se lemos
atenciosamente o capítulo, compreendemos que não se trata apenas dos
prolegômenas da relação amorosa entre Félix e Lívia, mas que o prelúdio é o
próprio interlúdio ou o meio do jogo de máscaras entre o amor, o interesse e a
confiança/desconfiança. Enfim, é o jogo representativo do tema do romance.
Shakespeareanamente ou hamletianamente construído, o capítulo se
desenvolve em torno dos novos amores entre Cecília, a preterida de Félix no
capítulo II, e Moreirinha, o advogado néscio. Constrasta-se a esse episódio,
porém, a ida de Félix ao Ginásio, onde irá assistir a uma peça teatral. E aqui se
efetiva o elemento hamletiano, ou seja, a mobilidade do teatro dentro do teatro,
da peça dentro da peça, tornando-se metatexto ou metáfora construtiva do
texto e do sentido em representação.
A narração da cena está eivada de subentendidos que o narrador
deixa entrever e, aqui e ali, sugere com a ambigüidade da ironia. O principal se
pode apreender no seguinte trecho:
Quando se levantou o pano para o terceiro ato, Félix quis sair, mas tanto a viúva como o irmão pediram-lhe que ficasse. Aceitou o convite e ficou. Do que houve em cena durante esse ato pode-se afirmar que Félix nada soube absolutamente. O ato era curto, e Félix empregou todo o tempo em observar a moça, que, molemente reclinada na cadeira, acompanhava distraída o diálogo dos atores.
-Em que estará pensando esta moça? Dizia Félix consigo. Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nem as facécias do gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará à espera de algum namorado remisso? Mas quem é então esse lorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos?
A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia estar apaixonada pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo, entrou precipitadamente em cena e lançou-se nos braços do amado. Algumas palmas do público premiaram essa resolução inesperada e enérgica. Então começou entre a dama e o galã um diálogo de sentimento e paixão, um duelo de suspiros, um protestar de fidelidade e constância, que a platéia ouviu com demonstrações de entusiasmo.
-Ama, não há dúvida, continuou Félix a dizer entre si; basta ver como lhe brilham os olhos a cada frase do diálogo. Agradam-lhe os protestos do namorado e as lágrimas da dama. Creio que sorri; é de aprovação. Oh! Como está divina!
Enfim, caiu o pano; e a viúva, que já no fim do ato, parecera ter voltado à sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que ia embora. 191
O trecho concentra um leque de possibilidades significativas que
o tornam uma parte fundamental na economia interpretativa do romance. Em primeiro lugar, é de se notar a proximidade entre a cena do teatro e a ação geral da obra. A peça representada se torna o meta-texto, a metaficção que encena o sentido do próprio texto que lemos e o sentido da situação que vive a personagem. De tal maneira que a fala do narrador soa com toda força do duplo sentido, como em: “A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia apaixonada pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo...” Ouvem-se, aqui, claramente, os dois tons: o tom narrativo e o tom reflexivo; a voz e a meia-voz que se refere não só à cena do teatro, mas também ao mundo, no caso, da ficção, que se projeta sobre o real através da perspectiva do leitor. Lívia está enamorada de Félix, leia-se primeiramente, e depois, construam-se as implicações.
Ao mesmo tempo, com toda a simplicidade que a cena parece transparecer, notamos, nos subentendidos de sua mobilidade, a falta de perspicácia de Félix que, mesmo suspeitando de que Lívia está enamorada, não sabe por quem e, nós, leitores, já desconfiamos que é por ele mesmo. A cena é construída geometricamente para causar este efeito no leitor: a impressão, real por sinal, de que ele sabe mais do que os próprios personagens. Ao leitor é apresentado o evento e a aparência exterior, mas ele é também convidado, quase exortado, a penetrar por detrás da aparência, e finalmente, colocá-la de lado, para conceber a idéia ou sentido imanente àquela cena ou evento. De forma que os episódios do romance se tornam um teste para a capacidade do leitor. Ele tem acesso a várias visões e acaba sendo convidado a julgar o que vê e lê. Por esse motivo, o autor deve
191 Ressurreição, IV, pp.50-51.
empregar vários tipos de estratégias a fim de envolver o leitor em tantos ângulos de visão quantos forem possíveis.
É o que acontece, por exemplo, com outro elemento importante da construção da narrativa: o solilóquio de Félix. Apresentado na forma do discurso direto, é um verdadeiro diálogo do personagem consigo mesmo, dentro de sua consciência. Seu drama reflexivo é ainda mais evidente se observarmos que ele, no teatro, não assistiu à cena, só tendo olhado para Lívia. Não viu o que ocorria, mas procurou ler na dama, o que os olhos dela viam e sentiam: ”Olha, mas não vê a cena”. Félix olha mas não vê, assim como Lívia. Ela porque dissimula olhar a cena e sentir o que ela lhe sugere, mas, em verdade, parece esconder-se de Félix. Ele porque olha, não a cena, mas o que a cena provoca em Lívia, e confunde ficção com realidade, pois vê não o que realmente ela sente, mas o que seus olhos sentem/escondem por efeito da cena. Félix não é bom leitor do drama de Lívia e, talvez por isso, sempre se precipite ao julgar o que se lhe passa. Também por essa ótica poderíamos ler a acusação do narrador de ser ele o “artífice de seu próprio infortúnio”.
Concluindo, o drama de caracteres do romance – o colocar dois personagens em conflito – se mostra ainda mais complexo, pois a luta e a disputa das vozes antagônicas da ciência e da insciência se mostram dentro da própria consciência. A controvérsia do que se sabe e do que não se sabe trairá
o personagem, pois engendrará a dúvida, tema da obra. E é interessante notarmos o modo com que o romance apresenta o seu tema. Não é através da enunciação do narrador, mas através da reflexão que seu silêncio engendra. Parece que soa, neste silêncio, a epígrafe shakespeareana: “our doubts are traitors”.
O narrador nos dá acesso a conhecimentos e opiniões que, tendo ficado entreditos durante a leitura, aparecem diante de nossos olhos com a clareza que somente ele poderia ter. É o caso, por exemplo, do comentário que faz sobre o caráter de Félix:
Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza
o pôs nessa classe de homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: “perdem o bem por receio de o buscar”. Não se contentando com a felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das afeições íntimas, duráveis ou consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões. 192
A significação da mobilidade do narrador-comentarista se faz presente. Sua fala revela a contradição central do personagem, que detona todo o processo da narrativa: “Félix é essencialmente infeliz”. O par antagônico feliz (Félix)/infeliz reilumina as alegrias e vicissitudes das personagens. Félix é efetivamente o “artífice do seu próprio infortúnio”, “dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso” é infeliz. Suas dúvidas o traem (our doubts are traitors) e o fazem perder o bem da vida (and make us loose the good we oft might win), pois é pusilânime e sem vontade de superar o seu passado (by fearing to attempt).
O mesmo acontece com relação à estrutura simétrica dos capítulos, pois confirma a leitura de que o passado é o centro da narrativa, inviabilizando o futuro e petrificando o presente: capítulo I – aponta para o futuro (as possibilidades do ano bom), capítulo XI – o passado, capítulo XXIV –
o presente. O pretérito (defunctus) é vigente na visão ensimesmada de Félix e somente o narrador decodifica esse fato e o ironiza. Cabe ao leitor fazer a (des)leitura.
Agora podemos retomar o raciocínio que seguíamos algumas páginas atrás sobre o capítulo XI, “O passado”, quando afirmávamos ali se encontrar o clímax do embate entre Lívia e Félix no diálogo revelador entre esses dois personagens ou caracteres.
O capítulo, como ficou dito, se encontra praticamente no meio do livro que possui 24 capítulos, com ainda o indicador de que o primeiro, “No dia de ano bom”, se refere ao futuro, e o último, ao presente, “Hoje”. Esta estrutura temporal é significativa se levarmos em consideração que, no capítulo XXIV, o narrador fala no presente de sua enunciação ( dez anos após os fatos
192 Ressurreição, XXIV, p. 275.
narrados, o enunciado), com o tom reflexivo que somente sua dupla feição de narrador e comentarista dada pela sua posição de narrador autoral pôde garantir-lhe. Poderíamos mesmo complementar essa nomenclatura chamando-
o narrador autoral dramático, que faz mais jus à sua mobilidade de visão.
Nesse capítulo, no entanto, quase não fala o narrador. Todo ele gira em torno do diálogo de Lívia e Félix. É o próprio momento do embate ou contraste dos caracteres que, em verdade, não se dá apenas entre os dois personagens, mas também dentro de cada um deles como um jogo de vozes em luta e disputa dentro das suas consciências. Todos os fatos giram em torno do passado de cada um e do que suas consciências representam desses fatos. Primeiramente Lívia expõe a Félix seu passado:
-Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? Disse Félix depois de alguns instantes. -Oh! Descansa! Não me pesa nada na consciência, mas no coração...
-Amaste alguém?
-Amei a meu marido. A esta resposta de Lívia seguiu-se novo e longo silêncio. A memória do passado a que ela tão misteriosamente aludira parecia doer-lhe na alma... 193
A confissão de Lívia dói não só nela como também no médico. Sua insegurança e desconfiança, fruto do seu caráter, levam-no a inquiri-la. Em sua explicação, como ela mesma diz, não há nada que lhe pese na consciência. Amou o marido, dedicou-se ao seu amor e ao casamento, mas não foi feliz. Seria Félix o “médico” “capaz de desfazer ou corrigir o defeito?” 194 E a pergunta central: “Erraríamos ambos, quem sabe?” 195
Estranhamente, para Félix, a confissão de Lívia não traz nada de escabroso ou que desabone sua pessoa. Estranhamente porque Félix esperava que houvesse algo. E, na sua visão, há. Desse contraste deve nascer a desconfiança do leitor. Não em relação a Lívia como o faz Félix, mas em relação ao que o texto não diz e fica entredito: Lívia também constrói seu 193 Ressurreição, XI, p. 115. 194 Ressurreição, XI, p. 118. 195 Ressurreição, XI, p. 117.
infortúnio ao não saber julgar Félix. Ela não errou por ação, mas por inação. Como ela mesma reconhece: “Nasci defeituosa, parece” 196 . Ela não errou, mas é o próprio erro. Seu problema não é de ação, mas de reflexão. Retornamos ao elemento dramático do caráter das personagens. Seu caráter pueril, “romântico”, impede-a de julgar bem quem lhe seria melhor companheiro. Por isso, sofre.
Por estar mais preocupada com parecer do que ser, reitera erros do passado, confirmando nossa tese de que ela é que é a errância. Nada faz de errado, mas, em sua inação, escolhe errado, pois isto lhe é inato. Seu drama não é o drama cinético da tragédia aristotélica (to do or not to do), ou seja, o de agir erroneamente, cometer um erro na lógica das ações (hamarthia) e, por isso, pagar. Seu drama é, porém, o drama estático shakespeareano do tobe or notto be: sua natureza é defeituosa.
O mesmo cabe a Félix, como ele mesmo confessa: “eu não creio na sinceridade dos outros” 197 . Ou, como diz em trocadilho com seu nome: “O infortúnio é egoísta,...” 198 (Pode-se mesmo fazer um longo recenseamento desses trocadilhos estruturalmente colocados no texto). Sua fala é tão elucidativa do seu caráter que chega mesmo a revelar o sentido do título do romance:
-É certo que me ressuscitaste, continuou o médico; e se o futuro me guarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só os deverei, minha boa Lívia; tu só haverás feito o milagre. Mas...
-Mas? Repetiu a moça com impaciência. -A obra não está completa, continuou Félix; metade apenas. Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem ela, o meu amor será um longo e inútil martírio. 199
196 Ressurreição, XI, p. 118. 197 Ressurreição, XI, p. 119. 198 Idem. 199 Ressurreição, XI, p. 122.
Enfim, se seu coração ressuscitou, sua perseverança não esteve à altura desse evento. Quer dizer, se ressuscitou, já morreu de novo. A ironia que deve ser lida no título do romance, Ressurreição, é justamente essa: apesar de o coração de Félix ter renascido, sua natureza casmurra e suspeitosa, seu caráter desconfiado não permitiu sua efetiva reabilitação para o amor e para uma nova vida. A dúvida lhe corrói a alma; por isso, o narrador o ironiza no último capítulo: “O amor do médico teve dúvidas póstumas” 200 . Ressurreição, portanto, significa morte.
E é justamente esse efeito petrificante do passado, que imanentiza todos os outros capítulos do livro, que o põe bem no meio da narrativa. É também essa visão de mundo de Félix que produz o jogo entre texto e silêncio na estrutura irônica de Ressurreição. Trata-se daquilo que Silviano Santiago chamou de “retórica da verossimilhança” e que se torna um dos elementos do “realismo” machadiano, que o difere de Eça de Queirós, por exemplo. A percepção desse elemento muda a leitura de Dom Casmurro, por exemplo. A noção de que não é o adultério que move a narrativa, mas a fenomenologia do ciúme:
Mais importante ainda é não cair em outro equívoco da crítica machadiana que insiste em analisar Dom Casmurro como um pendant , ou mesmo excrescência de certa corrente do romance burguês mas de intenção antiburguesa do século XIX, a do estudo psicológico do adultério feminino, cujos exemplos mais conhecidos para nós brasileiros são Madame Bovary e O Primo Basílio. Segundo essa crítica – que não percebe que o romance de Machado, se estudo for, é antes estudo do ciúme, e apenas deste – dois partidos tomaram bandeira e começaram a se digladiar em jornais, revistas e até em livros se condenava ou se absolvia Capitu. Essa disputa chegou a tal ponto, que um machadiano incansável, Eugênio Gomes, decidiu entrar em campo e apaziguar os ânimos e os grupos rivais, escrevendo 200 páginas que levam o título infeliz de O Enigma de Capitu. 201
A consumação do ciúme em Ressurreição se deve a uma carta anônima. Seu teor é dos mais insólitos, pois trata de um suposto adultério de
200 Ressurreição, XXIV, p. 234. 201 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos, p. 29.
Lívia ao seu defunto marido: “Mísero moço! És amado como era o outro; serás humilhado como ele. No fim de alguns meses terás um Cireneu para te ajudar a carregar a cruz, como teve o outro, por cuja razão se foi desta para a melhor. Se ainda é tempo, recua!”. 202
Mesmo que Meneses tenha tomado a peito o caso e se esforçado para dissuadir Félix de continuar a funesta empreitada de acabar o noivado um dia antes do casamento com Lívia – curiosamente o casamento seria em Janeiro, como os amores póstumos do dia do ano bom -, nada convencia o médico de que não era verdadeira a carta. Mais à frente, o próprio narrador interrompe a narrativa e confirma a versão de Meneses de que fora Luís Batista – o torpe rival de Félix no amor de Lívia – quem a escrevera.
Ler o texto, portanto, não se resume a ler o dito. Pois se o próprio narrador nos elucida que a carta era falsa, apenas um joguete do rival de Félix, como lhe assegurou Meneses, qual o sentido desse elemento na economia do romance?
A resposta para tal pergunta pode ser construída a partir da fala do narrador no capítulo final: A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter a prova cabal de que Luís Garcia fora o autor da carta; Félix não lhe recusou o testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista, não estava suprimida a verossimilhança do fato, e bastava ela para lhe dar razão. 203
O narrador nos afirma que Luís Batista era o remetente. Nós, leitores, o sabemos. Meneses quer prová-lo para Félix. Mas Félix não dá importância ao que lhe diz Meneses, ao que sabemos. Félix prefere dar importância à verossimilhança dos fatos, à possibilidade de eles serem verdadeiros, mesmo que saibamos que o não são. Assim, o narrador, ardilosamente, leva-nos a questionar a postura de Félix. Percebemos, desta maneira, que o que se narra não são ações, mas paixões. O leitor deve
202 Ressurreição, XXII, 218. 203 Ressurreição, XXIV, p. 234.
desvelar que, se o que parece verdade é verdade para Félix, o problema de sua insegurança e ciúme não estão apenas em Lívia, mas nele mesmo. Assim como ela, ele também confunde ser com parecer e não percebe que ele mesmo é o construtor de seu infortúnio. Cabe ao leitor também percebê-lo.
Esse recurso de delegar ao leitor a construção do sentido só é alcançado pelo jogo de aproximação e afastamento do narrador. Ele nos diz e nos dá algumas entradas no sentido em representação, mas é justamente onde ele se cala que o texto fala. Fala nas ambigüidades e nos fragmentos que reverberam a totalidade do sentido, na construção representativa que se entremostra no percurso da leitura. De tal maneira que a estrutura irônica se entrevê em cada uma das partes do texto. Até mesmo em uma pequena frase, nós temos a totalidade do sentido do romance, como é o caso da caracterização de Félix pelo narrador: “Félix é essencialmente infeliz” 204 .
A estrutura irônica de Ressurreição revela, no jogo entre a enunciação e o enunciado, um sentido latente que não se esgota na relação simétrica entre um e outro. Essa simetria só funciona aparentemente, por isso muitos consideram o romance uma obra romântica. Porém a leitura mais acurada revela que o narrador não diz tudo o que sabe e intervém na narrativa com reflexões que, por não serem explícitas, por estarem fragmentadas – marcando o próprio limite do saber do narrador -, mais instigam do que nos dão
o sentido. Mesmo porque o sentido está em construção no jogo de idas e vindas das entrelinhas do texto, o que já infirma a tese de romance romântico apontada pela crítica, uma vez que a narrativa progressiva de eventos consecutivos (narratus consecutio) da tradição do romance de enredo do Romantismo não é confirmada pelos silêncios e pela seqüência paratática da leitura interpretativa exigida pela construção. Tal leitura paratática é justamente
o jogo com o leitor, a exigência de encontrar as relações e seqüências que, muitas vezes, desdizem o que a aparência diz. O jogo irônico do texto exige justamente que leiamos por trás das aparências, ao contrário dos personagens, construindo as relações de sentido que o texto esconde.
