Machado de Assis - Teses e dissertações



A PERSONAGEM FEMININA NA PRIMEIRA FASE MACHADIANA: HELENA E IAIÁ GARCIA



MOISÉS RAIMUNDO DE SOUZA


A PERSONAGEM FEMININA NA PRIMEIRA FASE MACHADIANA: HELENA E IAIÁ GARCIA


PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA PUC-SP


SÃO PAULO


2007


MOISÉS RAIMUNDO DE SOUZA


Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª Drª Olga de Sá.


São Paulo


2007


Banca Examinadora


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Para


Sophia Fernanda


Agradecimentos


Agradeço a Nossa Senhora Aparecida, que iluminou meu caminho nessa longa jornada. Agradeço a minha mãe, por seu carinho e compreensão durante todo esse tempo de estudos e ausências. À Simone que me apoiou e soube suportar cada dia da minha ausência com paciência, compreensão e carinho. À Profª Drª Olga de Sá por ter acreditado em mim até o fim. Aos professores do Programa e a secretária Ana, por me ajudarem nos

momentos mais difíceis dessa longa trajetória.

Aos amigos.

À Secretaria Estadual de Educação que me proporcionou essa oportunidade.

“E não te esqueças, meu coração, que as coisas humanas apenas mudanças são.”

( Arquíloco)


RESUMO


Esta pesquisa tem por objetivo estudar a personagem feminina machadiana e sua postura em face à relação amorosa, no final do século XIX, partindo da análise de duas obras da primeira fase de Machado de Assis, Helena e Iaiá Garcia. Procuraremos analisar, além das protagonistas dos romances citados, também a personagem Estela, de Iaiá Garcia, assim como, observar o comportamento de outras personagens não menos importantes à trama, com suas reações e posturas em relação ao casamento e a situação da mulher naquela época. Nossa intenção é abordar por meio das atitudes dessas personagens, o tratamento dado pelo narrador à mulher nas épocas romântica e realista da literatura brasileira, partindo da análise de um escritor que fez parte desses dois períodos, Machado de Assis. Desse modo, buscando as mutações ocorridas na estética machadiana, procurando descobrir como ele, de um escritor de romances românticos, tão comum naquela época, chegou ao Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Buscaremos as características, os sinais dessa mudança, que já pode ter começado em Iaiá Garcia. Para isso compararemos Iaiá Garcia com Helena, que consideramos uma obra predominantemente romântica, para assim, tentarmos flagrar essas modificações e captarmos o momento da transição. Consideramos as seguintes características de Machado de Assis, como típicas da segunda fase: a dissimulação de suas personagens, a ambigüidade, a ironia, o humor negro, o pessimismo, o tédio e a descrença em relação à vida e ao ser humano e ainda outras que não poderão ser citadas devido a objetividade desse resumo. Portanto, rastrearemos esses indicadores, que por ventura possam surgir em Iaiá Garcia, e procuraremos confirmar a predominância das características românticas de Helena, para podermos afirmar que Iaiá Garcia já pode ser considerado um romance com fortes tendências realistas, bem próximas das obras da segunda fase machadiana, enquanto Helena, continua a ser um típico romance romântico.

Palavras-chave: Machado de Assis, Romantismo, Realismo, personagem.


ABSTRACT


This research aims to study the female character from the famous Brazilian writer Machado de Assis and his point of view at love relationship at the end of XIX century. It is from the analyses of two work of Machado de Assis, first period they are called Helena e Iaiá Garcia. We will try to analyze in addition to the main characters mentioned also the character Stela, from Iaiá Garcia. It will be like watching the characters not less important to the plot with their reaction and point of views related to the marriage and the women situation at this time. We tend to discuss from the behavior of these characters the treatment given by Machado de Assis (the writer) to the woman in the romantic and realist periods in the Brazilian literature. We want to analyze from this writer, Machado de Assis because he took part in these two periods. Thus searching for mutations happened to the aesthetic in the work of Machado de Assis, trying to discover him. Yet how he got so famous from simple romantic romances at this time, he wrote famous best sellers called Mémoria Postumas de Brás Cubas and Dom Casmurro. We will search for the characteristic and the signs of these changes which could have started with Iaiá Garcia. For this we will compare Iaiá Garcia with Helena the ones that we consider a work predominantly romantic. Thus we will try to catch these modifications and take the transition moment. We consider the following characteristics of Machado de Assis as typical from second period: The dissimulation of his characters, the ambiguity, the irony, the blue moody, the pessimism, the boredom and the incredulity between life and human being. We will search these indicators the ones that by chance can be found in Iaiá Garcia. We will also try to confirm the predominance of Helena romantic characteristics to affirm that Iaiá Garcia can already be considered a romance with realist tendencies. It is next to the second period of Machado de Assis while Helena still being a typical romantic romance.


Keyword: Machado de Assis, Romantic, Realism and Character.



Sumário

Introdução ........................................................................................................................... 10

Capítulo 1 Romantismo e Realismo....................................................................................15

1.1 Influência e reflexo na obra machadiana...............................................................15

1.2 O Romantismo e o panorama da época...................................................................17

1.3 O Realismo e o panorama da época.........................................................................26

1.4. Machado de Assis e o Realismo............................................................................. 28

Capítulo 2 Helena: um romance romântico ......................................................................22

2.1 Helena no contexto da época................................................................................. 27

2.2 Helena: alguns traços românticos em sua trajetória...........................................35

2.3 Renúncia, sofrimento e tragédia em Helena........................................................40

2.4 Infelicidade e morte em vez de casamento e final feliz........................................45

Capítulo 3 -Iaiá Garcia: um romance em mutação ......................................................41

3.1 A mulher machadiana nos romances da primeira fase ......................................45

3.2 Estela: casamento, renúncia e sofrimento ...........................................................53

3.3 Estela e Iaiá: orgulho, realização e redenção.......................................................60

3.4 Iaiá Garcia: os indícios de uma nova estética .................................................... 64

Considerações finais. .....................................................................................................64

Referências ........................................................................................................................ 74 Bibliografia geral .............................................................................................................. 76

Introdução

Essa dissertação tem como objetivo investigar e demonstrar como se davam as relações da personagem feminina machadiana com o amor e o casamento, na primeira fase de sua literatura. Dessa forma, analisaremos as mutações sofridas por essa personagem no período de transição do Romantismo para o Realismo, abordando a postura da mulher da época em face à relação amorosa.

Para tanto, nos basearemos na análise das personagens Helena e Iaiá Garcia, dos romances homônimos de Machado de Assis, que sem dúvida são duas obras bastante representativas dessa fase literária do autor, e portanto, nos proporcionarão flagrar com precisão, os indícios dessas mudanças.

Na segunda metade do século XIX, quando se deu oficialmente no Brasil a transição do Romantismo para o Realismo, já passávamos a ter determinados caracteres e códigos literários definidos e bem visíveis, até porque, como as novidades culturais incluindo as literárias, demoravam muito a chegarem por aqui, os períodos literários às vezes se cruzavam e continuavam seguindo seu curso simultaneamente na vida cultural da época, como é o caso dos quase que contemporâneos Macedo, Alencar e Machado, esse último inaugurando a ruptura com o velho e combalido sistema romântico.

Quando percorremos nossa história literária, sendo o Brasil um país relativamente jovem, podemos perceber tranqüilamente a lenta mutação pela qual as personagens vão passando entre um período e outro, trazendo ainda traços e vestígios de escolas anteriores, como também, inovando e incorporando códigos avançados, já pertencentes a outras correntes estéticas que por aqui estavam chegando. É esse momento histórico, essa tensão, essa transformação em nossa história literária que pretendemos flagrar. Nelly Novaes Coelho (1980) faz uma importante reflexão sobre esse momento de transição.

O testemunho subjetivo-individual ( que era exigido pelo ideário romântico ) é substituído pelo depoimento objetivo de uma consciência crítica que julga os fatos a partir dos valores estabelecidos por uma sociedade ( apoiada na eficiência comprovada do pensamento científico, tecnológico e econômico que dava enorme impulso ao progresso e à civilização ), deslumbra-se com o próprio poder e acredita na grande capacidade de realização da condição humana, desde que pelo saber, pela Educação e pela Ciência possam ser descobertas todas as chaves que dêem soluções aos problemas humanos. O narrador realista torna-se, pois, o intérprete por excelência do mundo social da época e da problemática então posta em questão – a denúncia da excessiva idealização do amor romântico; a valorização do amor sexual; a denúncia da alienação da realidade a que a educação romântica conduzia os homens e mulheres; o poder do dinheiro como instrumento de ascensão ou aviltamento do ser humano, etc. ( COELHO, 1980, p. 176 )

Sendo essa, uma época de agitações, transformações e grandes manifestações culturais em todo mundo, a Literatura Brasileira também não se intimidou, não ficou passiva diante dessas transformações. Não fazia sentido aos nossos homens de letras, continuarem produzindo o mesmo tipo de literatura, sendo que os ventos das mudanças já estavam soprando por aqui. Essas mudanças já estavam à porta; não tinha, portanto, como nossos escritores não incorporarem aos poucos, mesmo que tardiamente, alguns desses novos códigos, como nos aponta Nelly Novaes Coelho (1980 ).