204 Idem.
Na amplitude hermenêutica aberta pelo jogo irônico da narrativa,
podemos dizer que o sentido que se vela e revela no horizonte construtivo do
texto é a própria ironia do mundo. A ironia cósmica de que falavam os
românticos alemães. O jogo do sentido simboliza que é o mundo e a vida que
corróem as certezas de Félix, o jogo aponta para a nadificação do ser no
mundo, onde toda certeza é prismatizada pelo movimento incessante da
natureza e da disposição dos dados, da sorte, nunca totalmente apreensível à
razão ou à emoção. O jogo da ironia é o jogo do mundo, nas palavras de
Eugen Fink:
Nous ne pouvons parler d’un jeu du monde que dans une “équation” qui est altérée d’une façon decisive et qui est, pour cette raison, brisée. Le jeu du monde n’est le jeu de personne, parce que c’est seulement en lui qu’il y a des personnes, des hommes et des dieux; et le monde ludique du jeu du monde n’est pas une “apparence”, mais apparition. L’apparition, c’est la naissance universelle de tous les étants, de toutes les choses et de tous les événements dans une présence commune, réunifiant toutes les choses individuelles, dans une presence, auprès des nous. Ce que nous avons l’habitude d’appeler monde, c’est la dimension mondaine de la présence, la dimension de l’apparition où les choses sont en réalité separées les unes des autres, mais où elles sont tout de même réunies dans une voisinage spatial et temporel, et liées les unes aux autres par des règles fixes. Mais le monde est aussi le domaine anonyme de l’absence, à partir d’où les choses apparaissent et où ensuite elles disparaissent. A supposer que Hadès et Dionysos soient une et même chose. Si le jeu du monde peut avoir en sens pensable, il faut le concevoir comme rapport entre la nuit du monde et le jour du monde. Dans le problème de l’individuation, on cherche de ce qu’il y a derrière l’apparition de l’étant, et la pensée plonge dans la profondeur absente que nous cache le plus souvent le jeu à la surface de la terre. Tout étant est jouet cosmique, mais tous les joueurs sont eux aussi simplement joués. L’apparition est le masque derrière lequel il n’y a “personne”, derrièrre lequel il n’y a rien d’autre que justement le rien. [Nós não podemos falar de um jogo do mundo senão em uma “equação” que é alterada de uma maneira decisiva e que é, por esta razão, quebrada. O jogo do mundo não é o jogo de pessoa, porque é somente nele que há pessoas, homens e deuses; e o mundo lúdico do jogo do mundo não é uma aparência, mas “aparição”. A aparição é a nascença universal de todos os entes, de todas as coisas e de
todos os acontecimentos em uma presença comum, reunindo todas as coisas individuais, em uma presença, perto de nós. O que nós temos o hábito de chamar mundo é a dimensão mundana da presença, a dimensão mundana onde as coisas são em realidade separadas umas das outras, mas onde elas são apesar disso reunidas em uma vizinhança espacial e temporal, e ligadas umas às outras por regras fixas. Mas o mundo é também o domínio anônimo ausência, a partir de onde as coisas as coisas aparecem e depois desaparecem. A supor que Hades e Dioniso sejam uma e a mesmacoisa. Se o jogo do mundo pode ter um sentido pensável, é necessário concebê-lo como intercâmbio entre a noite do mundo e o dia do mundo. No problema da individuação, procura-se o que há por trás da aparição do ente, e o pensamento mergulha na profundidade ausente que nos oculta o mais freqüentemente o jogo à superfície da terra. Todo ente é joguete cósmico, mas todos os jogadores são também simplesmente jogados. A aparição é a máscara atrás da qual não há “pessoa”, atrás da qual não há nada outro senão justamente o nada.] 205
Ao desconstruir a leitura linear dos eventos e das atitudes da
personagem, Machado realiza o que havia anunciado no prefácio: não fazer
romance de costumes. Ele performa a paródia do romance de costumes.
Comparece em seu texto a complexidade da estrutura paródica e irônica ao
quebrar a lógica da narrativa de eventos consecutivos, ao urdir um subtexto ou
palimpsesto por detrás do texto, ao requisitar a participação ativa do leitor, ao
cindir a consciência da personagem (drama de caracteres). Esses mesmos
elementos comprovam a presença da ironia no sentido do Romantismo Alemão
apresentada no primeiro capítulo desta tese. A mesma ironia que desestrutura
a elaboração idealista do romance de costumes e da estória de amor romântica
nos revela, em Ressurreição, a tensão entre amor e morte, consciência e
inconsciência.
205 FINK, Eugen. Le Jeu comme Symbole du Monde. Traduit par H. Hildebrand et A. Lindenberg. Paris : Les Éditions de Minuit, 1960, pp. 238-239.
Será que, como o raio de sol atravessa as nuvens, Às idéias segue, talvez mentalmente maduro,
o ato? O fruto seguiria, Como à folha escura do bosque, À escrita silenciosa? (Friedrich Hölderlin)
They’ll tell you virtue is a masque But it would look extremely queer In any one to wear it here. (Henry Fielding, The Masquerade).
Em Iaiá Garcia lidamos com a ironia em sua forma mais afeita a seu uso socrático – tendo sempre em vista o sentido dado a este uso pelo Romantismo alemão. Trata-se da ironia como questionamento da verdade, que é o elemento central da atuação de Sócrates sobre a vida da pólis. O questionamento da verdade que Schlegel aponta como o problema da “urbanidade” da ironia. Modernamente podemos falar da questão da verdade ou da mentira como um problema de ilusão ideológica ou de mascaramento ideológico. Iaiá Garcia é a leitura desse mascaramento no diapasão do texto literário como desvelamento do sentido, o que o torna um romance de desmascaramento ideológico. A ironia é o processo de construção do texto (estrutura) que o transforma em pretexto do sentido silenciosamente urdido no intertexto. Essa estrutura eivada de ambigüidades da linguagem do romance expressa-se e inscreve-se em frases, lugares comuns e jogos de sentido que revelam, no ato da leitura como desleitura do travejamento estrutural do texto, um mundo regido pelo interesse. A ironia como questionamento ideológico é a revelação do traço mais grotesco do jogo social.
Para compreender a estrutura irônica de Iaiá Garcia deveremos retomar o conceito de mímesis aristotélica presente na retórica da verossimilhança de Ressurreição. Na verdade, o que é importante na mímesis aristotélica é compreender que não é a realidade enquanto real realizado que se imita na poesia, mas a realidade como realização e possibilidade de ser do real que se abre no texto. A obra literária recria a realidade no jogo de possibilidades criativas da formatividade do texto. A realidade é transformada (Verwandlung) em construção (ins Gebilde), como diz o conceito de jogo da hermenêutica gadameriana. Essa construção ou jogo irônico é a abertura de uma visão desilusionante sobre a realidade representada. No jogo da representação (Darstellung) irônica do real, o sentido que se apresenta (darstellen) transforma a realidade em uma possibilidade de ser no desvelamento da ideologia que subjaz à realidade real. A realidade ficcional é o resultado da operação crítica da leitura que a literariedade ou procedimento singularizante do texto faz da realidade real. A desautomatização do real realizado é o questionamento operado pela estrutura textual.
Tal operação exige, mais radicalmente, a leitura do sentido do texto no entre-texto (silêncio), exige a leitura do sentido esquivo do entre-texto. Em Iaiá Garcia, a referência histórica se dá através de um intrincado processo de referências tanto ao pano-de-fundo histórico-sociológico quanto ao pano-defundo da tradição literária, principalmente através da paródia do romance romântico. O principal elemento desse aspecto paródico é a construção da expectativa do leitor em torno do “amor” dos personagens Jorge e Estela (ironicamente deslocados pelo título do romance) e a posterior frustração dessa mesma expectativa, que é, na verdade, a expectativa do leitor romântico de ler um romance ou narrativa de “final feliz”. Quanto à referência ao pano-defundo histórico-sociológico, o romance se arma de uma construção complexa. Para discuti-la, é necessário retomar a reflexão sobre a relação ficção e realidade.
Devemos, primeiramente, entender que essa relação não é binária, mas ternária. Não se trata de estar de um lado a ficção, como o não-real, e do outro a realidade, como o não-ficcional. Deve-se levar em consideração que a relação é entre real-ficção-imaginário. 206 A ficção é um termo medial, é a organização específica do real pelo imaginário, ou a realização singular do imaginário. A função referencial do discurso ordinário ou quotidiano é colocada em segundo plano pela organização que lhe dá a função poética. 207 A referência do discurso à realidade se transforma a partir da dialética de tema e horizonte. Nesse jogo, o dado histórico-sociológico sofre um distanciamento de si mesmo na estrutura do discurso romanesco, distanciamento que revela paradoxalmente a maior proximidade do real, pois revela sua possibilidade de ser lido pelo processo de desmascaramento acionado pela ficção, assim como lê a ficção como uma referência ao processo que ele representa.
Segundo os intrincados caminhos que a relação texto/realidade performa, gostaríamos de dialogar com a leitura hermenêutica da relação texto -entre-texto – ideologia aberta por Eduardo Portella em seu Fundamento da Investigação Literária. 208 Acreditamos que sua desenvoltura seja pertinente ao romance em questão pelos motivos apresentados anteriormente: o romance faz uma desleitura do romantismo e desmascara o “interesse” como moto do relacionamento social. Porém, além disso, acreditamos que essa operação seja irônica na medida em que esse desmascaramento se dá como um jogo de linguagem operado pela dinâmica do texto, dinâmica da qual o narrador e o autor implícito fazem parte ativamente. Aquilo que afirma Portella no texto
206 Conferir: ISER, Wolfgang. “Atos de fingir”. In:_. O fictício e o imaginário (Perspectivas de uma antropologia literária). Trad. de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, pp. 13-37. 207 Nunca é demais lembrar a enunciação da função poética da linguagem de Roman Jakobson: “A função poética projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação. A equivalência é promovida à condição de recurso constitutivo da seqüência”. Ou ainda: “A supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”. Trechos retirados de: JAKOBSON, R. “Lingüística e poética”. In: _. Lingüística e comunicação. 22.ed. Trad. de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2003, pp. 118-162. 208 PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. 2.ed. Fortaleza: Edições UFC; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981.
citado está em realização no romance de Machado de Assis: “promover a conversão literária do dado ideológico”. 209
Para Portella, podemos traduzir a relação texto/contexto através da relação ideologia/utopia. A literariedade dinamiza a relação ideologia/utopia, uma vez que promove a transgressão e o desvelamento da força retensiva do ideológico através da energia propulsora do utópico que todo trabalho da poiein traz já de per si embutido em sua operação textual. Segundo Portella: “Na literatura a ideologia realiza, em toda plenitude, a interação particular-geral, através do encontro texto e pré-texto”. 210 Como o sentido da obra não se esgota no sentido sociológico, mas é uma operação ao nível da linguagem, sua ideologia não se esgota no texto ou no pré-texto, mas se revela (e aqui está a força da hermenêutica heideggeriana como revelação na e pela linguagem do “tesouro do essencial”) no entre-texto: “O desvio do conceito exige, como contrapartida, a reversão originária: a ideologia é o texto enquanto totalidade; é
o entre-texto”. 211 Quer dizer, a literatura faz a conversão poética do ideológico.
Queremos mostrar que essa desleitura poética do entre-texto é o trabalho da ironia como operação da linguagem. Para tanto, é necessário revisitar o conceito de ideológico e observar como a diferença de leitura entre o sociológico e o poético se realiza e como a leitura poética se concretiza diante do mundo. Querendo ouvir um hermeneuta que refletiu sobre a relação da ideologia com a literatura, podemos ouvir Paul Ricoeur:
Este é, me parece, o papel da maior parte da nossa literatura: destruir o mundo. Isto é uma verdade da literatura como ficção
– conto, mito, romance, teatro -, bem como de toda literatura denominada de poética, onde a linguagem parece glorificada em si mesma, em detrimento da função referencial do discurso ordinário. [...] Minha tese consiste em dizer que a abolição de uma referência de primeiro nível, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, não mais somente no plano dos objetos manipuláveis, mas no plano que
209Idem, p. 121. 210Idem, p. 126. 211 Ibidem.
Husserl designava pela expressão de Lebenswelt e Heidegger pela de “ser-no-mundo”.É essa dimensão referencial absolutamente original da obra de ficção e da poesia que, a meu ver, coloca o problema hermenêutico mais fundamental. Se não podemos definir a hermenêutica pela procura de um outro e de suas intenções psicológicas que se dissimulam por detrás do texto [hermenêutica romântica]; e se não pretendemos reduzir a interpretação à desmontagem das estruturas [estruturalismo], o que permanece para ser interpretado? Responderei: interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto. 212
A representação do mundo pela literatura é a manifestação da imagem construída no texto, é a trans-visagem do real. É a própria destruição do mundo empírico, uma vez que é a aparição deste mundo no mundo da obra. A reflexão do mundo no mundo da obra faz do mundo um pré-texto do texto. A circularidade entre texto e pré-texto engendra a literatura como fazer crítico e meta-lingüístico. A reflexão como ironia ou a ironia como o pensar do pensar se aloja bem no meio da dinâmica da obra. A ironia é a resultante da operação concomitante de execução e invenção. A ironia é a atividade formante e formada, é o mundo que se lê e é a leitura do mundo: “o fazer literário e o fazer crítico se confundem”. 213
Iremos encontrar, por sua vez, na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, a discussão complexa sobre ideologia. 214 Tal análise mostrará que em geral existem dois significados distintos e separáveis, no ponto-de-vista sociológico, do termo em questão: o particular e o total. Mannheim chega a essa sistematização através da análise das variações dos significados do conceito, para além ou aquém de uma abordagem exclusivamente marxista que, no decurso da história, parece ter tomado o privilégio da questão.
Para Mannheim, as duas maneiras de se pensar a ideologia apontam para uma concepção particular, por isso, individual ou psicológica, ou
212 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologia. 3 ed. Organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, pp. 55-56. 213 PORTELLA, E. Op. Cit., p. 118. 214 MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. 4 ed. Tradução de Sérgio Magalhães Santeiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
ainda uma concepção totalizadora que põe em questão a Weltanschauung total da vida em sociedade. Quer dizer, a concepção particular da ideologia realiza suas análises de idéias em um nível puramente psicológico. Por outro lado, atingimos a concepção totalizadora quando atingimos um modo de conceber o mundo de uma época ou grupo. Quando atingimos este nível já não estamos no psicológico, mas no nível teórico noológico que, além do conteúdo leva em consideração a forma ou a estrutura conceptual de um modo de pensamento ou sua “função na situação da vida”. Aí, nos parece, o seu pensamento se encontra com o de Paul Ricoeur, ou seja, com o que Ricoeur quis dizer com “interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto.” É claro que Mannheim não se refere apenas ao texto, mas à sociedade e à vida social, porém a questão hermenêutica não exclui a questão sociológica, isto é, se nossa realidade é o texto, o pensamento de Mannheim não se torna incompatível com o nosso escopo.
Temos, para tanto, que avançar na discussão de Mannheim sobre
o problema da ideologia. É importante, portanto, frisar que, para o autor, ideologia é termo que convoca a operação da utopia. Ideologia e utopia estão em relação direta – apesar de serem pensadas de maneira contraposta – num pensamento que pretenda desvendar as forças imanentizadoras do real. Isto é, a descoberta da ideologia impulsiona o pensamento sociológico para a crítica da força imanentizadora do real enquanto o desvelamento da utopia revela como o inconsciente coletivo oculta certos aspectos da realidade social: “É a tarefa deste livro alinhar – nas duas direções indicadas – as fases mais significativas na emergência desta descoberta do papel do inconsciente como aparece na história da ideologia e da utopia” 215 . As duas direções são os conceitos de ideologia e utopia:
O conceito de ideologia reflete uma das descobertas emergentes do inconsciente político, que é a de que os grupos dominantes podem, em seu pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesse a uma situação que simplesmente não são mais capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominação. Está implícita na palavra “ideologia” a noção de
215 Idem, p. 67.
que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos
grupos obscurece a condição real da sociedade, tanto para si
mesmo como para os demais, estabilizando-a portanto. O conceito de pensar utópico reflete a descoberta oposta à primeira, que é a de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente tão firmemente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que, mesmo involuntariamente, somente vêem na situação os elementos que tendem a negá-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar corretamente uma situação existente da sociedade. Eles não estão absolutamente preocupados com o que realmente existe; antes, em seu pensamento, buscam logo mudar a situação existente. Seu pensamento nunca é um diagnóstico da situação ; somente pode ser usado como uma orientação para a ação. Na mentalidade utópica, o inconsciente coletivo, guiado pela representação tendencial e pelo desejo de ação, oculta determinados aspectos da realidade. Volta as costas a tudo que pudesse abalar sua crença ou paralisar seu desejo de mudar as coisas. 216
Segundo, porém, os passos e trâmites de uma leitura hermenêutica do problema sociológico – leitura que tem como guia o texto de Portella – podemos ainda convocar um novo conceito de utopia que não se perca da realidade e, por isso, possa “promover a conversão literária do dado ideológico”. 217 Esse conceito é o de utopia concreta de Ernst Bloch compendiado em sua obra monumental Das Prinzip Hoffnung (O Princípio Esperança). 218 Mais do que um caráter filosófico para o qual existe uma forma certa e uma forma errada de apresentar a realidade humana, o conceito de “esperança” assume em Bloch um caráter hermenêutico, um caráter vital como utopia transfiguradora da realidade, seja em que nível de repressão que ela esteja, mesmo que suas formas vitais se apresentem sob a forma do “falso” (ideológico) que, em última análise, pode ser lido como um disfarce do “verdadeiro” que é apreendido na dinâmica da esperança.
216 Idem, pp. 66-67. 217 PORTELLA, E. Op. Cit., p. 121. 218 BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança (3 vols.). Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ, Contraponto, 2005.