A destruição e Renovação mais uma vez se defrontam na evolução dos tempos. Período brilhante pelas conquistas positivas que o marcaram, o Realismo, porém, possui uma face escura; a perplexidade ou angústia do homem diante dos valores destruídos. [...] O movimento, nascido no Romantismo, revela o esgotamento das fórmulas criadas pelos românticos e o aprofundamento daquela crise psicológica que estivera nas origens da revolta contra a ordem clássica. [...] É a revolta contra essa hipertrofia do idealismo subjetivista ultra-romântico que explica – em meados do século XIX – a reação realista, exigindo a volta do real, sem idealizações. ( COELHO, 1980, p. 172 )

Em seu ensaio O narrador, Walter Benjamim (1985) diz que, “O grande narrador tem suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais”. (BENJAMIM, 1985, p.

214) Machado de Assis tirava seus tipos, suas personagens, do seu estrato social, da realidade em que vivia. Como um cronista da época, romântica e realista, Machado, escondendo-se atrás de um narrador crítico e observador, a quem nada escapava, conseguiu fazer em Helena e Iaiá Garcia, crítica social e retratar a situação vivida pelas mulheres naquele período.

Helena e Iaiá Garcia, indiciam, como se dava a relação de conveniência e dependência entre as famílias de então. Com Helena (Helena) Iaiá Garcia e Estela ( Iaiá Garcia) jovens sem expectativas profissionais e com um futuro baseado no casamento como parâmetro para o sucesso e a realização pessoal e financeira, Machado de Assis traça um panorama geral da situação da mulher e dos valores e costumes que imperavam naquela época.

No entanto, com as transformações que estavam acontecendo no mundo naquele final de século, refletindo-se naturalmente aqui no Brasil, e principalmente por influência das idéias naturalistas e realistas amplamente difundidas em nosso meio, começava, se não na prática, pelo menos no espírito de alguns escritores, um desejo de mudança que, se refletiu em sua ficção e na composição de suas personagens.

Machado de Assis, um dos autores que mais sentiu essas influências, passava por um período de transição no final da década de setenta, que se refletiu claramente em seus últimos escritos desse período. Dois anos depois de escrever Helena, (1876) livro ainda romântico, Machado de Assis, escreve Iaiá Garcia, ou seja, em 1878, apenas dois anos antes do comentado Memórias Póstumas de Brás Cubas, marco inicial e visível de sua nova fase.

Porém, antes da tão discutida mudança de estilo do Brás Cubas, indícios e tendências realistas, já apareciam em seus textos, sendo que em Iaiá Garcia, esses novos traços já são visíveis. Conforme afirmou o crítico M.C. Proença, ( 1971 ): “Helena, ainda romântico, de enredo folhetinesco, e Iaiá Garcia, história do nascimento, vida e glória de um amor, já possui muito daquele estilo remanchado, passinho à frente, passinho atrás, que irá dar-nos a pintura minuciosa, quase microscópica de Brás Cubas, Quincas Borba, Capitu e Bentinho, para atingir a cristalização sem jaça do Esaú e Jacó e Memorial de Aires.” (PROENÇA,1969, p.188)

Por outro lado, no que diz respeito a Iaiá Garcia, Lúcia Miguel Pereira (1946) nos diz que: “Se Iaiá Garcia ainda não é um grande romance, se lhe falta sobretudo coesão, já é de uma qualidade muito superior aos outros, porque nele Machado se libertara do romantismo.” ( PEREIRA, 1946, p. 163 ) E mais à frente, a mesma crítica afirma:

De qualquer modo, só em Iaiá Garcia Machado de Assis se mostra senhor dos seus instrumentos de expressão e preparado para a criação, para os grandes livros que se seguirão agora até à sua morte. Ainda terá que abrir mão de uma só coisa: da confiança nos homens, ou pelo menos nos seus sentimentos. ( PEREIRA, 1946, p.164)

Iremos confrontar diferenças e semelhanças entre Romantismo e Realismo, no que diz respeito às personagens das duas obras em questão. Os textos machadianos de Helena e principalmente Iaiá Garcia são dos mais significativos para compararmos essa questão da transição, pois contêm códigos românticos e alguns indícios do Machado realista.

O estudo desse processo de transição do período Romântico para o Realista, e a ótica do narrador sobre as personagens, Helena, Iaiá Garcia e Estela, terá metodologia de análise de base comparativa, confrontando e buscando através das características das personagens a postura delas em relação ao amor e ao casamento. O percurso deste trabalho seguirá as seguintes etapas:

O primeiro capítulo -Romantismo e Realismo: Influência e reflexo na obra machadiana tratará das características básicas desses períodos literários; do contexto histórico e social da Literatura Brasileira na segunda metade do século XIX; da estética machadiana, da mutação sofrida pelas personagens e dos indícios de mudança em seus perfis.

No segundo capítulo – Helena: um romance romântico, faremos uma análise das características da obra e principalmente da personagem, com a finalidade de confirmarmos seus traços românticos com a obra e a personagem Iaiá Garcia.

No terceiro e último capítulo – Iaiá Garcia: Um romance em mutação, procuraremos demonstrar o início da mudança no texto machadiano, o distanciamento do Romantismo, advento e a influência do Realismo e os indícios de uma ruptura, com o romantismo que Machado já indica.

Finalmente, nas Considerações Finais -faremos um retorno às nossas hipóteses, de forma a avaliar até que ponto a estética machadiana, estando em franca mutação, fará de Helena, um típico romance romântico e, de Iaiá Garcia, um romance de transição.

CAPÍTULO 1

Romantismo e Realismo

1.1 Influência e reflexo na obra machadiana

A mudança do próprio mundo, assim como a evolução natural das coisas faz com que também a Literatura passe por modificações significativas, pois, o homem é passível de transformação, e, portanto, a literatura que é expressão do estado pelo qual passa esse homem, também sofre mutação, visto que as transformações ocorrem com mais rapidez e freqüência do que imaginamos. Dessa mesma opinião é também Walter Benjamim, que em seu ensaio sobre o Narrador afirma o seguinte:

Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e

que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas, também a do

mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis.

(BENJAMIM, 1985, p.198 )

Esse trabalho tem por objetivo analisar e comparar dois romances machadianos da sua chamada primeira fase e a trajetória de suas principais personagens, Helena e Iaiá Garcia. Portanto, faremos nesse primeiro capítulo, uma apresentação dos dois períodos literários contemporâneos a Machado de Assis, o Romantismo e o Realismo, a fim de compreendermos melhor como se comportava a personagem feminina machadiana naquela época, principalmente no que diz respeito a sua postura em face à relação amorosa. Acreditamos que por aquele período, Machado de Assis passava por uma fase de transição, estando, portanto, essas duas obras, também subordinadas à ótica desse narrador em franca mutação, cabendo a nós, a tentativa de focar esse momento e captar essa tensão.

Em seu ensaio A Personagem de Ficção, Antônio Cândido afirma que “a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do autor”. (CÂNDIDO, 2000, p.53) Logo, quando analisamos a personagem de uma obra pertencente a um determinado período, temos que levar em consideração que esta personagem está enquadrada em concepções não só estéticas, mas também ideológicas, o que torna visível a distinção de caracteres entre um período e outro. Assim, o escritor, por meio da ótica do narrador, é levado a traçar um panorama de costumes baseado não só na Literatura como também na cultura da época, e a moldar uma personagem que dependerá da visão e da observação de fatos e pessoas que para esse autor parecem significativos. Sobre isso, vejamos abaixo, o pertinente comentário de Bakhtin:

A estrutura literária, como qualquer outra estrutura ideológica, refrata a realidade socioeconômica que a gera, mas o faz a seu modo. Ao mesmo tempo, porém, em seu “conteúdo”, a literatura reflete e refrata as reflexões e refrações de outras esferas ideológicas ( ética, epistemologia, doutrinas políticas, religião etc.) O que quer dizer que, em seu ‘conteúdo’, a literatura reflete a totalidade do horizonte ideológico de que ela própria é uma parte constituinte. O conteúdo da literatura reflete [...] outras formações ideológicas não artísticas ( éticas, epistemológicas etc.). Mas, ao refleti-las, a literatura engendra novas formas, novos signos do intercurso ideológico. E tais signos são obras de arte, que se tornam parte real da existência social que rodeia o homem. Refletindo algo externo a elas, as obras literárias constituem ao mesmo tempo fenômenos singulares [...] Seu papel não pode ser reduzido ao [...] auxiliar, de refletir outras ideologias. As obras literárias possuem um papel ideológico independente bem como seu modo particular de efetuar a refração da existência socioeconômica ( Miedviédiev e Bakhtin, 1978, p. 68 )

Essa concepção, que de certa forma foi também defendida por Cândido anteriormente, quando nos fala a respeito do posicionamento do autor e da maneira como ele manipula o narrador, será pertinentemente recuperada por nós e empregada em relação a Machado de Assis, pois, o narrador que se apresenta nos romances machadianos de então vai sofrendo certa mutação e passando por mudanças em que ora se apresenta com tendências românticas, ora realistas. Esse fato ilustra bem o processo pelo qual passava Machado de Assis, pois o autor estava entrando em uma fase de pleno amadurecimento, mudando conseqüentemente sua postura estética e de certa forma, também suas concepções filosóficas a respeito do homem e da vida.

Iremos verificar como o narrador aborda por meio de diferentes ângulos, a questão da intriga amorosa, que em alguns momentos, parecem se enquadrarem de forma bem clara dentro de uma concepção clara do romance romântico, em outros, a impressão é que a personagem já está totalmente tomada por toda uma atmosfera realista. Com a finalidade de nos esclarecermos mais a respeito de em quais estéticas as duas personagens podem ser enquadradas, é que nos ocuparemos nesse capítulo com um pouco das teorias e das principais características desses dois movimentos, Romantismo e Realismo.