Há na obra de Bloch um capítulo que trata justamente da alegoria
fundamental do princípio esperança, cujo título, “Resquícios de imagem utópica
na realização”, aponta para a dimensão da relação utopia-realidade. Trata-se
da lenda de Helena egípcia e Helena troiana, que assim nos apresenta o autor
citando a narrativa de Hoffmansthal:
Encontramo-nos no Egito ou na ilha de Faros pertencente ao Egito, diante do castelo real. Menelau entra em cena, retornando sozinho da viagem a Tróia. Há meses o seu barco erra de um lado para outro, jogado de costa a costa, sendo constantemente impedido de voltar ao lar. Numa baía protegida, ele havia deixado Helena, a esposa reconquistada, com seus guerreiros. E procura um conselho, um auxílio, um oráculo que lhe ensine como encontrar o caminho de casa. Então vem ao seu encontro, saindo do peristilo da fortaleza, Helena, não a bela e muito formosa que ele havia deixado no barco, mas uma outra e ainda assim a mesma. E ela declara ser sua mulher – a outra lá no barco seria ninguém e nada, um fantasma, uma imagem ilusória, jogada outrora nos braços de Paris por Hera (a protetora do matrimônio) para caçoar dos gregos. Por causa desse fantasma, fizeram-se dez anos de guerra, caíram miríades dos melhores homens, a cidade mais florescente daÁsia se desmanchou em cinzas. Ela mesma, Helena, a única verdadeira, teria vivido nesse meio tempo neste castelo real – trazida por Hermes por sobre o mar. 219
A revelação de que ela, Helena egípcia, era real e vivera
imaculada e retirada magicamente é tão bruscamente contraposta à imagem
da Helena Troiana, a esposa infiel, prodigalizadora de um mundo de culpa e
sofrimento (mas mesmo assim o ideal ou troféu da vitória a ser alcançado no
fim da batalha) que Menelau, ao surgir da Helena egípcia, diz: “Creio mais no
impacto dos sofrimentos passados do que em ti” 220 . O real realizado é um
conhecimento tardio. Insiste a amplitude dos dez anos de busca e esperança
de vitória. O desaparecimento da fantasia e sua realização estão aquém da
imagem que acompanhou Menelau e o impulsionou à luta e à sua viagem de
conquista. Desse mito, emerge uma curiosa aporia entre o real e o ideal, pois
este quase se torna o real e o real se torna uma fantasmagoria. Quer dizer, é
219 Idem, pp. 182-183. 220 Idem, p. 183.
preferível o poder de sonho e de luta do ideal vitalizante do que a realização mera e pura do real. O real nunca se esgota na realidade realizada, ele almeja a esperança da realização. E Bloch arremata: “O repouso, porém, só virá no dia em que a Helena egípcia contiver também o brilho que envolve a troiana”. 221
É quase inevitável, após a leitura da lenda de Helena, a citação ou referência a um texto fundamental da literatura brasileira contemporânea: o conto “Desenredo” da obra Tutaméia de João Guimarães Rosa 222 . O conto resolve e revolve o tema do adultério em perspectivas complementares de leitura. Num primeiro nível, trata do adultério mesmo, fato tematizado pelo conto, seu conteúdo explícito: a estória da relação amorosa de um amante traído que passa, ao se casar com sua amante, a marido traído e que, por fim, imprevisivelmente, se dá à engenhosa tarefa de des-dizer o fato e criar diferente versão que inocenta sua esposa. Realiza-se, assim, sua “idéia inata”: ser feliz. “Desenredo” aponta para o homem que soube pôr um final feliz – incluindo seu ideal no real, mesmo que humoristicamente – à sua útil vida, convivendo e convolando-se com ela. Aprendizagem de paciência, o tempo apresenta-se em Rosa como a força plasmadora da verdade. O homem que almeja a felicidade é para o autor como o personagem que, discordando do narrador, se torna agente e, por isso, inventor de seu próprio destino. Nesse sentido, o adultério é mais do que um tema, é a cifra da operação textual que realiza o autor na tessitura do texto e da vida, com a paciência de quem aprendeu a re-ler o lido e desentranhar seu sentido inédito e inaudito, colocando-o para existir.
Enfim, o jogo entre o real realizado e o real em realização é o que a ficção empreende. É a compreensão desse jogo que buscamos na passagem pelos textos anteriormente citados. A desleitura do real realizado pela realização dinâmica do jogo da obra é o tema de nosso capítulo. Tal desleitura está em Iaiá Garcia 223 . A desconstrução do horizonte romântico por este
221 Idem, p.184. 222 ROSA, João Guimarães. Tutaméia – Terceiras Estórias. 8.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 223 ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., s.d. (Todas as referências foram tiradas desta edição).
romance é a operação irônica que o insere no horizonte de nosso trabalho. A estratégia da ironia em Iaiá Garcia é a de construir desconstruindo, paradoxo irônico. O narrador autoral é a cifra da ambigüidade narrativa: narra e silencia, mostra sem mostrar, fala a sério com um riso de canto de boca, enfim, brinca com nosso entendimento, pedindo ao leitor que decifre o desenredo do romance. A ironia está nesses entre-ditos, no sub-texto ou palimpsesto que se entrevê no intertexto. A ironia é o sentido esquivo que corrói o texto escrito – no qual se inscreve a ideologia de um mundo regido pelo interesse – em demanda de um sentido virtual que dá ao leitor a amplitude significativa da consciência desse mundo. O texto é uma esperança de ser mais no processo de leitura, desrealizando o real e fundando outro horizonte: o horizonte paródico da consciência irônica.
Para realizar o narrar ambíguo que enunciamos, o narrador conjuga ao narrar o refletir. Toda cena é narrada e comentada, quando não é narrada já com um tom reflexivo inscrito na enunciação da cena. O mais aparente descaso, nesse narrar, é só e simplesmente aparente. Pois tudo é medido. A simetria de cena para cena ou de partes do romance para outras partes, ou ainda num nível mais micronarrativo, de parágrafo para parágrafo e mesmo de período para período é notável. Cada enunciação é eco de tantas outras, desencadeando um leque de sentidos entre-ditos.
Reverbera esse procedimento a apresentação, no primeiro capítulo, do mundo de Luís Garcia. O contar deslocado é arrevesado até nisto:
o romance começa com a apresentação de um personagem que no decoro da narrativa é central apenas no plano do desenredo, pois, no plano do enredo amoroso que a narrativa simula, ocuparia um papel secundário. O estranho é que esse papel secundário se torna efetivamente principal no âmbito de um mundo regido por relações de interesse. Quando, portanto, na primeira frase do romance, o narrador enuncia “Luís Garcia transpunha a soleira da porta...”, significa que seu mundo se apresenta ao leitor. O mundo de Luís Garcia, o “funcionário público”, que vivia num “estado de apatia e ceticismo, com laivos de desdém”, para quem “uma onça de paz vale mais que uma libra de vitória”, que “era inofensivo por temperamento e por cálculo”, cuja vida era como a pessoa – “taciturna e retraída”, por trás da qual um observador atento poderia adivinhar “as ruínas de um coração desenganado”, eco do coração de Félix em Ressurreição. Não só seu coração como toda sua vida era uma ruína, chegando mesmo a petrificar a casa e até os móveis: “Não somente o teor da vida tinha uma uniformidade, mas também a casa participava dela. Cada móvel, cada objeto, -ainda os ínfimos, -parecia haver-se petrificado”. Tudo correspondia ao estatuto da vida domada e regular: “A regularidade era o estatuto comum”. Homem e coisa obedeciam ao mesmo estatuto de regularidade e falta de vida: “E se o homem amoldara as coisas a seu jeito, não admira que amoldasse também o homem”. Esta última frase faz referência ao amoldamento do escravo, Raimundo, ao mundo de Luís Garcia, e é também o eco que reverbera por todo o romance. Realmente o homem amolda (e se amolda), pelo interesse, o (ao) homem, assim como amolda as coisas. O paradoxo dessa operação está na descrição de Raimundo: “Era escravo e livre”. Como alguém pode ser livre sendo escravo, ou ser escravo, sendo livre? Parece que as personagens irão responder a essa dúvida com suas atuações.
Representação cabal dessa consciência irônica do narrador machadiano em Iaiá Garcia é a representação da atitude de Raimundo que, ao receber a carta de liberdade, achou que aquela era uma forma de Luís Garcia
o expelir de casa:
Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu 224 .
Estranha atitude que reverbera o fato de ser ele “escravo e livre”. Mais estranha ainda é a sua atitude de não cumprir o seu impulso e de não rasgar, como gesto abnegado de lealdade, a carta. Em outras palavras, o narrador deixa-nos, maliciosamente, entrever as intenções exclusas de
224 ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia, p. 9.
Raimundo; sem no-las apresentar, é claro. E ainda mais significativo é o narrador nos dizer que “Raimundo foi dali em diante um como espírito externo de seu senhor; pensa por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas as suas ações,...” 225 . Quer dizer, tanto um como outro são escravos da “circunstância exterior”. Se Raimundo é como o espírito externo de Luís Garcia, é que este é tão escravo (ou tão livre?) como o outro.
Reversivelmente, Raimundo recolhia-se à noite à casa com seu amo e tocava em sua marimba “umas vozes de África”. Claramente está aqui colocada a referência à escravidão e à condição negras. Além da referência imbutida à poesia abolicionista e ao movimento afim. Porém, ao invés de lembrar-se saudosamente de sua terra natal ao entoar seus cânticos, Raimundo o fazia apenas para alegrar seu amo, em nome de sua “amizade”, o que nos revela a envergadura de sua alienação e desinteresse que, por sua vez, não apontam para o desinteresse de Machado de Assis pela causa negra, mas para a ironia da obra que relê o real no diapasão da consciência alienada dos personagens. Um leitor perspicaz leria a fina ironia que representa, no silêncio do entredito da enunciação, que nem negros nem brancos são livres, mas que tanto uns quanto outros são escravos no jogo social das circunstâncias exteriores.
Para dar conta desse paradoxo, o narrador opera com o tom dual que poderíamos apontar como o princípio da ambigüidade. Aparentemente não está em sua voz o que está em sua voz. É o que ocorre inúmeras vezes e, só para citar uma situação que dê continuidade ao raciocínio do parágrafo anterior, lembremos do que esse narrador nos fala ao apresentar Iaiá Garcia: “Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha” 226 . Quão estranho e ambíguo é aquele “apenas”, pois entre duas afeições, Raimundo era “apenas” a segunda. O que pode ser “apenas” é também uma entre duas afeições, o que não exclui a segunda do tom coisificante do “apenas” referido à primeira. Essa ambigüidade se reforça quando logo depois soa o “uma filha”. Um artigo indefinido que
225 Idem. 226 Idem, p. 10.
parece tão avesso ao “a primeira”: “...A primeira era uma filha”. É realmente microscópica a estrutura de ambigüidades e paradoxos que subjaz e subage à voz do narrador em cada linha do romance. Tal ambigüidade é reforçada pela observação cheia de subentendidos do mesmo narrador, quando mais à frente deixa entrever que, com relação a Iaiá Garcia, Luís Garcia era um cego: “Luís Garcia sorriu, mas um véu lhe empanou os olhos” 227 . Trata-se da cena em que
o pai pede à filha que toque de brincadeira o piano à borda da mesa, o que lhe causa tristeza pelo fato de a menina não possuir o instrumento para tocar. Solução: “No dia seguinte, Luís Garcia encheu-se de valor, pegou da caderneta da Caixa Econômica e foi retirar o dinheiro preciso para comprar um piano” 228 . A justaposição entre “encheu-se de valor” e “pegou da caderneta da Caixa Econômica” não marca, porém, uma proximidade, mas o tamanho do descompasso – ou do paradoxo que nos revela o horizonte irônico – entre o valor como sentimento nobre e o valor pecuniário. Ao mesmo tempo, porém, que notamos essa disjunção semântica, percebemos, precisamente por essa proximidade, a alusão de sentido que o texto deixa entrever no silêncio perturbador: valor é valor ($). Tal construção, de um humor fino, de uma ironia mestra, é o protótipo de frases antológicas, como algumas de seu livro posterior, Memórias Póstumas de Brás Cubas: “...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis;...” 229 Quer dizer, enquanto houve dinheiro... E Machado, dessa maneira, como que inventou o adjunto adverbial de duração do interesse, interesse que os tolos confundem com amor.
*
Como já havíamos afirmado anteriormente, o narrador encena uma fala ambígua. Ele fala aparentemente rindo, fala a sério deixando entrever seu tom jocoso. Comentamos também que o primeiro capítulo apresenta o mundo de um homem cético, um mundo morto. Esse fato é de fundamental importância tanto para a economia interna do romance em questão, quanto se
o compararmos com os romances posteriores, em que a figura do “defunto
227 Idem, p. 15. 228 Idem. 229 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. In:_. Obra Completa (Vol. 1). Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A., 1992, p. 536.
autor” se apresenta de antemão, seja na forma explícita de um narrador como Brás Cubas, seja na consciência irônica do narrador de Quincas Borba, ou ainda no tom sepulcral dos primeiros capítulos de Dom Casmurro que apontarão para o silêncio verminoso que perpassa o romance. Tal fato pode ser corroborado em Iaiá Garcia pela fala do narrador no último parágrafo do primeiro capítulo, onde se afirma que o personagem foi chamado ao drama que
o livro pretende narrar. Foi chamado de onde? Do seu mundo sepulcral, do seu túmulo. É o drama de vidas que compartilham da morte, metáfora do jogo social.
Fica claro, portanto, que a enunciação dramatiza o aspecto bifronte e ambíguo do narrador, que, se às vezes fala e cala, também outras narra e reflete. A estrutura construtiva aponta uma intencionalidade velada. Há momentos, por sua vez, em que a enunciação é uma mescla de construção e desconstrução, toca a derrisão, alternando sério e jocoso, harmonizando o cômico com o irônico ou com o grotesco. É o que Friedrich Schlegel chamou de bufoneria transcendental. Isso acontece, por exemplo, quando ao falar de assuntos aparentemente sérios ou quando apresentando um personagem ou situação, o narrador deixa entrever um subtom escarninho, um risinho de canto de boca. Todos os personagens estão sujeitos a esse olhar. Em alguns momentos a coisa é mais explícita, em outros, menos. Como exemplo, poderíamos citar o tratamento dado ao personagem mais ironizado pelo narrador: o pai de Estela, o senhor Antunes. Lembremos a cena em que ele espertamente deixa sua filha sozinha com o seu sonhado genro, Jorge – pois este era rico e bem colocado socialmente.
Após meia hora de conversa, o Sr. Antunes retirou-se alguns minutos da sala; ia ver charutos.
-Tome um dos meus, disse Jorge.
-Nada; os seus são muito fortes.
Nunca os charutos de Jorge padeceram semelhante acusação da parte do Sr. Antunes, que fumava regularmente os do filho como havia fumado os do pai. Estela ficou humilhada com a resposta e a ação. 230
230 ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia, p. 63.
Realmente a fala toca o grotesco. A última frase sugere toda a humilhação que sente Estela e que podemos entender de “fumar” o charuto de alguém no contexto que já fora anteriormente apresentado do puxa-saquismo do Sr. Antunes. O tom é maldoso e sarcástico, foge à ironia fina, mas está dentro do horizonte do grotesco e do burlesco que são formas do humor. A metáfora do “charuto” ligada ao verbo “chupar” é sexual e social, é a sugestão da posição subalterna e ridícula que ocupa o Sr. Antunes e à qual quer submeter sua filha.
Essa mesma ambigüidade experimentamos ao ler a descrição de Jorge quando da visita de Luís Garcia para convencê-lo, como havia lhe pedido sua mãe, de ir à Guerra do Paraguai. Este tema histórico é tratado dentro do tom irônico da narrativa. Neste episódio, o narrador casa ao tom solene do heroísmo implícito à guerra um tom burlesco que se entrevê na apresentação dos traços, modos e trajes do rapaz. No tom burlesco, parece-nos meio efeminado ou, ao menos, pouco talhado para os afazeres da vida militar:
Jorge, pelo contrário, mostrava-se retraído e mudo. Luís Garcia, à mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expressão dos olhos tristes e a ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nele o despeito e a irritação. Na verdade, era duro enviar para a guerra um dos mais belos ornamentos da paz. Naqueles olhos não morava habitualmente a tristeza; eles eram, de costume, brandos e pacíficos. Um bigode negro e basto, obra comum da natureza e do cabeleireiro, cobria-lhe o lábio e dava ao rosto a expressão viril que este não tinha. A estrutura esbelta e nobre era a única feição que absolutamente podia ser militar. Elegante, ocupava Jorge um dos primeiros lugares entre os dândis da rua do Ouvidor; ali podia ter nascido, ali poderia talvez morrer. 231
Ou ainda:
Vinte dias depois da conversa no terraço da rua dos Inválidos, apresentou-se Jorge em Santa Tereza, fardado e pronto, de tal modo porém que era ainda difícil separar o casquilho do militar. A mesma tesoura que lhe cortara os fraques, talhara a farda de
231 Idem, p. 28.
capitão. Trazia à cintura uma banda vermelha, cujas pontas caíam graciosamente ao lado. Calçava um botim reluzente, sobre o qual assentava a calça de fino pano. Inclinado levemente à direita, o boné não lhe desconcertava o cabelo, penteado ao estilo de todos os dias; o bigode tinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas. 232
Esse tom insiste e persiste por vários momentos do romance,
principalmente se observarmos que todas as relações são pautadas pelo favor
e pelo obséquio:
Valéria Gomes era viúva de um desembargador honorário, falecido cerca de dois anos antes, a quem o pai de Luís Garcia devera alguns obséquios e a quem este prestara outros. 233
Relações que o narrador se compraz em ironizar mais
abertamente quando se trata do retrato grotesco do Sr. Antunes:
A fortuna troca às vezes os cálculos da natureza; uma e outra iam de acordo na pessoa daquele homem, nado e criado para as funções subalternas. Familiar com todas as formas de adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hiperbólico até o silêncio oportuno. 234 [...] O Sr. Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Eclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o Dr. Pangloss; entendia que há larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. 235 [...] Pouco antes falecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dois golpes em vez de um: de o ver morrer, e de o não ver testar. As aneurismas têm dessa perfídias inopináveis. 236
Nos vários exemplos anteriormente citados fica clara a ironia
implícita na voz do narrador. Ele narra e, ao mesmo tempo, escarnece.
Escarnece narrando, o que é uma forma de construir desconstruindo. Esse
232 Idem, pp. 37-38. 233 Idem, p. 20. 234 Idem, p. 40. 235 Idem, p. 41. 236 Idem, p. 42.
procedimento, porém, só faz sentido se levarmos em consideração que a ambigüidade aponta para a ironia e para o paradoxo, para o duplo sentido, para o elemento silencioso e verminoso da poética machadiana. A ambigüidade da enunciação é a problematização do enunciado. É através dela que percebemos a desautomatização das formas aceitas de narrar e a desconstrução da ideologia que subjaz ao real dado como enunciado. O texto vira pré-texto de uma brincadeira a sério, a ironia corrosiva que abre a perspectiva reflexiva da leitura.
O jogo de ambigüidades também se encontra no título do livro. Iaiá Garcia não se refere apenas ao nome da filha de Luís Garcia, mas é a cifra de um mundo regido pela frivolidade, pela brincadeira como jogo de interesses. A chegada da menina à modorrenta casa do pai aos domingos, colocava-o, juntamente com Raimundo, num mundo de brincadeiras e recreio. As brincadeiras tinham o efeito de iludir e ludibriar o pai e o escravo, pois sempre as vontades de Iaiá é que prevaleciam: “Era domingo para todos três, e tanto o senhor como o antigo escravo não ficavam menos colegiais que a menina. “ [...] “E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, até que Iaiá, aborrecida, passava a outra coisa.” 237
O jogo ea brincadeira são metáforas das relações humanas em Iaiá Garcia. Tudo é jogo e todos jogam. No ludismo da ilusão e da desilusão, todos são corroídos pela ironia do mundo. O que se percebe é que todos giram em torno do jogo de máscaras da sociedade. Es liegen einige gute Ideen in diese Rocke 238 . O baile de casacas é a metáfora do jogo das conveniências. Quem se dá melhor na vida é quem encontra a casaca ajustada ao seu interesse. Percebendo bem essa lei, Estela, mesmo amando Jorge, prefere fazer o jogo de Valéria, casando-se com Luís Garcia. Não deixa, inclusive, que Jorge venha jamais saber de seus sentimentos. No nível da enunciação, o narrador está se referindo o tempo todo a essa vitória da lei social sobre a natural, como, por exemplo, quando fala da ilusão de Jorge por amar Estela e
237 Idem, p. 15. 238 ASSIS, Machado de. Crônica de 11 de Junho de 1893. In: _. A Semana (1892-1893). Introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 252. A frase de Heinrich Heine significa “Há algumas boas idéias nesta casaca”.
sua posterior desilusão ao saber, no Paraguai, que ela se casara com Luís Garcia e que sua própria mãe fora a alcoviteira do casamento: “A desilusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encaramos com rosto aflito.” 239 O adendo do narrador é que é cruel. Porém, a enunciação dessa percepção do narrador é o fundo falso da ironia. O narrador, subliminarmente, nos deixa entrever que, no jogo social, não há vencedores e perdedores, desconstruindo a lei de Humanitas que, mais tarde, em outros romances, irá enunciar “Ao vencedor, as batatas”. Tudo é, na verdade, corroído pelo abismo da falta de sentido de vidas superficiais, onde o que é silenciado para se “vencer” insiste e persiste como o horizonte trágico que desmontará a escolha de cada um.
Percebemos, portanto, que simplesmente ler o que o narrador fala não nos dá a dimensão do que ele silencia. Mesmo que, parabaticamente, tenhamos acesso à sua reflexão sobre o universo narrado (metaficção), ainda assim não estamos livres do verme que corrói o texto e a realidade. A consciência da nossa ilusão, apresentada pelo narrador, não nos livra da ilusão da consciência.
De qualquer forma, a ponta do novelo nos é dada. Cumprindo a teoria schlegelliana da ironia, o narrador de Iaiá Garcia apresenta, tanto no nível da enunciação como do enunciado, o paradoxo e a ambigüidade como leis narrativas. A autoconsciência paródica e metaficcional da linguagem irônica prenuncia, portanto, em Iaiá Garcia, várias teorias e teoremas que habitam as obras posteriores de Machado de Assis. Sempre apresentados através da reversibilidade entre verdade e mentira, ficção e realidade, consciência e inconsciência, os filosofemas e ideologemas críticos de seus romances já estão todos implícitos neste que é suposta e erroneamente considerado de uma primeira fase romântica. Tais teoremas são a prova de que narrar e refletir são um e o mesmo ato em Machado de Assis. Refluxo da consciência ficcional sobre si mesma, dobra do olhar que se vê ao ver (ironia).
Podemos, em tal contexto, enumerar uma cena central no capítulo IV em que há a dramatização de duas vozes contrapolares na
239 ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia, p. 84.
consciência de Jorge. Trata-se da cena em que ele, após visitar a casa do Sr.
Antunes e ter anunciado sua resolução de ir para a Guerra do Paraguai, é
friamente recepcionado por Estela que não demonstra nenhuma consternação
pela notícia. Jorge se retira abalado e, em sua cabeça, duas vozes se
embatem polemicamente:
-Tua mãe é quem tem razão, bradava uma voz interior; ias descer a uma aliança indigna de ti; e se não soubeste respeitar nem a tua pessoa nem o nome de teus pais, justo é que pagues
o erro indo correr a sorte da guerra. A vida não é uma égloga virgiliana, é uma convenção natural, que se não aceita como restrições, nem se infringe sem personalidade. Há duas naturezas, e a natureza social é tão legítima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam, complementam-se; são as duas metades do homem, e tu ias ceder à primeira, desrespeitando as leis necessárias da segunda. -Quem tem razão és tu, dizia-lhe outra voz contrária, porque essa mulher vale mais que seu destino, e a lei do coração é anterior e superior às outras leis. Não ias descer; ias fazê-la subir; ias emendar o equívoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o que vem dos homens.
Jorge caminhava assim, levado de sensações contrárias, até que ouviu bater meia-noite e caminhou para casa cansado e opresso. Valéria esperava-o sem haver dormido. Essa dedicação silenciosa, oculta, vulgar nas mães, natural naquela véspera de uma separação acerba e longa, foi como um bálsamo ao coração dolorido do rapaz. Foi também um remorso. Pungiu-lhe a consciência ao ver que esperdiçara algumas horas longe da criatura, a quem verdadeiramente ia deixar saudades, única pessoa que pediria a Deus por ele. Valéria adivinhara onde estaria o filho, e tremia de medo à proporção que as horas passavam, receosa de que, amando-o Estela, um e outro houvessem subtraído a sua ventura ao jugo das leis sociais, indo refugiar-se em algum ignorado recanto. Pensou isso, e fraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da retidão de seus atos. Não duvidava da natureza do mal; mas não excedia a ele o remédio escolhido? Supondo que esse pensamento era a sua primeira punição, reagiu fortemente, coligindo as energias abatidas e dispersas, e voltou a ser a mulher que era, com todas as suas fortes qualidades naturais ou contraídas. Demais, a que viria o arrependimento, se era tarde? 240
240 Idem, pp. 67-69.
Duas vozes estão em conflito em sua consciência: uma que dá razão à sua mãe – representando a lei social, do interesse, do que lhe é mais vantajoso -, outra que dá razão ao amor – representando a lei natural. O casamento é, para o universo machadiano, a complicação do natural com o social. São duas posições contrárias e opostas, como nos apresenta o próprio texto. Jorge obedece, mesmo que a contragosto, a de sua mãe, mas engana-se quem acha que , então, o antídoto contra o sofrimento é entregar-se ao amor, à lei natural, negando a lei social. Para inviabilizar tal possibilidade, Machado constrói a personagem Estela com um orgulho à altura de sua esperteza. A saída romântica é impossível, Estela não quer Jorge. Se assim o não fosse, voltaríamos para o idealismo romântico e cairíamos na velha estória do amor interditado pelas leis sociais. Mas tanto quanto não é viável a saída romântica, também o não é a saída encontrada por Estela. Se uma revela a inconsistência da mentalidade romântica, outra desvela o cinismo das relações por interesse. Aqui está todo o poder do paradoxo irônico: nenhuma saída é solução. Ambas são ridicularizadas e ironizadas pelo narrador. Não há síntese dialética na ironia; ela é paradoxal.
Se Jorge vai para a guerra – vitória da lei social – encena-se um mundo regido pelo interesse em que Valéria e Iaiá Garcia são os dois signos centrais. Se Jorge e Estela obedecem ao amor – vitória do idealismo romântico, da lei natural. Aparentemente vence a primeira opção, mais afeita a uma posição madura e realista. Mas se analisarmos que, para pôr tal solução em ação, sua mãe nunca mais o irá ver (pois morre antes de sua volta), notamos que a ironia corrói os dois lados da moeda. Isto quer dizer que há uma contradição implícita em cada solução que se perfaz na voz do narrador. É a ambigüidade da enunciação. O texto, portanto, não apresenta um horizonte sintético para o drama dos personagens. Jorge viaja romanescamente em nome de um amor ideal, quase místico (a narrativa toca o tom idealizante de um Eurico, o presbítero 241 ), em busca de morrer por não ter sido correspondido.
241 Na obra maior de Alexandre Herculano no Romantismo Português, o herói, Eurico, se torna presbítero e poeta, além de se lançar às batalhas em que procura a morte contra os árabes porse ver preterido no amor por Hermengarda. É o típico horizonte idealizante do Romantismo.
Realiza, outrossim, o desejo de sua mãe, que aproveita sua ausência para casar Estela. Por isso o narrador escarnece do romantismo de Jorge. Mas, nem por isso está defendendo o amor por interesse, pois a faceta realista é também desmontada ao se deixar entrever o abismo do jogo social, totalmente regido pela hipocrisia. A hipocrisia é a máscara que vestem os personagens e que o narrador irá sintetizar na descrição da tristeza do Sr. Antunes:
Algumas pessoas foram despedir-se dele [Jorge] e acompanhar a mãe no solene momento da despedida. Entre essas figuras, o pai de Estela, cuja tristeza, que era sincera, trazia uma máscara ainda mais triste. 242
Até a dor que deveras sente é fingida; é máscara. Não há fundo na hipocrisia. E o melhor é que a ironia não a quer solucionar. Revela que nesse mundo não há postura correta. No mundo da impostura, tudo é nada, não há sentido, ou melhor, o sentido está na corrosão das personagens e de seu mundo.
*
Outra cena chave do romance é a dos pombinhos na casa da Tijuca, capítulo III. A cena é construída estrategicamente pela consciência reflexiva da ironia do narrador. A princípio, uma passagem comum no andamento da narrativa, mas, se bem observada, uma porta falsa na fachada do romance. Helmut Hatzfeld, ao se referir, a partir da construção barroca do Dom Quixote, a esse recurso de intercalar um capítulo ou cena que parece não ter nada a ver com a narrativa principal, chama-o de “capítulo fantasma” 243 . Marca barroca, marca moderna que irá repercutir também na estrutura irônica autoconsciente da narrativa machadiana e que está dentro daquele horizonte do grotesco citado por Schlegel ao falar do Quixote, de Jacques, Le Fataliste e
242 ASSIS, Machado de. Op. Cit., p. 79. 243 “A estrutura labiríntica interior do romance tem sua contrapartida na disposição externa dos capítulos que, com razão, foram chamadas por um erudito moderno capítulos ‘fantasmas’, uma vez que seus títulos quase nunca correspondem ao conteúdo e a unidade das diferentes ações ou episódios é cortada caprichosamente no princípio, no meio ou muito perto do fim de um deles, com o objetivo de extraviar o leitor. Isto não impede, no entanto, a existência de um sistemático e refinado agrupamento subjacente de ações e transições”. In: HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. Trad. Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1988, p. 264.
do Tristram Shandy na Conversa sobre Poesia. Tal desdobramento reflexivo exige a participação ativa do leitor na construção do sentido encenado.
No desenrolar da cena, em que Jorge irá apanhar dois pombos que estão em um ninho na varanda da casa desocupada de sua mãe na Tijuca, chamam a atenção alguns elementos: primeiramente, que Valéria, tendo também visto os pombinhos, não lhes dá importância; depois, é notável a pouca atenção dispensada por Estela aos dois pequenos animais; e, por fim, o esforço que Jorge faz para colhê-los a fim de presentear a moça. No entanto, após todo o esforço do rapaz, Estela comenta que Valéria haveria de ralhar. Está, pois, mais preocupada com a mãe do que com o rapaz, com as aparências que a aproximam da mãe do que com a confissão enamorada do filho. É digno de nota que a cena dispõe os elementos da maneira como irão aparecer na narrativa: Jorge se esforça heroicamente por um amor que não encontra ressonância no peito amado, pois este tem preferência pelas aparências, onde poderá ser mais bem sucedido.
De fato, ao se lançar à guerra, Jorge toma a atitude e a saída de um verdadeiro herói romântico que, ao se ver preterido no amor, torna-se gigante na guerra, corroborando a saída compensatória do idealismo. Mas tal saída é desautorizada pelo fato de não alcançar êxito e resultado sobre o coração de Estela. Esta inclusive deixa muito claro que não se casa com Luís Garcia por algum tipo de ilusão. Ao contrário, ambos não tinham ilusões nenhumas. Estela chega a confessar a Iaiá que não se casara com seu pai por amor. Esta última é a mediadora entre os dois, representando os interesses de Valéria. Por isso, recebe, quando da morte da mãe de Jorge, um dote, assim como Estela. É uma forma de pagamento pelo favor feito a Valéria. Como Estela abre mão de sua parte, Iaiá é duplamente recompensada. Por uma, por ter mediado o interesse; por outra, por ter-lhe arrumado um bom partido. Enfim, favor se paga com favor. E, nesse contexto, todo o esforço heróico de Jorge é vão, pois não há lugar para tais atitudes ou paixões no mundo do interesse.
Em outras palavras, toda ação gera uma recompensa, e o narrador se farta ao narrar ambiguamente cada cena. A ambigüidade é justamente a marca do narrar desconstruindo que, por sua vez, retoma o processo que apontamos no começo do nosso capítulo, ao lembrarmos o processo de “conversão literária do dado ideológico”. O entre-texto é a operação de desvelamento, pelo jogo da enunciação, do sentido latente que corrói as aparências do mundo de interesse das relações sociais.
Esse tema, tão caro a Machado de Assis, é correlato ao processo irônico e dissimulado da sua narrativa; em outros termos, implica a construção irônica. É o que se observa se levarmos em consideração o desmascaramento ideológico que se tornará intenso nas obras posteriores, principalmente em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Nessas obras a ambigüidade é aprofundada, como, por exemplo, quando se apresenta a teoria do Humanitismo, que é a paródia do Humanismo, mas que o leitor desavisado pode confundir com uma ideologia da obra machadiana, como se o narrador a estivesse defendendo como sua própria ideologia e que é, na verdade, o contrário. Em outras palavras, o Humanitismo é a desconstrução paródica da visão de mundo do narrador, do personagem e do próprio leitor. Mais uma construção parabática da ironia machadiana. É hora, porém, de irmos à História dos subúrbios.
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo gelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de mim para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!(Álvaro de Campos. “Aniversário”.)
Opus magnus da poética irônica de Machado de Assis, Dom Casmurro (1899) é a síntese dos procedimentos construtivos observados nos romances anteriormente estudados. Mais do que sintetizar os procedimentos anteriores, o romance os realiza de maneira singularíssima, além de tratar do que de mais silencioso e corrosivo possa se tratar na literatura: da memória e, por conseguinte, do tempo. Narrativa em primeira pessoa, as memórias póstumas de Bento Santiago são a consumação da ironia trágica do tempo: a sua finitude radical e a impossibilidade de uma explicação ou compreensão inteiriça do que foi pelo que se é, isto é, a marca da “insuficiência” radical e trágica do ser, o não saber por inteiro o risco do bordado. Traço inconfundível da corrosão, o nada perpassa o tempo, pois ele é inapreensível, uma vez que o simples lembrar ou encadear os fatos já é o reconhecimento presente de que o que se passou está acabado e foi enquanto algo que teve lugar em outro momento e de que, por isso, qualquer apreensão presente reverbera o sentido daquele tempo, mas não recupera o tempo e não esgota o sentido.
Narrar memórias é pôr-se no ritmo subliminar do nada que subjaz e subage à existência. Sob a égide da memória, buscamos, no presente, desencavar a verdade dos fatos de que lembramos, mas que, para tanto, não contam apenas com a memória, uma vez que intervém a própria imaginação. Pois não há o passado como matéria bruta a ser desencaixotada diante de nossos olhos; o passado é o que não está dado, é aquilo que nós damos e, neste sentido, há a intervenção do eu de agora sobre o eu de outrora. Isto é, nós o imaginamos, senão não existiria. Uma vez que o reconstruímos quando o imaginamos, intervém não só a consciência do que fomos, como a do que somos. Existir é imaginar-se; lembrar é desdobrar-se no ritmo de transe do jogo entre o presente e o passado, constituindo-se consciência de si mesmo como consciência do outro. Quer dizer, eu sinto o que imagino sentir do passado, eu sou diverso de mim mesmo no ato da memória, pois imagino o que fui no que sou. A reflexão infinita da memória sobre a finitude do ser retoma o processo irônico de Schlegel. Em outras palavras, “eu” sou “ele”, por isso, na enunciação de Dom Casmurro, cruzam-se a primeira e a terceira pessoas narrativas, em um desdobramento da mesma personalidade, Bentinho, em narrador e personagem do relato de sua memória. Retomamos aqui a tese de Franz Stanzel sobre a situação de narrativa de primeira pessoa apresentada em nosso primeiro capítulo. Para Stanzel, o tempo é cifra da diferença existencial entre o eu de agora eo eu de outrora, sendo os dois a mesma pessoa em momentos existenciais diferentes, o que a faz diferir de si mesma. Quer dizer, na mesma pessoa há uma descontinuidade que a narrativa apresenta ficcionalmente.