1.2 O Romantismo e o panorama da época

O romance, forma narrativa moderna, surgiu como resposta a necessidades de expressão, da parte do escritor, e a determinadas aspirações, da parte do leitor. Na raiz dessas necessidades está o Romantismo, cujas sementes se encontravam fecundadas desde a segunda metade do século XVIII. Os movimentos revolucionários dessa época fizeram ruir a velha estrutura social, emergindo em conseqüência elementos novos das camadas inferiores da estratificação sócio-econômica. O industrialismo, com o progresso da técnica, pôs em vigor novas formas de trabalho, baseadas na especialização. Uma nova atitude em face da vida, valores novos, novos anseios, surgiram ao mesmo tempo, para o homem atordoado do início do século XIX. O frio equilíbrio racional das idéias e sentimentos neoclássicos era uma linguagem estranha a esses valores, a se debaterem na maré revolta de anseios de justiça, e de aspirações reivindicatórias. Esses fatos permitem compreender o que tem apontado como característica fundamental do Romantismo, ou seja, a sua atitude de permanente oposição, de luta contra o que até então vigorava e, ao mesmo tempo, de protesto contra as novas formas de existência. Daí o sentimento de solidão que domina o Romantismo.

O romance foi para o Romantismo o seu melhor veículo para a divulgação de seus ideais. Influenciados por novas tendências que vinham da Europa, o Romantismo chegava ao Brasil com novas propostas para a literatura, aliciando nossos jovens literatos e abandonado as antigas tendências neoclássicas já ultrapassadas que ainda insistiam em dominar nossas letras.

As novas tendências que se opuseram no meado do século XVIII aos ideais neoclássicos, preludiando o Romantismo, refletem um estado de espírito inconformista em relação ao intelectualismo, ao absolutismo, ao convencionalismo clássicos, ao esgotamento das formas e temas então dominantes. A imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade, conquistam aos poucos o lugar que era ocupado pela razão. COUTINHO, 2004, P. 5 )

No Brasil os românticos elegeram o amor como tema fundamental de suas obras e, do ponto de vista do romance, talvez possamos afirmar que foi esse tema que forneceu os subsídios de trabalho para outras gerações de românticos que o sucederam. Segundo Paul Valéry, “Seria necessário ter perdido todo espírito de rigor para querer definir o Romantismo” P. Valéry ( apud BOSI, 1972, P.99) Por isso às vezes se torna difícil caracterizar e definir o Romantismo, dado que alguns códigos românticos sempre estiveram e estarão presentes em obras literárias ao redor de todo o mundo, nas mais variadas épocas. Porém, o termo romântico que será comentado por nós ao longo desse trabalho e que é empregado em crítica e história literária, se refere ao Romantismo como sendo uma corrente estética que se desenvolveu e se transformou no principal movimento de oposição a tradição neoclássica vigente.

Para identificarmos os principais códigos do Romantismo como corrente estética, e também as características básicas que acompanham essa corrente e seus principais representantes, é importante conhecermos mais a fundo o tipo de romance romântico que era cultivado no Brasil da segunda metade do século XIX.

Pontuaremos as principais características do período romântico, depois confrontaremos com os códigos realistas, estudando algumas obras mais especificamente dos romances machadianos; mesmo os da sua fase de transição, assim teremos uma idéia mais clara a respeito dos dois períodos, e entenderemos com mais propriedade em que corrente estética se enquadram Helena e Iaiá Garcia.

Para isso, tomaremos como parâmetro, a fim de observarmos o estilo e as características da estética romântica, um dos representantes máximo do tipo de narrativa produzido naquela época, o escritor José Alencar e seu romance Lucíola, um típico representante do romance romântico. Lucíola é o quinto romance de Alencar e o primeiro da trilogia que ele dominou de perfis de mulheres ( Lucíola, Diva e Senhora). Situa-se entre seus romances urbanos que representam um levantamento da vida burguesa na segunda metade do século XIX. “Lucíola é o lampiro noturno que brilha de uma vez tão vivo no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d’alma? Deixem que raivem os Moralistas. G.M” ( LUCÍOLA, 1978, p. 4 )

Acreditamos que Lucíola e Senhora, de Alencar, são duas das principais obras do período romântico, que assim como outras obras e personagens que citaremos nessa pesquisa correspondem a modelos típicos dos romances do final do século XIX no Brasil. Por meio da análise e comparação dessas personagens com aquelas principais, que serão estudadas no Corpus desse trabalho, Helena e Iaiá Garcia, pretendemos chegar a uma visão mais clara da personagem feminina e de sua relação em face ao amor e ao casamento naquela época.