Em um interessante estudo comparativo entre Machado de Assis e Marcel Proust, Paulo Venâncio Filho afirma que “os personagens de Proust e Machado são aqueles que, pela primeira vez, se iniciam na perda da aura e da experiência, pioneiros e precursores” 244 , pois “a rememoração é a experiência interna das distâncias” 245 . Porém, como “nunca o passado está plenamente disponível” 246 , “entre o tempo cronológico e tempo da reflexão existe uma defasagem” 247 . A defasagem é o lapso entre o eu de agora e o eu de outrora. Lapso como vazio, silêncio, carência, falta. O que deve ser rememorado, mas que cai no “desnível existencial” entre o tempo e o tempo, entre o agora e o outrora, entre o eu e o mim. Como diz o narrador memorialista de Dom Casmurro:
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor
o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem
244 FILHO, Paulo Venâncio. Primos entre si: Temas em Proust e Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 107. 245 Idem, p. 101. 246 Idem, pp. 101-102. 247 Idem, p. 102.
consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e essa lacuna é tudo. 248
A defasagem existe porque há uma diferença entre a consciência e a memória. A defasagem é existencial, quer dizer, marca uma carência imanente ao ser. Ser é subtração, negatividade, à medida que o que se é não é todo, completo, mas fragmentário. E se o que somos é fragmentário, o que lembramos do que fomos é o fragmento do fragmento, o nada que é. Vivenciamos uma descontinuidade com o que fomos no que somos, portanto a vivência não coincide com a memória. Memória é construção do passado, no duplo sentido de construir o passado e de ser construída por ele. Essa descontinuidade entre viver e lembrar é o tempo. A memória traz esse paradoxo: é memória de uma vivência, mas não é já aquela mesma vivência; é uma construção dela. Aí entra a consciência. Em geral, a consciência é um dado racional que não coincide com a memória ou com aquilo que nos vem inesperadamente suscitado por uma experiência presente, as memórias que escorrem do pescoço, como diz Drummond 249 . A consciência está mais próxima do outro verso deste poema onde o poeta diz que “até que, fatigado, te recuses e não saibas se a vida é ou foi”. Walter Benjamin, em seu estudo sobre Charles Baudelaire, apresenta a diferença entre a memória involuntária e a consciência a partir de Sigmund Freud:
A função de acumular traços permanentes como fundamento da memória em processos estimuladores está reservada a “outros sistemas”, que devem ser entendidos como diversos da
248 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 6. 249 Referimo-nos, aqui, aos “Versos à Boca da Noite” de Carlos Drummond de Andrade em A Rosa do Povo(1945): “Sinto que o tempo sobre mim abate / sua mão pesada. Rugas, dentes, calva... / Uma aceitação maior de tudo, / e o medo de novas descobertas. // Escreverei sonetos de madureza? / Darei aos outros a ilusão de calma? / Serei sempre louco? Sempre mentiroso? / Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo? // Há muito suspeitei o velho em mim. / Ainda criança, já me atormentava. / Hoje estou só. Nenhum menino salta / da minha vida, para restaurá-la. // Mas se eu pudesse recomeçar o dia! / Usar de novo minha adoração, / meu grito, minha fome... Vejo tudo / impossível e nítido, no espaço. // Lá onde não chegou minha ironia, / entre ídolos de rosto carregado, / ficaste, explicação de minha vida, / como os objetos perdidos na rua. // [...] // E as memórias escorrem do pescoço, / do paletó, da guerra, do arco-íris; / enroscam-se no sono e te perseguem, / à busca de pupila que as reflita. // E depois das memórias vem o tempo, / trazer novo sortimento de memórias, / até que, fatigado, te recuses / e não saibas se a vida é ou foi. // [...] In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, pp. 192-4.
consciência. Ainda, segundo Freud, o consciente como tal não registraria nenhum traço mnemônico. Teria, isto sim, outra função importante, a de agir como proteção contra estímulos. 250
Por isso, fatigados, distendidos, recusamos racionalmente a memória: pois silenciamos o que ela traz para que se diga o que queremos que seja dito. Silenciamos, no passado, o que será lembrado e como será lembrado por nossa consciência – o eu de agora – e não pela nossa vivência – o eu de outrora. Este é o papel fundamental da consciência encenado por Dom Casmurro: nos iludir. É justamente no jogo quixotesco da harmonia entre velamento e desvelamento, verdade e mentira, ilusão e desilusão, que devemos compreender o deceptive realism (realismo enganoso, expressão de John Gledson) de Machado de Assis. E retornamos à resposta do poema à memória: “E eu era feliz? Não sei: / Fui-o outrora agora” 251 , na sua lição de “comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes”. 252
O passado da consciência elide o passado da memória em seu poder de desvelamento do que fica interdito. E quando fala a consciência, fala a construção do passado que silenciou o poder de revivescência da experiência, da vida, em nome de um arcabouço antiséptico que, na verdade, é uma ilusão cuja função é garantir uma forma de alienação e esquecimento. Ter consciência não é lembrar: é aprisionar o passado para que ele não venha a falar com todo seu poder de dor e trevas que a luz quer dissipar. A pobre e iludida consciência organiza o caos do jeito que ela acha que deve ser, e não como ele é.
O poder da consciência de organizar o passado e a memória é a marca indelével da violência. Violência histórica, violência metafísica, violência psicológica, violência teológica, violência jurídica. Essa violência começou ainda no mundo antigo, quando da preferência pelos deuses supernos em detrimento dos avernos, quando do esquecimento dos poderes sacrossantos
250 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. (Obras escolhidas, vol. 3). 2 ed. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, pp. 108-109. 251 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.A., 1986, pp. 74-75. 252 PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos – Poesia. Edição Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 363.
da terra e do mistério em nome do lógos. Essa violência marca a civilização ocidental, mesmo que ela até disso se esqueça: khorismós. É a consciência que pratica a violência contra a memória. A consciência com seu andar de mocinha comportada e politicamente correta, que freqüenta os teatros, que não come carne e que se filia a um partido de esquerda por ter compaixão pela desgraça do outro. Essa consciência é muito engraçada; ela é demoníaca, pois finge indiferença à beira do abismo e não entende o sacrifício; prega a paz e ama a humanidade, mas é incapaz de reconhecer uma verdadeira contradição que é o princípio de unidade de um homem, um e não outro. “Consciência e finalidade são, fundamentalmente, a mesma coisa”. 253
É precisamente aqui que entra o papel da ironia schlegeliana e machadiana. A ironia é o paradoxo da consciência. A ironia cinde abruptamente a certeza da consciência e revela a sua mentira; revela que o arcabouço organizadinho que nos protege de nós mesmos não protege nada. O abismo (Ab-grund) é imenso. Dom Casmurro acusando sua mulher de adultério é apenas a cifra de sua insuficiência existencial, que revela, por detrás do discurso jurídico-teológico da lógica metafísica, uma violência persecutória. O ciúme é o tema latente, nada de adultério. O ciúme é a violência do eu contra a memória do outro. Violência tão intensa que chega a deixar o filho e a mulher (Ezequiel e Capitu) morrerem em outro país, bem distante da convivência e da consciência. O que os olhos não vêem, a consciência não sente.
Mas a ironia está “on the one hand deceptively concealing, on the other uncompromisingly revealing, the truth” (por um lado, ocultando ilusoriamente e, por outro, revelando inflexivelmente a verdade), lembrando nosso primeiro capítulo. A ironia calada corrói (verme) a verdade do discurso persecutório do narrador. The plot faces two ways: a trama aponta dois caminhos. Há um esforço da consciência em velar o motivo da acusação que é
o ciúme, mas o texto ironicamente é verminoso e a letra um tecido roto que não sustenta a verdade gramatical do narrador. A memória transborda como a
253 UNAMUÑO, Miguel de. Do Sentimento Trágico da Vida nos Homens e nos Povos. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 13.
contradição da consciência. Retoricamente dizemos que há uma dupla
situação narrativa: uma de primeira pessoa (Dom Casmurro) e uma de terceira
(o autor implícito): “a situação narrativa de romance autoral implícito”:
A situação narrativa dominante é a autoral, porém implícita. O autor implícito não se apresenta como narrador da história, mas como o vigilante irônico de sua harmonia. Movimenta-se dentro da invisibilidade da estrutura do romance, nos bastidores da composição. É justamente sua intervenção irônica que entra em conflito com a visão do narrador casmurro. A interferência do autor implícito é tênue e sintetiza-se na estruturação de obra regida pelo princípio da contradição. Ele não interfere diretamente, mas sim subversivamente. A voz do autor implícito insere-se na composição do texto.
O predomínio da visão autoral implícita nasce de um conflito: o ponto-de-vista do narrador implícito neutraliza o ponto-de-vista do narrador casmurro.
O narrador casmurro auto-consciente sofre o influxo irônico da ironia do autor implícito. O autor implícito ao escolher as justaposições de imagens, a ordenação dos capítulos e a composição anímica do narrador casmurro acabam por ironizá-lo, fazendo com que o mesmo se contradiga.
A mão invisível da construção ri do narrador casmurro. A ambigüidade denuncia a prevalência da situação narrativa autoral implícita sobre a situação narrativa de primeira pessoa. 254
A dupla situação narrativa é a concretização da estrutura da
ambigüidade entre a consciência e a memória. Não queremos, porém,
estabelecer uma relação estruturalista, fechada, que diga que a consciência é
a voz do narrador e, a memória, a do autor implícito, mesmo porque não há
essa correspondência estreita. Mas é fato que entre aquilo de que se lembra o
narrador e o que ele cala persiste um subtom verminoso que trai sua narração.
Tomando-se em consideração que o narrador quer, no processo de narrar suas
lembranças, acusar de adultério sua esposa e seu melhor amigo, podemos
desconfiar do seu relato ou, pelo menos, ter em mente que ele não é
totalmente imparcial. A memória é filtrada pela parcialidade da consciência do
254 SILVA, Marcelo Américo Martins da. Fenomenologia da Ironia em Dom Casmurro. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB. Brasília, 1997. pp. 65-66.
narrador que constrói um verdadeiro processo acusatório contra sua ex-mulher. O texto é, portanto, uma peça de acusação que cala a transparência límpida da memória dos eventos em favor de uma escolha tendenciosa dos elementos que servem -ou de uma forma que eles sirvam -para um fim almejado. Enfim, a narrativa apresenta os traços de um texto persecutório. A consciência elide a imparcialidade da memória, o narrador nos apresenta a estória sob ponto-devista parcial: o ponto-de-vista do ciúme. Sob a ótica deste Othelo é que temos acesso ao texto e ao seu mundo. Capitu é a Capitu dos olhos de Bentinho, dos olhos do Dom Casmurro, o refletor dos eventos passados na consciência presente. Porém, antes de adentrarmos a lógica persecutória do texto casmurro, devemos assinalar que, apesar de todos os recursos utilizados pelo narrador para comprovar sua tese, há no seu texto uma inverossimilhança persistente que desdiz a lógica enunciativa do ciúme e, silenciosamente, desautoriza a pretensão de veracidade do relato. O texto insiste em sua ontologia: o desvelamento da memória é um saber subterrâneo que não se esgota na subjetividade nem do autor, nem do narrador, nem do personagem, nem do leitor. A verdade não é uma instância fixa, mas a mobilidade do sentido que se configura no jogo da verdade do texto. O texto tem uma memória que não se esgota na memória do narrador. O ato de narrar do narrador não consegue capturar a verdade, mas é por ela jogado. A memória do passado é a ilusão que confunde o horizonte da consciência armada do narrador. O jogo entre a memória e a consciência, entre o narrador e as incongruências do texto que apontamos como uma voz subliminar do autor implícito – que é o próprio jogo da verdade do texto – perfaz o paradoxo irônico que é o princípio que silenciosamente se expõe no moto contínuo de velamento e desvelamento da dinâmica da verdade do Dom Casmurro. Em resumo, a ironia é o antídoto contra o ódio do narrador. É a desconstrução da peça acusatória. A ironia de Dom Casmurro é o expôr-se do ser no relato do ente, é a interferência da verdade da memória que trai o narrador na mentira da sua consciência diabólica. Na análise sem síntese da ironia, no Dom Casmurro, temos o duplo movimento da verdade, que é e não é ao mesmo tempo, celebrando a harmonia palindrômica do ser e do não ser. To be and not to be, that’s the
question.
Esse paradoxo – marcado pela luta entre o dito e não-dito, pela
voz do narrador em controvérsia com a do autor-implícito – é o que já
assinalava Helen Caldwell como uma lacuna que o leitor deverá desvelar. Essa
lacuna é, segundo a crítica norte-americana, o “autor anônimo” que aparece no
Panegírico de Santa Mônica:
Mas há um personagem, de alguma proeminência, cujo nome Santiago retém deliberadamente, e faz tanto alvoroço em torno da retenção do nome que nossa atenção é atiçada. Estou-me referindo ao autor anônimo do Panegírico de Santa Mônica. Por que esta lacuna? E por que este homem de nome desconhecido é introduzido no enredo com seu panegírico, no fim das contas? Será esse episódio uma digressão? Por que Machado de Assis, um dos mais parcimoniosos escritores, permitiria tal digressão nesta que é sua obra-prima, e uma obra prima da parcimônia? Porque, ao que parece, ele não permite interferir, devido ao método adotado na construção do romance. 255
E, um pouco à frente, acaba por afirmar: “O autor anônimo, a meu ver, não é ninguém senão o próprio Machado de Assis”. 256
Discordamos da última afirmação, pois seria o mesmo que dizer, depois de todo o jogo irônico de espelhamentos do Dom Quixote que nos faz perguntar se o autor é Cervantes ou Cide Hamete Benengeli, que o autor é Cervantes e pronto. É uma maneira de dizer que o jogo da ilusão tem de estar atado à ilusão do autor real, ou, em última análise, à realidade. Não, o autor do Quixote não é Cervantes, nem tampouco podemos afirmar que é Cide Hamete;
o autor do Quixote é o jogo de ilusão e desilusão entre ficção e realidade que nos leva a confundi-las. O autor implícito ou anônimo do Dom Casmurro é também o livre movimento do jogo irônico do texto.
Nossa discordância se atém, no entanto, à determinação do autor anônimo como o autor real, mas não se contrapõe à descoberta dessa voz que interfere na narrativa. Concordamos com a autora ao apontar esse capítulo
255 CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis, p. 194. 256 Idem, p. 196.
como um dos capítulos nodais para compreender o sentido do romance, mesmo porque sua leitura já é a própria representação do drama do sentido latente no texto aparente. Este é um capítulo que funciona como chave-hermenêutica do texto ou como uma metáfora estrutural do romance.
O capítulo é escrito no estilo parabólico dos chamados capítulos fantasmas. Quer dizer, parece descrever uma trajetória fora da linha geral da narrativa. É, aparentemente, uma lembrança do seminário de Bento Santiago, que ele insiste em não contar por inteiro, mas que o faz lembrar certo companheiro daqueles tempos que escrevia versos à maneira de Junqueira Freire. Os anos se foram, o companheiro também e, quando mais tarde o reencontra e lhe pergunta sobre versos, o antigo poeta lhe diz que os não fizera mais, tinham sido cócegas da mocidade. Em contraponto, lembrava-se de um seminarista que não seguira a carreira. Seu nome o narrador parece não querer dizer, apenas fala: “Chamava-se...” As reticências marcam o silêncio, a lacuna do nome. Ele, por sua vez, “tinha composto um Panegírico de Santa Mônica, elogiado por algumas pessoas e então lido entre os seminaristas”. O narrador volta a frisar que “tudo isso é história velha” (como o diz várias vezes de sua própria estória). Mas descobre que ele “deixara seminário, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegírico de Santa Mônica”. O amigo então pergunta a Bentinho se ele se lembrava do folheto, dá-lhe o último exemplar que guardara e pede-lhe que leia um trecho em voz alta. Diante daquela cena contraditória e insólita em que o tempo do passado se reencontra com o presente (também passado na memória do narrador, isto é, em relação à enunciação), o narrador fecha o capítulo da seguinte maneira:
Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas só me disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de silêncio, recolhendo os olhos e um suspiro!
-Tem agradado muito este meu Panegírico! 257
Agradado a quem? Bentinho mal lembrara do folheto. O companheiro ou era louco ou vivia no passado para afirmar aquilo. E essa
257 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, p. 141.
nossa reflexão é fruto da construção ambígua que o narrador dá ao evento, deixando entredito que o passado corroera tudo.
Porém, apesar de o texto silenciar o nome do autor do Panegírico, não concordamos que ele seja o próprio Machado. Acreditamos, sim, que ele metaforize o problema da autoria, uma lacuna que aponta para o paradoxo do próprio Dom Casmurro.
*
Por tratar de ação persecutória, poderíamos lembrar da teoria antropológica de René Girard, a teoria do mimetismo antagônico. Essa teoria irá elucidar o mecanismo de destruição e perseguição implícito à estrutura psíquica e cultural, o qual se objetiva nas práticas de violência e de extermínio e na perseguição de bodes expiatórios. Girard desenvolve sua tese na obra A Violência e o Sagrado e a completa em O Bode Expiatório. 258
Em A violência e o sagrado, Girard levanta a interessante hipótese de que a mola deflagradora da violência é o desejo. O desejo mimético é a reciprocidade da ameaça, pois eu desejo o que o outro deseja e vice-versa. Além dos querelantes, o desejo mimético apresenta mais dois elementos: um objeto de desejo e a rivalidade dos desejos. O mimetismo antagônico é a representação de uma estrutura triádica de relação em que um objeto de desejo é colocado como mediador ou mero pretexto para a disputa que encena a rivalidade entre os participantes do triângulo do desejo.
Interessantemente, o desejo é livre para se fixar onde quiser, mas a livre mimesis se lança justamente sobre um objeto concorrente. Daí a importância secundária dos objetos de desejo diante da própria encenação da violência recíproca da qual são mero pretexto. Ao desejar um objeto, o sujeito envia sinais a outro sujeito de que aquele objeto é desejável, e então o ciclo do desejo mimético se constitui, pois o sujeito que recebe o sinal “imite-me no meu desejo” do outro sujeito tende a recebê-lo como um “não me imite”, pois ele é que se acha na primazia de dizer “imite-me”. Estão, portanto, imantados
258 GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990. & GIRARD, René. O Bode Expiatório. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.
pela força do desejo mimético, que se realiza numa teia de sinais contraditórios em que os rivais, querendo afirmar sua autoridade como seres autônomos, só se embaraçam na encenação recíproca de suas inautenticidades existenciais. A autonomia do sujeito é, na verdade, a imitação do desejo do outro e vice-versa.
O desejo mimético anula as diferenças e afirma o desejo de igualdade entre os querelantes. Eles lutam pela sua identidade consigo mesmos, mas uma vez que desejam ser imitados, imitam o desejo do outro e acabam anulando a diferença. O desejo mimético é um desejo de identidade absoluta, uma intolerância para com o outro. Por isso, é violento. Nas sociedades primitivas, onde o sacrifício era uma prática, imolavam-se vítimas expiatórias para propiciar o fim da violência que o desejo mimético gera. Havia a consciência de que a menor violência poderia gerar uma escalada cataclísmica e, por isso, substituía-se o objeto de contenda por uma oferta propiciatória. A crise sacrificial exige o sangue que irá substituir o sangue de muitos. O sacrifício ritual é uma forma de controle da violência que habita o seio do sagrado. O sacrifício é realizado apontando e imolando um bode expiatório, ele é o objeto substitutivo, ele é o alimento que sacia a fome imediata de violência.
No primeiro capítulo de sua obra O Bode Expiatório, “Guillaume de Machaut e os judeus”, Girard nos apresenta um texto que afirma uma série de inverossimilhanças que, tomadas como reais, não têm outra função senão justificar o mecanismo persecutório. Eis o trecho de O Julgamento do Rei de Navarra, que trata dos judeus:
Depois disso, veio uma merda falsa, traidora e renegada: foi a Judéia, a odiada, a perversa, a desleal, que odeia e ama todo o mal, que tanto ouro e prata deu e a cristã gente prometeu, que depois, rios e fontes, que eram claros e limpos,
em muitos lugares envenenavam, e muitos suas vidas terminavam; pois aqueles que deles usavam logo repentinamente faleciam. Então, certamente, dez vezes cem mil disso morreram, no campo e na cidade. Antes que fosse percebida essa mortal desventura.
Mas aquele que no alto senta e de longe vê, que tudo governa e tudo provê, essa traição mais celerada não quis, e logo a fez revelar e tão publicamente saber que eles perderam corpo e ter. Pois todos os judeus foram destruídos, uns enforcados, outros queimados, outros afogados, outros decapitados pela cabeça com machado ou espada. E muitos cristãos ao mesmo tempo também morreram vergonhosamente. 259
Alguns acontecimentos relatados no poema são completamente
inverossímeis. Há sinais no céu; há multidões de mortos; há rios envenenados.
A justiça celeste intervém, mas a mortandade continua e se intensifica, até
certo dia de primavera em que Guillaume ouviu música na rua e a poesia
cortês pode ser retomada. Pode-se até confundir seu depoimento no tom de
confusão geral da crítica histórica moderna, mas, se nos determos ao narrado,
verificamos “acontecimentos reais em meio às inverossimilhanças do relato” 260 .
Ponderando, poderíamos observar que deve haver algo de real em seu poema.
Guillaume de Machaut era um homem crédulo, nos diz Girard, e não estaria
inventando coisas, mas pode estar simplesmente assumindo a voz de uma
opinião pública histérica diante da imponderável peste que avassalava a
Europa na Idade Média. E é justamente a certeza da imponderabilidade da
peste que leva a população inteira a se associar voluntariamente a esse tipo de
cegueira, que é acusar os judeus de estarem envenenando a água. A
mortandade dos judeus ou a matança dos mesmos – associada à peste – é,
259 GIRARD, René. O Bode Expiatório, pp. 6-7. 260 Idem, p. 6.
portanto, justificada pela busca de um bode expiatório que irá purgar a ira de Deus diante do apostema. O apóstata gera a palavra que Guillaume irá evitar pronunciar: “peste”. O texto irá evitar pronunciá-la substituindo-a pelo termo grego “epydemia”. Trocar o termo é evitar a presença e sacrificar lingüisticamente a palavra. Quer dizer, seu relato está impregnado de pré-juízos até sobre as palavras, quiçá sobre os judeus. Sua visão é tendenciosa e justifica a violência que se desencadeará. Nosso objetivo é, portanto, observar e constatar dois pontos fundamentais sobre os textos persecutórios:
1. “Em suma, pretendemos extrair o verdadeiro de um texto que se engana grosseiramente sobre pontos essenciais. Se acaso tivermos razões para desconfiar desse texto, deveríamos talvez considerá-lo como inteiramente suspeito e renunciar a fundamentar sobre ele a menor certeza, sem excetuar o fato bruto da perseguição”. 261
2. “O ódio do autor sobre os pretensos culpados é explícito, e isso torna sua tese extremamente suspeita”. 262
Podemos dizer o mesmo do processo narrativo de Dom Casmurro. O ódio do autor provocado pelo ciúme é o moto do seu processo acusatório. Como bem observa Antonio Carlos Secchin, citando a reviravolta que o estudo de Helen Caldwell gerou na crítica da obra, “propugnar a inocência é ingenuamente compactuar com o processo ‘jurídico’ do livro, e não perceber sua armação especificamente literária, onde a dubiedade pousa e prospera” 263 . Isto é, de um lado o narrador acusa, de outro os críticos inocentam, mas o que insiste e persiste é a dúvida inscrita na construção da obra. Não propomos acusar ou escusar Capitu, mas desvendar o enigma – não de Capitu – do próprio texto que é, ele mesmo, a ironia que corrói as duas certezas. O texto possui o verme que corrói a letra e, por isso, é o antídoto contra a violência uma vez que, sendo o tecido que urde a acusação, dando vazão à violência, não atenta para sua própria inverossimilhança, pois falha em
261 Idem, pp. 10-11. 262 Idem, p. 12. 263 SECCHIN, Antônio Carlos. Em torno da traição. In: SECCHIN, Antônio Carlos; ALMEIDA, José Maurício Gomes de; SOUZA, Ronaldes de Melo e. (Org.) . Machado de Assis – uma Revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio, 1998, p. 128.
vários momentos. A causa disso é que seu narrador conta-nos a partir da visão tendenciosa de seu ciúme. Se o leitor se ativer ao dito, cai no feitiço do texto. Mas há uma série de inverossimilhanças que colocam em xeque a tese do narrador. A consciência do narrador é traída pela memória, o texto aparente é infirmado pela leitura latente. A ironia estrutural e ontológica do texto é o verme que corrói a letra e é o antídoto contra a violência do narrador. A totalidade do texto – o escrito (dito) e o inscrito (não-dito) – é irônica. A vítima passa ao segundo plano e o texto sacrifica o juiz, colocando em dúvida o seu julgamento e o do leitor que se deixa levar pelas aparências... Reversibilidade, ironia ...
*
Para realizar tal construção, o autor implícito se vale de uma série de capítulos cuja função metaficcional está inscrita e silenciosamente urdida na narrativa. Voltamos, portanto, ao problema da parábase. Poderíamos começar pelo capítulo IX, “A Ópera”, e o seu complementar capítulo X, “Aceito a teoria”. Já no intróito do capítulo X, depois de nos apresentar no capítulo IX a estória de um velho tenor italiano, Marcolini, -que não tendo mais voz, insistia em apresentar sua teoria sobre a ópera: “A vida é uma ópera e uma grande ópera” 264 -, o narrador aceita a verossimilhança da teoria da ópera com sua vida: “Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...” 265 .
A teoria da ópera é, como podemos verificar no capítulo IX, a seguinte: Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus
264 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, p. 21. 265 Idem, p. 26.
não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio de sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, -e acaso para reconciliar-se com o céu – compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno 266 .
E continua sua teoria dizendo que Satanás, ao voltar ao céu, quis mostrar sua execução da peça divina para, provando seu valor, ser perdoado por Deus. Mas Este não o quis ouvir e, depois das súplicas de misericórdia do anjo decaído, assentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu: “Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos” 267 . Deus não quis nem saber do ensaio e, segundo o autor-implícito, este foi um mal, pois, por esse motivo, resultaram alguns desconcertos na execução: “Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda.[...] Não é rara que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso...” 268
Marcolini fala da estrutura operística e o narrador a aceita como teoria de sua vida. Quer dizer, há uma relação entre a estória e a construção da narrativa. Sem dúvida, a teoria da ópera, se bem observada, apresenta a teoria metaficcional da arquitetura do romance. O desconcerto está inscrito na luta e na disputa entre Deus e Satanás: no universo dúplice da construção-execução da ópera do mundo, o mundo da ópera é correlativamente marcado pela duplicidade e pela ambigüidade. Proliferam, por isso, os comentários discordantes: a opinião dos “imparcais” e dos “amigos do maestro” (amigos do diabo), “um ou outro” que “admite certa rudeza”, “os satanistas”... Quer dizer, a duplicidade de autoria conduz à ambigüidade de interpretação. A desarmonia da obra gera a discordância de opiniões. A desarmonia é apontada pelo comentarista: “Também há obscuridades,...” E tais obscuridades vêm do fato 266 Idem, p. 23. 267 Idem, p. 24. 268 Idem.
de o maestro abusar das massas corais, “encobrindo muita vez o sentido”. Observe-se que não é o maestro que encobre o sentido, mas o abusar das massas corais. A oração subordinada adverbial explicativa reduzida de gerúndio – “encobrindo muita vez o sentido” – é advérbio explicativo do fato de
o maestro abusar das massas corais e aponta, por isso, para um problema construtivo e não apenas para a vontade do maestro. A ironia está na estrutura e não na vontade do narrador. Ultrapassa-o e o trai ao encobrir o sentido. Cabe-nos, como leitores, desvelá-lo: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas”. 269
A contenda entre o autor e o maestro, entre Deus e Satanás, aponta para o paradoxo construtivo da narrativa, a ironia analítica entre dois pontos-de-vista inconciliáveis; como também aponta para a controvérsia entre
o narrador e autor implícito, que é a controvérsia entre a consciência diabólica e a memória corrosiva do texto, ou ainda a representação do drama persecutório desconstruído pela atitude sanitarista da ironia textual que, infirmando o desejo mimético destrutivo do narrador, revela a tragi-comédia absurda de um texto em que o mais trágico é produto de uma consciência napoleonicamente determinada a não questionar sua verdade, mas que é, por isso mesmo, questionada pelo texto que não aceita a sua versão ensimesmada, uma vez que se inscreve não como o que se escreve, mas justamente como um jogo incessante de dito e não-dito que não se esgota numa visão monológica. Esse resutado é, por sua vez, cômico. Fundem-se, então, o trágico e o cômico. A inverossimilhança que perfaz o relato é denunciada e desmontada, em sua violência persecutória, pela estrutura de ambigüidades da ironia.
Outro capítulo metaficcional que remete à problemática da construção e do sentido silencioso é o capítulo XVII, “Os vermes” 270 . É, inclusive, a partir desse capítulo que estruturamos nosso interesse hermenêutico, a partir do princípio de que há algo de verminoso (entenda-se
269 Idem, p. 154. 270 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, p. 45.
“silencioso”) por detrás do texto (palimpsesto) ou nele inscrito, o que se casa como uma luva à teoria de Schlegel, onde o espírito está inscrito na letra ou dela deve ser desentranhado: “Letra é espírito fixado. Ler significa libertar o espírito estabilizado, portanto uma ação mágica”.
Nesse capítulo, o autor implícito comenta metaficcionalmente que, ao buscar o sentido de uma fala de Elifás a Jó, chegou a “pegar em livros antigos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compara-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita”, qual seja, “não desprezes a correção do senhor; ele fere e cura”.
Observe-se quanta coisa fica entredita. Por exemplo, quando diz que quer achar a “origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita”. O “oráculo” se contrapõe a “pensamento”, assim como “pagão” se contrapõe a “israelita”. Traçando um eixo semântico calcado na história e no cânone bíblico, temos mais uma vez uma luta análoga à luta entre Satanás (pagão) e Deus (israelita). Se pensarmos que a mesma palavra “israelita” evoca todo o peso da promessa do Antigo Testamento para o Novo Testamento, a promessa de que
o espírito irá vivificar o que a letra mata, retornamos ao ciclo do dito e do não-dito.
O que isso significa na economia interna do Dom Casmurro? Observe-se que a intenção do narrador ao citar a fala de Elifás está ligada à versão tendenciosa da estória. Sua fala fere e cura. Jogando-se, porém, com o capítulo parabático da ópera, lembramos que o narrador é o maestro satânico que quer nos ludibriar como a voz da verdade do texto. Então, a mesma frase se volta contra suas pretensões demoníacas. A correção do senhor realmente fere e cura, pois não é Dom Casmurro quem corrige o comportamento de Capitu, mas é o texto quem corrige o pensamento ardiloso do narrador.
Para comprovar tal interpretação, basta que retornemos ao capítulo XVII. Note-se que ele começa com apenas um hemistíquio do versículo bíblico: “Ele fere e cura”. Quem fere e cura? O senhor, ou melhor, sua correção. E, no texto, quem é senhor? Basta voltar-se para o fazer do senhor, sua “correção”, e entender que não se trata de uma pessoa, mas de uma atividade. Portanto, quem fere e cura? O narrador ou o próprio processo formativo e irônico do texto? Quem, então, é ferido e curado, Capitu pelo narrador ou Dom Casmurro pelo texto?
Para continuar a responder tal questão, voltemo-nos mais uma vez para o texto. O mesmo capítulo XVII também diz que “catando o texto e o sentido” [...] “catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles”. Conclusão inconcludente:
-Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído. 271
Em outros termos, apesar de o narrador catar o texto e o sentido, os vermes insistem no seu trabalho de roer, “impessoalmente”, pois não sabem
o que roem, não escolhem o que roem, não amam nem detestam o que roem, somente roem. Para além ou aquém da vontade do narrador, eles roem, no “discreto silêncio”, até o roído. Enfim, o texto parece trair o narrador (“não lhe arranquei mais nada”) e silenciar o sentido onde ele, narrador, busca a plenitude da sua visão, e onde, porém, os vermes insistem em roer.
Tal dissonância prolifera como ambigüidade irônica por toda a obra. As incongruências insistem e persistem, revelando a luta do narrador contra o silêncio verminoso da ironia textual. No capítulo CIII, “A felicidade tem boa memória”, por exemplo, o narrador se engana com relação ao ano daquela tarde de novembro, evento detonador do drama de Bentinho, compendiado no capítulo III, “A denúncia”. Como evento fulcral de sua vida, o narrador, ao trocar as datas, joga o jogo da ironia paradoxal do texto: sua memória não está à altura de sua denúncia e sua falha denuncia a inconsistência do seu relato:
271 Idem.
A casa era a da rua de Matacavalos, o mês de novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar as pessoas que não amam histórias velhas; o ano era o de 1857. 272
Nenhum de nós riu; ambos escutávamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... 273
A troca das datas denuncia a insuficiência e a inconsistência dos
meios da denúncia, não a de José Dias, mas a do narrador, pois uma vez que
denuncia o adultério a partir de provas que são evocadas pela memória...Tal
insuficiência, no entanto, já havia sido anotada no capítulo LIX, “Convivas de
boa memória”:
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com as de que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão. 274
O leitor atento, o leitor ruminante, como chama Schlegel, é quem lê o sentido verminoso. Mete-se pelos interstícios do entre-texto. A letra realmente mata, e o espírito vivifica e desenclausura o sentido através da reflexão requerida constantemente no ato da leitura. A letra mata, mas os vermes inseminam o sentido. A letra e os vermes – Aletria e hermenêutica.
*
Essa ambigüidade também está presente na micro-estrutura. Por exemplo, um ponto de fundamental importância na construção do Dom Casmurro é a observação dos tempos verbais. A análise da microestrutura remete à macro. Lembremos do que chamava João Guimarães Rosa de
272 Idem, p. 8. 273 Idem, p. 256. 274 Idem, p. 153.
“metafísica da língua”. Outro autor contemporâneo, Autran Dourado, também desenvolve extensos comentários sobre as formas verbais que trazem uma construção prenhe de sentidos subliminares. Há, nesse sentido, uma verdadeira “metafísica”, como uma significação que está latente, na construção do tempo, na urdidura dos verbos em Dom Casmurro. Macroestruturalmente o problema se desenvolve pelo fato de o narrador estar em um momento posterior aos fatos narrados e, quando os narra, os coloca diante de nossos olhos ou faz comentários sobre eles. Quando perfaz a primeira alternativa, fala no passado com o valor de presente. Quando a segunda, fala no presente distanciando-se do passado. Mas também, muitas vezes, põe-se no passado e reflete, no presente, como se estivesse no passado, dissimulando um passado dentro do passado. E assim nos embrenhamos no jogo da reflexão através dos meandros labirínticos do tempo e da memória. Por exemplo, no capítulo XVIII, após Bentinho afirmar que não queria ir para o Seminário, Capitu fica calada elocubrando um plano. Enquanto Bentinho (personagem – eu de outrora) esbraveja, o narrador-casmurro (Bentinho – eu de agora) parece refletir sobre o silêncio de Capitu. É uma reflexão presente sobre um evento passado:
Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminário. Capitu não parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me ânimo. Essa criatura que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos. 275
A mediação do narrador presentifica o passado. Os verbos de ação estão no pretérito perfeito, mas na mediação parecem presentes. No meio da ação, o narrador se lembra de fatos anteriores àquele momento, expressos, por isso, no pretérito mais-que-perfeito: “brincara”, “pulara”,... O tempo passado é presentificado e o passado desse passado da presentificação da enunciação. Quer dizer, o passado da enunciação (que se faz presente) se cruza com o enunciado tanto no passado quanto em um ponto remoto daquele passado que se perde na memória, fundindo-se num tempo virtual criado pelo
275 Idem, p. 46.
jogo entre a mediação do narrador e a imaginação do leitor. A mudança das formas verbais marcam a mudança do ponto-de-vista da 1ª pessoa: entre o que ela é e o que ela fora. As formas “pretérito perfeito” e “pretérito mais-queperfeito” passam a valer, na mediação da narração, “presente” e “passado” respectivamente. A questão da troca das valências temporais dos verbos aponta para o problema da consciência e do ponto-de-vista narrativo. Cruzam-se vários pontos-de-vista na enunciação, de tal maneira que nós nunca temos apenas a memória, mas também presenciamos o jogo de reflexão entre a memória e a consciência no labirinto que aponta para a questão geratriz do romance: quem está falando? E o que o narrador fala sobre o personagem, é verdadeiro? Ou será que, em meio à enunciação, o que se revela é o silêncio que corrói o sentido?
*
Enfim, o título “A letra e os vermes” procura traduzir a complexidade da arquitetura do Dom Casmurro e das outras obras de Machado de Assis. A obra como ópera encena esse jogo em todos os seus níveis de representação. A estrutura lúdica da ironia é tão radical que trai até mesmo o narrador. Esses elementos confirmam a complexidade que irá desencadear na crítica um coro unânime sobre a singularidade do Dom Casmurro, mesmo que muitas vezes a unanimidade não se entenda sobre o porquê de tal opinião. Partamos agora para a consolidação da ironia machadiana em seu último romance, Memorial de Aires.
“Tornai, vós, trêmulas visões, que outrora Surgiram já à lânguida retina. Tenta reter-vos minha musa agora? Inda minha alma a essa ilusão se inclina? À roda afluis! Reinai, então, nesta hora Em que animais do fumo e da neblina; Torna a fremir meu peito com o bafejo Que vos envolve em mágica o cortejo.
* Trazeis imagens de horas juvenis, Sombras queridas vagam no recinto; Amores, amizades, ressurgis Do olvido como um conto meio extinto; Renasce a dor, que em seus lamentos diz Da vida o estranho, errante labirinto. Evoca os bons que a sorte tem frustrado, E antes de mim, à luz arrebatado.” (Goethe. Fausto.)
“Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso; quer não é o caso
inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa”. (João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas.)
... aver detto qualche cosa com nessuna parola e con ogni frase. O fio condutor da ironia chega ao silêncio mais significativo. De frase para frase, um abismo; nele, o máximo de significação: “...da un lato, ciò che é detto,..., formulato, [...]; dell’altro, ciò che é inesprimibile e rimane oscuro sullo sfondo...” Aludindo obliquamente ao fato de constituir essa linguagem uma rede. Uma rede, um jogo irônico de esconder e deformar, mostrar e mascarar: “rapporti fra dissimulazione e veritá”. Um jogo em que os adversários não se destroem: a reversa harmonia dos contrários. Palíndromos harmoniae: aquele que se deleita com a alternância de luz e sombra. Aut-aut: isto não é um sofisma, mas ironia. Paródia: as máscaras são mais irônicas à medida que se mostram como máscaras. A paródia é a linguagem irônica por excelência. Não só a paródia burlesca, mas aquela que parece ser o estilo mais genuíno. A estrutura do mundo da ironia deve ser singularmente elusiva: ...nessuna parola...ogni frase.A ironia é um estado de ânimo histórico-filológico; a ironia é o realismo transcendental da arte. Nela se manifesta a alternância contínua entre autocriação e autodestruição. A forma é ao mesmo tempo física e espiritual, nela se unificam a matéria e a forma, a forma formante e a forma formada. “A linguagem fala”, melhor tradução – “a fala fala” -, a linguagem constrói o mundo no bailado das palavras. O mundo é e não é na palavra; no mais tenso silêncio, na consonância do quieto, a linguagem fala e revela o mundo: aver detto qualche cosa...