Em todos os romances urbanos, Alencar aborda o amor como tema central. Ou, para ser mais exato, aborda a situação social e familiar da mulher, em face do casamento e do amor. Mas o amor como o entendia a mentalidade romântica da época, era um amor sublime, idealizado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos e até de alguns delitos. Esse romance romântico foi o criador de mulheres cândidas e de pretendentes excessivamente bons, que desfilam diante do leitor, num cabedal de virtudes e dever de consciência mais fortes que a paixão. Lúcia e Paulo, (Lucíola) Helena e Estácio, (Helena) Aurélia e Seixas, (Senhora) Jorge e Estela,( Iaiá Garcia ) são alguns exemplos típicos desses heróis e heroínas. A personagem romântica, desse período é demasiadamente tipificada, ela encarna a representação típica dessa corrente, foram heróis e heroínas que marcaram a História da nossa Literatura.

Retratando o Rio de Janeiro do segundo Império, Alencar, Machado e outros escritores daquela época revelavam os padrões de conduta e valores de uma sociedade em transformação, movida, sobretudo pelo dinheiro. É a famosa moral burguesa. Nesses romances os conflitos das personagens e entre as personagens são determinados pelo confronto do indivíduo com a sociedade.

No que diz respeito a retratar os costumes da época, há grande semelhança entre Alencar e Machado de Assis, ambos são considerados por alguns historiadores da Literatura, como cronistas da época. As obras, tanto de Alencar como do Machado da “1ª fase” trazem muito dos hábitos do Rio de Janeiro capital do Império. Os dois autores vão fundo nesse aspecto, pois ambos fixam o Rio de Janeiro da época, com sua fisionomia burguesa e tradicional, com uma sociedade endinheirada que freqüentava o teatro, passeava à tarde na rua do Ouvidor e à noite no passeio público, morava no Flamengo, em Botafogo ou Santa Teresa e era protagonista de dramas de amor que iam do simples namoro à paixão desvairada.

Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.

Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro;

Foi proclamada a rainha dos salões.

Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em

disponibilidade.

Era rica e formosa.

Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro;

dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.

Quem não se recorda de Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte

como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio

Do deslumbramento que produzira o seu fulgor?

Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a

conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade.

( SENHORA, 1985, p.13 )

Nas obras românticas desse período, falta densidade psicológica. Mas é preciso lembrar-se de que o Romantismo é dado à exploração dos sentimentos dos personagens sem a preocupação de inquirí-los em sua profundidade. É o que explica M. Cavalcanti Proença, referindo-se aos romances da época, a Alencar em especial. “Não há que lhe buscar, na obra, poços psicológicos, subterrâneos de paixões e de instintos, abismos de dúvidas filosóficas tragando sentimentos” ( PROENÇA 1971 , p.43 )

Alencar, como um típico representante do romance romântico, traz um gosto acentuado pela descrição. Mesmos nos romances urbanos há espaço para a natureza, a paisagem ou cenário ( salões, ambientes ). Quanto à descrição das personagens, Alencar parece antes se preocupar com o aspecto externo do que com o temperamento das personagens. Junto a essas descrições e fatores externos, ele nos traz algumas características típicas do romance romântico, como por exemplo, o lirismo bucólico da passagem abaixo, extraído de Lucíola e que é uma marca registrada desse tipo de narrativa.

Sentamo-nos sobre a relva coberta de flores e à borda de um pequeno tanque natural, cujas águas límpidas espelhavam a doce serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso seu crochê e o novelo de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto ela trabalhava, eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me pela relva para relva beijar-lhe a ponta da botina que aparecia sob a orla do vestido”. (ALENCAR, 1978, p. 105)

E enfim, chegamos à temática básica do Romantismo, o amor. Nessas obras, a intriga é calcada na seguinte questão: a situação social da mulher em face do amor. Do amor como o entende o Romantismo: sublime, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos, que está acima dos fatores sócio-econômicos, que triunfa apesar das convenções sociais. No Romantismo há dois caminhos: o final feliz ou a morte trágica. Em e em Lucíola e em Helena, o amor não foi na linha do final feliz e sim da tragédia. Já em Senhora e Iaiá Garcia, depois das complicações de um enredo tipicamente romântico, chega-se ao tão esperado final feliz.

Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de ambos se uniam já em fervido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito do marido. Ele afastou de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.

___ Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.

A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador, e trouxe um

papel lacrado que entregou a Seixas.

____ O que é isto? Aurélia

____ Meu testamento.

Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento

em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal

herdeiro.

____ Eu o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela noite,

disse Aurélia com gesto sublime.

Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.

____ Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando.

É o meio de a repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.

***

As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o

hino misterioso do santo amor conjugal. ( ALENCAR, 1985, p.189)

Em Lucíola, o amor é a temática central do romance. O amor como força regeneradora. O mesmo também poderá se dizer de Helena, que querendo ou não acabou aceitando a situação da falsa paternidade e pagou por isso, entrando em complicações e também terminando com um final trágico. Conforme afirma M. Cavalcanti Proença, as características dessa obra, são de um típico romance romântico.