“O canto do cisne” de Machado de Assis, segundo a crítica que, desafeita à linguagem elusiva, procura se ancorar no enredo. Ledo engano. “O livro já não tem mais enredo, é uma pura música interior fluindo velada de sua saudade e de seu espírito e deixando que a bondade e a simpatia humana se desenvolvam francamente” 276 . Lúcia Miguel Pereira afirma que “O Memorial de
276 Apud: GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 215.
Aires tem a monotonia da felicidade e do cotidiano” 277 . Augusto Meyer, um pouco mais veemente: “Livro cinzento, livro morto, livro bocejato e não escrito. Aires? Fidélia? Tristão e o casal Aguiar? Só vejo uma personagem – o tédio” 278 . Tédio ou bondade? La vècchia e dolce ironia....
O próprio Machado de Assis, para apimentar a questão, sugere, em carta a Mário de Alencar, datada de 8 de Fevereiro de 1908, que o modelo de Dª Carmo no Memorial de Aires seria sua Carolina. Mesmo na carta, porém, não cita o seu nome, tão grande era o segredo requerido: “Aproveito a ocasião para lhe recomendar muito que, a respeito do modelo de Carmo, nada confie a ninguém; fica entre nós dois” 279 . A referência à realidade é construída, não é cópia: autocriação e autodestruição, alternância. O modelo é superado no fazer: realismo transcendental : o real é idealmente construído e o ideal é parodicamente desconstruído. “O crítico é um leitor que rumina. Deveria, por isso, ter mais de um estômago”.
A dificuldade de digestão se inscreve na obra e a descreve a crítica: Os acontecimentos do Memorial, no entanto, realmente dão lugar a uma pergunta óbvia que, já vimos, está longe de ter uma resposta fácil: qual era a opinião de Machado sobre a abolição? [...] Para muitos, a questão parece resumir-se nisso: as opiniões de Machado são as de Aires, moderadas e equilibradas, mas,
no fundo, do lado certo. [...] Já sabemos, através dos argumentos apresentados no capítulo
3, que as opiniões de Machado na ocasião eram mais apaixonadas, embora não menos céticas; neste, como nos três outros romances escritos na primeira pessoa, Brás Cubas, Casa Velha e Dom Casmurro, é perigoso acreditar na identidade entre autor e narrador. 280
O pomo da discórdia: a velha primeira pessoa. No Memorial, complicada pelo estilo de diário. O romance é composto como um mosaico de
277 Idem. 278 Ibidem. 279ASSI, Machado de. Epistolário. In:_. Obra Completa. Vol. III. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1992, p. 1086. 280 GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.
218.
anotações e impressões de um velho diplomata aposentado que, à altura dos
seus 62 anos, retorna para o “seu Catete”, após trinta anos de serviços no
exterior. É digno de nota que a ação do romance, compendiada nas anotações
do Memorial, se passa entre 1888 e 1889. Já de per se, uma construção
fragmentária da reflexão do narrador que se desdobra em narrador e
compendiador/comentarista do ato de organizar e narrar suas experiências.
Segundo Juracy Assmann:
A introdução do leitor ao Memorial de Aires ocorre mediante a “advertência”, que ocupa posição intermediária entre o estatuto ontológico do real e o da ficção, pois, ao assiná-la, o autor assume, concomitamente, a função (real) de escritor e a função (ficcional) de editor. Sob o primeiro aspecto, Machado de Assis responde pela autoria da obra, interligando-a à sua produção precedente (“Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio...”) e enfatizando a diferença do aspecto formal (“Não houve pachorra de a redigir à maneira daquela outra...”); sob o segundo aspecto, apresenta-se como o divulgador de um texto cuja autoria atribui ao conselheiro Aires, mas define como tarefa pessoal a eliminação de lembranças que não se subordinem a um objeto comum (“vai como estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto”.). 281
Mais uma vez, portanto, o aparente é perturbado pelo latente. A letra, roída pelos vermes. O circuito entre o dito e o não dito perfaz a relação entre o real e a ficção, entre a ficção e o real. Como no labirinto de Dom Quixote, de repente o personagem se insurge contra a realidade: Quixote se torna o autor de seu romance, contrariado com Cervantes. A ficção se insurge contra a realidade: Augusto Pérez vai ao escritório de Don Miguel de Unamuño. A novela se quer nivola.
É esse “como se” que estabelece nosso princípio hermenêutico. É “como se” Aires, colocado, no prólogo de advertência, no mesmo plano do editor e autor, Machado de Assis, fosse uma pessoa real. Quer dizer, ficção é realidade, logo não há o que se objete à realidade ser apresentada como ficção. A narrativa é um relato sobre coisas, pessoas e fatos reais, não só ficcionais. Claro que esta é a maior das ironias, o simular a realidade da ficção é afirmar
281 ASSMANN, J. Op. Cit., p. 148.
que ficção é realidade, mas desconstruir essa mesma assertiva na tessitura do
texto. Retornamos ao esquema anteriormente citado: a relação ternária entre
real-ficção-imaginário.
Real: 1888 -Abolição do trabalho escravo. 1889 -Proclamação da
República. Imaginário: a viúva Fidélia, Tristão, o casal Aguiar... Ficção: o
arcabouço do diário de um diplomata aposentado, a relação esquemática de
ficção e história apresentada pela construção do diário (primeira pessoa)
composto entre 1888 e 1889: a escolha da data esquematicamente e
ficcionalmente, uma leitura parabólica da história pela ficção.
Voltando a Iser:
O ato de fingir, como a irrealização do real e realização do imaginário cria simultaneamente um pressuposto central para saber-se até que ponto as transgressões de limite que provoca
(1) representam a condição para formulação do mundo formulado, (2) possibilitam a compreensão de um mundo reformulado, (3)...que tal acontecimento seja experimentado. 282
Em Memorial de Aires, reverbera uma situação que já estava em
Esaú e Jacó: a crítica à República. Não se trata de ser fiel ao Império, mas
reconhecer algo ainda mais complexo:
Machado de Assis percebeu claramente a consistência ideológica e a imutabilidade histórica da classe dominante no Brasil numa de suas crônicas na série “Bons Dias”, publicada aos 11 de Maio de 1888, em cuja segunda parte se lê a seguinte frase em alemão: “Es dürfte leicht zu erweisen sein dass Brasilien weniger eine konstitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist”. Em bom Português se diz que seria fácil provar que o Brasil é mais uma oligarquia absoluta do que uma monarquia constitucional. Acrescentando a crítica da República em diversos textos, particularmente no romance Esaú e Jacó, pode se afirmar que, na visão machadiana, o problema fundamental do Brasil não é a monarquia nem a República, mas, sim a oligarquia absoluta. Esse diagnóstico lúcido e atualíssimo é verdadeiramente genial. Monárquico ou republicano, o poder de fato é oligárquico. 283
282 ISER, W. O fictício e o Imaginário (Perspectivas de uma antropologia literária). Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, P. 387.
283
SOUZA, Ronaldes de Melo e. Bibliografia machadiana comentada. In: ALMEIDA, José
Maurício Gomes de; SECCHIN, Antônio Carlos; SOUZA, Ronaldes de Melo e (org.). Machado
de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-fólio, 1998, pp. 238-239.
Em Memorial de Aires, Machado é um pouco mais audaz. Mostra-nos, no sub-texto do romance, que o novo regime republicano foi o resultado do casamento entre a antiga elite agrária, agora modernizada, com a elite europeizada pelos ideais da Revolução Francesa (modernização) e isto ocorre nos salões da burguesia carioca que assistia a tudo embevecida. Todos fazem parte do mesmo jogo. Mas é claro que essa leitura não aparece no texto, é o resultado de nossa atividade reflexiva de leitores.
A estória, neste caso, faz a parábola da história. Na estória, estabelecem-se dois pares: os Aguiares e Fidélia e Tristão. Aires e sua irmã Rita entram um tanto quanto deslocados na representação do jogo narrativo. A princípio, Rita atiça o interesse do irmão pela figura da viúva Noronha. Mas note-se que a descoberta do nome, Fidélia, por Aires, é concomitante a sua desistência da empreitada de conquistá-la. Motivo? Uns versos de Shelley: “I can give not what men call love.” (Eu não posso dar o que os homens chamam de amor). Levando-se em consideração que o desafio de Rita fôra comparado ao prólogo do Fausto, uma espécie de “aposta de Deus e do Diabo” e “da perda infalível que faria dele o astuto”, podemos nos perguntar: o que fica implícito entre o pacto e a confissão de desistência? A revelação de que o estatuto de Aires não é o de mero personagem, mas de um narrador reflexivo que reconhece a distância entre a vivência e a ciência, que, por isso, se nos apresenta como o narrador irônico de suas memórias. Aires como narrador interpõe o silêncio irônico de reflexividade, o distanciamento e, muitas vezes, a metaficção, como no seguinte trecho:
Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma coisa de Shelley e também de Thackeray. Um consolou-me do outro, este desenganou-me daquele; é assim que o engenho completa
o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito. 284
284 ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W. M. Jackson Inc., s.d., p. 21.
A relação entre engenho e engenho, espírito e espírito, revela a reflexividade da autoconsciência do narrador e da fineza do personagem; combate o triunfo da vida deslumbrante com a destreza irônica da consciência da feira das vaidades do jogo social. O homem velho desilude o jovem ministro. Não é à toa a posição de conselheiro, de embaixador. Um homem preparado para embates entre interesses; racionalmente distanciado do universo das paixões.
Podemos observar, ainda, sua isenção, nas cenas iniciais, quando da ida ao cemintério com a sua irmã, quando do encontro com a viúva Noronha. Tanto Rita quanto a viúva, ainda muito apegadas aos maridos mortos. Rita mandando limpar o túmulo, sem deixá-lo sofrer a pátina do tempo, como se a morte do marido fosse sempre de véspera. A viúva Noronha manda inclusive buscar os restos do marido a Lisboa e os traz para o Rio. Diante de tudo isto, Aires contrapõe a atitude de deixar em Viena os restos de sua mulher que Rita insiste em transladar para o Brasil. Aires justifica-se: “... em minha opinião, os mortos ficam bem onde caem;...” Entreouvimos a ética barroca da quarta-feira de cinzas vieiriana: “Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade” 285 . Aires deixa entredita sua condição de distanciamento irônico, de alguém mortificado pela experiência, revelando seu olhar oblíquo que
o leva a não desejar Fidélia: I can give not what men call love.
Diante desses elementos apresentados, percebe-se a ambigüidade de sua voz. O narrar dobrado é a cifra hermenêutica da ironia do Memorial de Aires. Físis filocríptica: desvelos do sem-véu pelo velar-se (Heráclito – Haroldo de Campos). The plot faces two ways... da un latto ciò chi é detto… fase ingênua e fase contrativa... Em dois centros diferentes... Elevação e rebaixamento recíprocos... A ironia é uma parábase permanente... Essa duplicação de nós mesmos.... Na ironia unificam-se a autolimitação e o interesse... princípio da alternância dos contrários... reversibilidade... análise de tese e antítese... To be or not tobe... I can give not/ what/ men call love…tudo rio corrente…
285 VIEIRA, Pe. António. Sermão de Quarta-feira de Cinza. In:_. Sermões. Vol. II, tomo I. Porto: Lello e Irmão, 1959, p. 175.
SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS. A escritura no espelho revela o palimpsesto na policromia da tessitura. Aires é ironicamente narrador refletor e refletor narrador. Sua arte é de guardados. Seu silêncio, eloqüente. O falar dobrado silencia na tessitura o sentido palimpsesto. A estória (re) vela a história. A máquina sobre o arado é a tessitura da manhã: o dia claro, aberto como luz balão, só é possível na e pela tessitura da linguagem. Em Memorial de Aires, o que o narrador deixa entredito é a referência. Seu processo de escritura intertextualiza e inscreve outras tantas referências extra e intra-literárias para construir, ficcionalmente, uma parábola da história. Operativamente a ficção constrói a história, a estória re-vela a história: Wirkungsgeschichte: história operativa.
O falar dobrado mascara na ingenuidade da exposição do mundo dos personagens uma realidade esquemática. Schematisches Gebilde: construção esquemática. Observe-se que há uma referência intra-textual que aponta para o problema da paródia da história na trama da ficção: o fato de o Memorial de Aires já ter sido construído durante a escritura de Esaú e Jacó:
...Aires penetrava bem nos gêmeos. Escrevia-os no “Memorial”, onde se lê que a consulta ao velho Plácido dizia respeito aos dois, e mais a ida à cabloca do castelo e a briga antes de nascer, casos velhos e obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou. 286
Aceitamos a sugestão crítica de Ismael Ângelo Cintra que
demonstra que há, no falar dobrado de Aires, uma situação narrativa que faz a
fusão de duas instâncias narrativas:
Como resultado dessa transfusão ora se lê o livro que faz referências constantes ao Memorial do conselheiro, ora se lê o próprio Memorial sem a intermediação de uma voz, aparentemente impessoal. Opera-se um tal cruzamento dos dois que a passagem de um para o outro se torna imperceptível, o que corrobora a afirmação de Affonso Romano de Sant’anna sobre a dificuldade de separar a enunciação do enunciado, no caso, respectivamente, o texto final do livro e do manuscrito. Estabelece-se, assim, um jogo de enigmas que estimula o leitor à tarefa lúdica do deciframento. Por isso se fala
286 ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In:_. Obra Completa. Vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, pp. 1002-1003.
em “luneta”, em “pontos obscuros”, em “verdade escondida”, em “leitor ruminante” etc. Em síntese, esse diário que está sendo escrito pelo personagem vem a ser o próprio manuscrito que se transformou no romance, aceitando como válida a versão da “Advertência”.
E mostrando finalmente o fio da meada, o leitor descobre, então, que Aires vem a ser o dono da voz que se apresenta como autor-implícito, e que o Memorial fica sendo a fonte da história. 287
Para concluir nossa longa sessão de citações, lembremos Marta
Peixoto em preciso argumento sobre o narrar dobrado de Aires:
The two versions of Aires, as narrator and as character and author of the Memorial, interact in an ironic way. Each of these voices in itself offers a skeptical and witty perspective. In addition, the narrator often comments on Aires in a humorous though sympathetic way, and the humour is intensified by the reader’s awareness that any description of Aires is in some way a self-description. [ As duas versões de Aires, como narrador e como personagem e autor do Memorial, interagem de uma forma irônica. Cada uma dessas vozes em si mesma oferece uma perspectiva cética e chistosa. Some-se a isso que o narrador sempre comenta sobre Aires de uma forma humorística porém simpática, e o humor é intensificado pela consciência do leitor de que qualquer descrição de Aires é, de certa forma, uma auto descrição.] 288
Na inscrição de suas impressões no seu diário ou memorial, o
narrador fala com uma voz dual: uma que escreve suas impressões sobre a
experiência e outra que reflete sobre sua matéria e sobre o próprio ato de
escrever. Coexistem, em sua escritura, a escritura e a intenção da escritura, a
história e a estória, a ficção e a realidade. Ao contrário do narrador casmurro,
que delineia a insuficiência de seu ser diante da experiência, a debilidade da
velhice de Aires é a robustez e o vigor que instauram o intenso diálogo entre a
imaginação e a razão, entre a ficção e a realidade, bem no meio da narrativa. La
vècchia e dolce ironia é robusta e violenta em sua fragilidade. Será que há, como
querem os críticos, uma reconciliação de Machado com um tom ameno?
287 CINTRA, Ismael Ângelo. Retórica da Narrativa em Machado de Assis (Esaú e Jacó). Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 1985, p. 88. 288 Apud: CINTRA, I. A. Op. Cit., p. 91.
*
Paródia de outros textos, paródia da realidade. A intencionalidade
da construção deve ser elucidada a partir de uma intrincada rede de referências
cujo fio de costura é a enunciação da voz ambígua do narrador/personagem.
Deve-se, para decifrar o labirinto, fazer o levantamento das referências
insistentes, outras patentes. É o caso da citação da tragédia Romeu e Julieta, na
anotação do dia 14 de Janeiro de 1888:
A única particularidade da biografia de Fidélia é que o pai e o sogro eram inimigos políticos, chefes de partido na Paraíba do Sul. Inimizade de família não tem impedido que moços se amem, mas é preciso ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona dizem comentadores que as famílias de Romeu e Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; também dizem que nunca existiram, salvo na tradição ou somente na cabeça de Shakespeare. Nos nossos municípios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não há caso algum. Aqui a posição a oposição dos rebentos continua a das raízes, e cada árvore brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e esterelizando-lhe o terreno se pode. Eu, se fosse capaz de ódio, era assim que o odiava, mas eu não odeio nada nem ninguém, - pedono a tutti, como na ópera. Agora, como foi que eles se amaram, -os namorados da Paraíba do Sul, -é o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeu e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia, -porque o pai do nosso Romeu era advogado na cidade da Paraíba, -é um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, hei de pedrir-lhes. Talvez ela os recuse imaginando que começo deveras a morrer de amores pela dama. 289
O jogo do texto machadiano é maduro e perspicaz: leva-nos a
pensar na intertextualidade com Romeu e Julieta, mas note-se que aquele que
deveria ser o Romeu, o marido de Fidélia, já morreu. O narrador dá ênfase,
então, às relações entre as famílias. E, mais especificamente, às relações de
partido. Quer dizer, o texto shakespeareano é tomado como pretexto para serem
propostas outras relações possíveis a partir dele. A cena parte, pretensamente,
de um pequeno comentário de Aires sobre o casamento de Fidélia: casou-se,
289 ASSIS, Machado de. Memorial de Aires, pp. 19-20.
por amor, ainda muito nova, com o filho de um inimigo político de seu pai. Por
isso, foi por este deserdada da amizade e do convívio, pois que nunca a
perdoou. Mas o marido, jovem médico, morreu inesperadamente numa viagem a
Lisboa. A moça, a partir de então, se manteve fiel à memória do defunto e nunca
mais se casou, indo, inclusive, periodicamente ao cemitério para visitar seu
túmulo. O nome Fidélia evoca, mesmo que ironicamente, esse fato.