O enredo tem características do que se chamou folhetinesco, com uma provisão de

momentos expectantes a terminar cada capítulo. Aí estão a casa em ruínas, o inesperado

no testamento, o escravo confidente, e as cartas de significação ambígua. Isso para um

dos públicos do escritor, aquele para quem literatura é sinônimo de lirismo, sofrimento, e

vitória dos sentimentos elevados. Tudo coroado pela morte da moça, pois não seria justo

ferir um dos seus apaixonados, ambos merecedores de amor e felicidade. ( PROENÇA,

1971, p. 189 )

A maneira como a personagem protagonista de Helena é construída e vai sendo apresentada ao público, mostra uma heroína que está sendo pintada aos moldes do velho e bom romantismo, com o mesmo desfecho trágico de tantas outras, conforme explicitado na transcrição abaixo.

A noite foi cruel para todos. D. Úrsula, profundamente abatida pela dor e pelas vigílias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos amortalhassem Helena; ela mesma lhe prestou esse derradeiro e triste obséquio. A morte não diminuíra a beleza da donzela; pelo contrário, o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto misterioso e novo. Estácio contemplou-a com os olhos exaustos, o padre com os seus úmidos. Melchior suportara a dor até o momento definitivo da separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater enfim, ao pé daqueles pálidos restos, despojo último de generosas ilusões.(ASSIS, 1979, p.127)

Já a arquitetura de Lucíola, obra bem representativa desse período e que nos esclarece muito a respeito da definição do que vem a ser um romance romântico, sofreu visível influência do romance de Dumas, aliás, leitura predileta da protagonista da historia. Poderíamos dizer, portanto, que com Lucíola, Alencar representou com maestria, os cânones da escola romântica.

Para esse romântico, o sentimentalismo melancólico é muito mais do que um simples sentimento, pois no romance romântico se encontra uma galeria enorme de heróis e heroínas chorosas, que colocam o sentimento acima da razão, elegendo o coração como uma norma suprema de conduta pessoal e social. O comportamento de tais personagens é imprevisível, dependendo de seus estados de alma. A oposição indivíduo x sociedade é uma das marcas do autêntico espírito romântico. Sobrepor sentimento à razão, entusiasmo ao raciocínio, se rebelar contra as convenções sociais. Therezinha Mucci, em seu estudo A Personagem Feminina no Romance de Machado de Assis, já nos alertou para esse fato.

Em Iaiá Garcia, há um antagonismo desenvolvido entre os amores impostos pelas normas sociais e os sentimentos que brotam natural e espontaneamente. Valéria e Estela, personagem deste romance, dominadas pelo orgulho, aderem aos primeiros; e Iaiá, jovem de origem humilde, não se subordina aos preconceitos sociais, tornando-se mais feliz que sua madrasta, Estela”. ( MUCCI, 1986 , p. 40 )

Diante de tanto enfrentamento e de tantos obstáculos, mesmo heróis e heroínas acabam por apresentar um quadro de saturação que muitas vezes se traduz em alterações bruscas em seu estado de espírito. Para Domício Proença, o Ilogismo, é uma constante na literatura romântica. “Tal ilogismo, na literatura romântica, leva, inclusive, a uma instabilidade emocional traduzida em atitudes antitéticas ou paradoxais: alegria e tristeza, entusiasmo e depressão. (PROENÇA FILHO, 1995, p. 216) Esse Ilogismo aparece como um dos pontos altos de quase todos os românticos. Em Lucíola, romance que tomamos como obra referencial e modelo de romantismo, isso fica bem evidente. Os paradoxos são freqüentes.

Quanto aos contrastes, os mais importantes na narrativa são aqueles relacionados com pessoas e sentimentos. Em Lucíola, por exemplo, a mesma Lúcia que compôs recatadamente o roupão ante os olhos de Paulo, que vislumbrava o simples contorno de um seio, foi capaz de desfilar nua na ceia, em casa do Sá. Ela é, portanto, contraditória segundo suas próprias palavras:

Eis a minha vida...deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da depravação; contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima , sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Ficaram gravados no meu coração certos germes de virtudes... (ALENCAR, 1978, p.112 )

Desse modo, um mínimo contratempo é o suficiente para lançar Lúcia na mais profunda tristeza. Numerosas passagens do romance colocam o leitor diante de quadros como esse, em que a personagem muitas vezes altera seu estado de entusiasmo e repentinamente cai em um quadro de profunda melancolia, bem ao gosto romântico.

Foi terrível. Meu pai, meus manos, todos caíram doentes: só havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite e não amanheceu.Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria; algum dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O médico, que nos fazia a esmola de tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para cúmulo de desespero, minha tia uma manhã não se pode erguer da cama; estava também com febre. Fiquei só! Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enloqueci. ( ALENCAR, 1978, P.110).