Aparentemente o texto é simples. Mas note-se, além da referência
a Romeu e Julieta, a referência truncada a uma outra ópera: Ernani de Giuseppe
Verdi. Podemos afirmar isso a partir da citação de um de seus versos: “perdono
a tutti”. É significativa a construção enviesada da “fidelidade” shakespeareana a
uma pessoa que já morreu. Desloca-se, na verdade, o tema do amor, pois ao
subverter a citação de Shakespeare através de Verdi, o narrador também está
deslendo Romeu e Julieta, o que o permite não matar Fidélia de amor, gerando
uma referência ambígua com seu nome. Por outro lado, ao citar Verdi, o tema do
amor é deslocado para o tema político. E Machado o faz com sutileza, uma vez
que tanto em Ernani quanto em Romeu e Julieta, há esse elemento, que também
irá aparecer em outra citação do Memorial, a ópera Tristão e Isolda, que o nome
do personagem não nos deixa esquecer. 290
290 Na ópera de Verdi, há, além do tema do amor, uma trama política contra o rei D. Carlo. Ernani o quer destituir, assim como deseja Elvira, bela jovem que está, por sua vez, prometida ao Conde Ruy. Mas Elvira também é amada pelo rei D. Carlo. Todos a querem, enfim. Após encontros e desencontros, o rei é brando com os rebeldes, dando-lhes perdão – perdono a tutti
– vinda daí a frase citada por Machado. E é ainda mais generoso com Ernani, dando-lhe Elvira em casamento. Havia, no entanto, por detrás da generosidade, uma trama nefanda que leva Ernani ao suicídio: a alegria vira malogro. Elvira, ao ver seu amado morto, morre ao seu lado.
Assim também irão morrer Tristão e Isolda na ópera de Wagner. Na obra desse gênio romântico, os dois amantes também se vêem separados após enfrentarem a ira e a perseguição do rei Marcos, que fora por eles traído. O rei se casa com Isolda, mas esta já havia se entregado a Tristão e, então, os dois amantes passam a se encontrar às escondidas até serem descobertos. São, por isso, condenados à morte, mas conseguem fugir, indo parar numa floresta, onde vivem por cerca de três anos, até serem novamente capturados. O rei, piedoso, recupera Isolda e bane Tristão. Este se casa, em seu exílio, com outra Isolda (Isolda das Mãos Brancas, filha do rei da Bretanha), mas, ferido mortalmente pelo anão Baladis, espera ser curado por sua amada, a inesquecível Isolda, que seu cunhado Kahardin traria em seu navio, já que ele, Kahardin, fora o culpado do ferimento de Tristão, que o defendera contra Baladis. Tristão, porém, é enganado por sua esposa, Isolda das Mãos Brancas. Sabendo esta da combinação de seu marido com seu irmão – se Isolda estivesse no navio, Kahardin, no regresso, iria içar velas brancas; se não, velas negras – aproveita-se da pouca visão de Tristão para, na praia, ao avistar o navio, dizer-lhe que as velas brancas eram negras. Tristão perde as esperanças de rever sua amada e literalmente morre na praia. Isolda, ao desembarcar, encontrando seu Tristão morto, também morre ao seu lado.
Enfim, tanto numa quanto noutra peça, a trama é de enganos e desenganos amorosos, mas também políticos. E esse é um horizonte que devemos deduzir do deslocamento feito ao se citar Romeu e Julieta, mas com o diferencial de não matar Fidélia por amor ao seu amado, inserindo-se logo depois a citação de Ernani e de Tristão e Isolda. Em ambas, a personagem feminina (Elvira/ Isolda) está ligada (prometida/ casada) à nobreza (conde/rei), mas ama o plebeu (o jovem revolucionário/o guerreiro). Tais citações truncadas não são inocentes. Só são possíveis porque o próprio texto machadiano se movimenta no diálogo com elas, seja ele corroborando ou frustrando o que a expectativa de seus horizontes delineiam. Não nos cabe, portanto, simplesmente detectá-las, mas lermos a maneira como o narrador as trabalha nesse novo texto.
A urdidura intertextual compõe o jogo irônico-paródico entre ficção e realidade. Em Machado, Verdi corrige Shakespeare e dialoga com Wagner. Em ambas as peças, o verdadeiro amor é interditado e morre, por uma trama político-amorosa (Ernani morre/Tristão morre). Em ambas as peças, o amor à nobreza, por sua vez, é negado pela mulher. Tanto o amor verdadeiro quanto o amor por conveniência não são afirmados ou confirmados no horizonte dos textos citados. Como esse tema, levantado pelas citações, será trabalhado no Memorial?
Em Machado de Assis, ao narrar, ao inocentemente anotar suas memórias, o narrador silencia a presença irônica e paródica da consciência formativa do autor implícito. Há uma trama operesca, há uma trama subliminar de citações que se aproximam e se distanciam sutilmente da estória de Fidélia e Tristão. Mas, ainda mais sutilmente, há uma referência truncada à realidade, que somente o esforço crítico pode desvelar. O tom silencioso da ópera casmurra é intensificado em Memorial de Aires; os velhos falam: “velhice esfalfa”.
Tomemos a tríplice relação real – ficção -imaginário e procuremos comprovar as conexões subliminares entre elas. Note-se, por exemplo, a construção da personagem Fidélia: viúva de um jovem médico filho da aristocracia rural paraibana. Jovem viúva que, na aposta de Rita, permaneceria fiel (Fidélia) ao seu marido, mesmo depois de morto. Conhecendo Dª Carmo e o Sr. Aguiar, passa a freqüentá-los e é por eles tomada como filha. Tinham também os Aguiares um filho postiço, Tristão, que partira para Portugal e que, depois de anos de ingrato silêncio, retornou. A fidelidade de Fidélia é vencida por Tristão. A referência à ópera de Wagner é clara e aberta. O texto de Machado relê a ópera. O antigo amor é traído pelo novo amor. Não é em vão que o casal toca e lê Wagner:
Nem Wagner, nem outro. Tristão estava lá e deu-nos um trecho de Tannhäuser, mas a viúva Noronha recusou o pedido. [...] Os dois conversaram de Wagner e de outros autores, com interesse, e provavelmente com acerto. 291
Tais trechos confirmam e demonstram a citação da ópera wagneriana. Porém há um outro tom, metaficcional e também meta-histórico, que deve ser observado. É um tom que se manifesta em fragmentos da enunciação de uma voz baixo-barítono e intrusa, operesca, como, por exemplo, na anotação do dia 2 de Setembro de 1888:
Aniversário da batalha de Sedan. Talvez vá à casa do desembargador pedir a Fidélia que, em comemoração da vitória prussiana, nos dê um pedaço de Wagner. 292
A referência ao fato histórico bem no meio da ficção se dá através do motivo da ópera de Wagner. Quer dizer, além da citação truncada da ópera na construção da trama das ações dos personagens, a referência explícita correlacionando a ópera à história solidariza o ato de narrar com a reflexão não só sobre a narrativa, mas também sobre a realidade. As referências truncadas pré-doam um horizonte ao universo ficcional e são reelaboradas na trama das ações das personagens, mas também re-iluminam eventos históricos através da estrutura ficcional que organiza as referências, tanto literárias como reais, num determinado sentido.
291 ASSIS, M. Memorial de Aires, p. 132. 292 Idem, pp. 131-2.
Por exemplo, Fidélia foi fiel ao seu marido mesmo depois de morto. Porém, um fato inusitado, a aparição (retorno) de Tristão, muda sua fidelidade. O amor de Fidélia por seu marido é comparado ao de Romeu e Julieta, mas note-se que, ao morrer Eduardo (seu Romeu), ao contrário da peça de Shakespeare, Fidélia não morre. Em Tristão e Isolda, por sua vez, o tema da fidelidade e da resistência a toda adversidade também é recolocado. Machado o parodia ao dar a Fidélia a condição de uma personagem que, sendo casada com um aristocrata, o nega para casar-se com um homem que representa outra estirpe social. O mesmo amor legítimo de Julieta é o amor espúrio de Isolda.
Parece que o percurso da fidelidade ao primeiro amor até a entrega ao novo amor está claro. Mas como dissemos, o amor que é legítimo em um caso, é espúrio e condenado noutro. Há um paradoxo construído sobre o tema do amor na urdidura operesca das citações. Fidélia é fiel ao antigo amor, mas, uma vez morto, está livre para amar de novo. Sua liberdade é sua traição.
Note-se, porém, que, ao mesmo tempo, a condição de Fidélia, o espaço temporal, o espaço físico do romance, tudo aponta para um momento histórico específico: a Abolição de Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). Não é, por isso, forçar a interpretação afirmar que, por detrás dessa intrincada construção da estória, há uma leitura silenciosa da história. Tal interpretação encontra sustentação nas várias passagens em que ou os fatos históricos são esquemática e sintomaticamente citados no texto ou são colocados numa situação intra-diegética. Nesse último caso, sua leitura traz a ironia embutida. Damos exemplos:
10 de Março de 1888 Afinal houve sempre mudança de gabinete. O conselheiro João Alfredo organizou hoje outro. Daqui a três ou quatro dias irei apresentar as minhas felicitações ao novo ministro dos negócios estrangeiros. 293
20 de Março de 1888 Ao desembargador Campos parece que alguma coisa se fará no sentido de emancipação dos escravos, -um passo adiante,
293 Idem, pp. 53-54.
ao menos. Aguiar, que estava presente, disse que nada corre na praça ou chegou ao Banco do Sul. 294
7 de Maio de 1888 O ministério apresentou hoje à câmara o projeto de abolição. É a abolição pura e simples. Dizem que em poucos dias será lei. 295
Ou com a ironia das frases que ficam para uma antologia, repletas
de ambigüidade:
19 de Abril de 1888 Espero que hoje nos louvem [os norte-americanos]. Ainda que tardiamente, é a liberdade, como queriam a sua os conjurados de Tiradentes. 296
23 de Julho de 1888 Costumes e instituições, tudo perece. 297
Só comparável ao moto irônico musical do livro: “Vai vassouras! Vai espanadores!” Ouvido na hora do desembarque no Brasil, é o tom do clima que aqui se espraiava: a oferta de uma nova ideologia política que prometia limpar e revisar o passado com a modernidade: a República – o novo – revisa o Império – o velho. Tristão conquista a fidelidade de Fidélia. O novo vence o velho. Mas note-se que se o velho não condiz mais com a realidade de Fidélia, o que a conquista é o velho Tristão renovado pelos ares da Europa, é o brasileiro nascido no subúrbio que foi para a Europa e voltou modernizado. O novo é o velho com nova roupagem, arejado pelos passeios nos boulevards, pelas idéias d’além mar, e pela formação liberal da Europa. Mas o novo é velho e o que traz de novo é importado, não é nosso: “é português naturalizado”. E somente um velho que morou também na Europa pode desvendar essa intrincada leitura: “Tudo é assim contraditório e vago também”. 298
Tristão é a novidade importada, é o filho esperado dos Aguiares, da bem estabelecida burguesia carioca que, adula o “filho postiço” e importado e
294 Idem, p. 54. 295 Idem, p. 62. 296 Idem, p. 62. 297 Idem, p. 107. 298 Idem, p. 126.
denga a “filha postiça”, herdeira da velha aristocracia agrária. Atiram para os dois
lados: a bem situada sociedade carioca acena para o novo, sem se desfazer do
velho. Assim eram os velhos Aguiares. Fidélia é a filha, mas é também a
contradição: sendo fiel ao novo foi infiel ao velho (largou o pai pelo marido); mas
sendo fiel agora ao velho (sem esquecer o marido), torna-se fiel ao novo
(Tristão) e, logo, infiel ao velho. Paradoxo: ironia.
Não é desconhecido o fato histórico de ser a República
representada por uma jovem mulher requestada pelos políticos e pela
sociedade. Confirma esse fato o estudo do eminente historiador brasileiro, José
Murilo de Carvalho, que vai buscar tal símbolo no imaginário republicano
francês, que teria sido por nós importado:
Um dos elementos marcantes do imaginário republicano francês foi o uso da alegoria feminina para representar a República. A Monarquia representava-se naturalmente pela figura do rei, que, eventualmente, simbolizava a própria nação. Derrubada a Monarquia, decapitado o rei, novos símbolos faziam-se necessários para preencher o vazio, para representar as novas idéias e ideais, como a revolução, a liberdade, a república, a própria pátria. Entre os muitos símbolos e alegorias utilizados, em geral inspirados na tradição clássica, salienta-se o da figura feminina. Da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologia cívica francesa, representando seja a liberdade, seja a revolução, seja a república. A figura feminina passou a ser utilizada assim que foi proclamada a República, em 1792. A inspiração veio de Roma, onde a mulher já era símbolo da liberdade. O primeiro selo da República trazia a efígie de uma mulher de pé, vestida à moda romana, segurando na mão direita uma lança, de cuja ponta pendia um barrete frígio. A mão esquerda segurava um feixe de armas. Um leme completava a simbologia. O barrete frígio identificava os libertos na antiga Roma; o feixe de armas indicava a unidade, ou fraternidade; o leme, o governo; a lança, arma popular por excelência, era a presença do povo no regime que se inaugurava. A mulher também apareceu em alegorias vivas, como na Festa do Ser Supremo, em 1794, em que a liberdade foi representada por uma jovem. Na praça da Revolução, uma estátua da liberdade em forma de mulher presidia à execuções na guilhotina. Era uma figura em pé, barrete frígio na cabeça, lança na mão direita. A ela sem dúvida se dirigiu Manon Roland quando, pouco antes de ser executado, exclamou: “Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!” 299
A figura do rei é a da Monarquia. A figura do rei é masculina e é decaptada. Na estória, tanto o marido quanto o pai de Fidélia são vítimas, direta ou indiretamente, de sua infidelidade. Assim como Isolda e Elvira traem o rei na trama das óperas intertextualmente citadas.
A figura feminina é aclamada e cortejada. Fidélia é o alvo de todos os olhares e quereres. Mas se entrega, traindo sua fidelidade, justamente ao janota português, o brasileiro desnaturalizado, o novo velho Tristão, o antigo garoto, novo homem, estudado em Portugal. Enfim, subentende-se que, na urdidura da narrativa, tanto o novo é velho como o velho é novo, e Fidélia, fiel ao velho só pode, mesmo viúva, ser fiel ao novo sendo infiel ao velho que, por sua vez, já foi novo, mas morreu novo. Novo ou velho, tudo perece. Império ou República, tudo é vão no jogo das futilidades da velha nova oligarquia: “Vai vassouras! Vai espanadores!” É nesse horizonte que aparecem as velhas cantigas de amigo que abrem, lusitanamente, o livro. Uma delas fala das “Barcas novas”, ambas apontam para a viagem de além-mar, das saudades e do “preito” ou das promessas de amor entre os enamorados. Ser fiel às promessas de amor é ambíguo, quando o antigo amor e o novo amor, o d’aquém e o d’além mar se confundem por serem o mesmo e o velho amor.
*
A vècchia e dolce ironia insiste e persiste no processo narrativo ambíguo e paradoxal de Memorial de Aires. Dizer é deixar entredito, pois a letra está prenhe de vazios, está verminosamente esburacada pelo silêncio. Em sua construção parabólica e parabática, a ironia de Machado relê a história no diapasão crítico do jogo de ficção e realidade, apontando para a inconsistência não só do Império, como também da República; não do velho, como também do novo. Ambos são, para o narrador irônico, faces opostas da mesma e velha moeda: a oligarquia dominante. Somente o olhar crítico da ironia pode revelar o paradoxo da história. É a construção parabólica da ficção que desvela a
299 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 75-76.
contradição da realidade. A ironia é a análise [contrapondo-se à síntese] de tese e antítese.
Muito já se falou do realismo de Machado de Assis e, também, de sua suposta primeira fase romântica. A controvérsia se instala ao se apresentar um autor que, se comparado aos autores realistas e românticos de sua época, não se resume nem a uma nem à outra estética. Seu estilo não denota a realidade com a objetividade naturalista, nem idealiza com a ilusão romântica. Antes, observa-se o movimento da imaginação crítica, entre o real e o ideal, entre o subjetivo e o objetivo. É um romance em que cada fala soa com a ambigüidade da força formativa da consciência reflexiva. A linguagem paródica, espelhada, paradoxal traduz o real à estrutura ficcional e reverbera o sentido no subtom que o texto engendra por trás do que diz aparentemente.
Tal quadro leva o leitor a constatar que a obra de Machado não se quer determinar pelos estreitos parâmetros de sua época. Machado vai além e aquém, dialogando com o passado criativo que o lança à vanguarda de seu tempo e de épocas vindouras. Seu estilo irônico espelhou-se nos maiores, e entre eles, singularizou-se. A lista de dialogo é grande: Cervantes, Sterne, Fielding, Erasmo, Rabelais, Luciano, Shakespeare, Goethe, Poe, Balzac, Stendal... e projeta-se para o futuro: Thomas Manm, Marcel Proust, Robert Musil,... Como é possível que esse brasileiro pobre e negro, num país escravocrata ainda, tenha alcançado tal estatura? Não o sabemos, nem foi nosso escopo sabê-lo. Mas na quadratura do círculo, o denominador comum entre seu estilo e dos mestres citados é a ironia.
Partimos, portanto, no encalço deste conceito. Mas a tarefa não é fácil. A ironia faz parte de uma tradição filosófica que, por um lado, se instaura no diálogo socrático-platônico, por outro, sofre, como essa mesma tradição, a inflexão metafísica da transformação do diálogo em monólogo. A ironia socrática é dialógica, mas a tradição que a leu é monológica. Sua inserção na gramática latina é conseqüência dessa inflexão e causa da leitura mecanicista de sua fenomenologia nos textos posteriores. Coube, por isso, a um momento sui generis da história da filosofia romper com esse dilema; esse momento foi o Idealismo Alemão. Sua novidade? Unir poesia e filosofia. Seu fruto? O pensamento e a poesia de Novalis, Tieck, Hardenberg e, principalmente, de Friedrich Schlegel, o fundador de um novo conceito de ironia: a ironia romântica.
Ao contrário da ironia socrática lida pela tradição, a ironia romântica não pretende ser a síntese dos contrários. Afirmativa simples, compreensão complexa, pois quando assumida na história do romance põe em xeque apenas todo o arcabouço teórico do romance como mímesis da história. O paradoxo dessa ironia romântica só é possível num mundo em que a representação simboliza o absurdo do mundo no paradoxo da representação. Esse mundo é o da ficção. A ironia romântica de Friedrich Schlegel é essencialmente poética e seu filosofar é o poetar pensante que se encontra na obra de Machado de Assis.
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