No Romantismo, o amor é a mola mestra, e a exaltação desse amor se torna outra grande marca do romance romântico.Tanto na ficção como em prosa e verso, o amor sublime, alheio às convenções sociais, é feito de sacrifício e, às vezes, de heroísmos. Em Helena, essa exaltação fica evidente.

“_ Helena, disse ele, você ama”.

A moça estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si, como assustada, e pousou as mãos nos ombros de Estácio. Refletiu ela no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa ocasião parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:

-Muito! Muito! Muito! ( MACHADO DE ASSIS, 1979. P. 43 )

No romantismo a idealização das personagens, da mulher principalmente, está presente em quase tosas as obras, conforme ressalta Nelly Coelho: “ Note-se, por exemplo, que o herói romântico é, via de regra, um ser excepcional, cuja grandeza se destaca dos demais, dotado de grande idealismo e de uma generosa solidariedade que o faz tratar como igual aos que lhe são inferiores em nível social. ( COELHO, 1980 , p.170)

O rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas. A expressão Angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase íntima, e a singeleza das vestes níveas e transparentes davam-lhe frescor e viço de infância que devia influir pensamentos calmos, senão puros.”( ALENCAR, 1978, p.27)

Quanto ao subjetivismo que é uma característica básica do universo romântico, as ações e atitudes giram em torno do EU. Por isso, a personagem na ficção romântica está em constante conflito com os valores e imposições da sociedade ou da família. Esse subjetivismo é dominante em quase todas as obras desse período, como afirma Proença Filho. “ É o mundo pessoal, interior, os sentimentos do autor que fazem o espaço central da criação. Com plena liberdade de criar, o artista romântico não se acanha. (PROENÇA

FILHO, 1995, p. 216 )

Em defesa do direito de amar e ser amado, heróis e heroínas românticos são capazes de sacrifícios e renúncias incríveis. Buscam incessantemente a felicidade e o casamento. Diante da impossibilidade da concretização desse amor, por imposições da sociedade ou da família, a atitude mais comum entre os românticos é o desejo de morte. Morte natural ou suicídio. As páginas românticas são fartas de tais exemplos.

1.3 O Realismo e o panorama da época

Assim como aconteceu com o Romantismo em relação ao classicismo, também aconteceria a ele futuramente, em relação ao Realismo, e assim sucessivamente. As novas tendências, muitas vezes se sobrepõem. Diferentemente do padrão romântico que exalta ao extremo seus heróis e se preocupavam muito com quadros externos, os realistas se preocupavam muito em pintarem quadros interiores, verdadeiros retratos psicológicos de suas personagens:

A palavra realista deriva de real, oriunda do adjetivo do baixo latim realis, por sua vez derivado de res, coisa ou fato. Real+ ismo ( sufixo denotativo de partido, seita, crença gênero, escola, profissão, cicio, estado,condição,moléstia, porção) é palavra que indica preferência pelos fatos e tendência a encarar as coisas tais como na realidade são. Em literatura opões-se Em literatura, Realismo opõe-se habitualmente a idealismo ( e a Romantismo), em virtude da sua opção pela realidade tal como é e não como deve ser. Assim, em crítica literária, como refere M. C Beardssley, no Dictionary of World Literature, de JT. Shipley,.o termo designa as obras literárias modeladas em estreita imitação da vida real e que retiram seus assuntos do mundo real, encarado de maneira objetiva, fotográfica, documental, sem participação do subjetivismo do artista.

(COUTINHO, 2004, P. 9 )

A obra Madame Bovary (1857) de Flaubert, assegurou o triunfo do realismo na França, vindo, portanto influenciar a literatura em toda a Europa e conseqüentemente no Brasil. Ao contrário do Romantismo, o Realismo dá uma grande importância à verossimilhança, tanto interna como externa da obra. As personagens realistas são antes, indivíduos concretos, do que tipos idealizados.

No Realismo, os incidentes do enredo geralmente são decorrentes do caráter de suas personagens e dos motivos psicológicos que geram as ações. São indivíduos concretos, com motivos, ações e emoções bem retratados por seus autores. Assim, o Realismo se consolida em direção a uma vida interior mais voltada para os conflitos do espírito do que para os fatores externos. “Se não lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. (MACHADO DE ASSIS, 1988,

p.52).

Do ponto de vista da estrutura, a ficção realista distingue pelo predomínio da personagem sobre o enredo, da caracterização sobre a ação, do retrato de indivíduos e da crônica de suas vidas sobre os incidentes, estes, aliás, decorrentes das próprias motivações humanas. Por essa razão, a narrativa é lenta, pausada e anda bem devagar. Aliás, o próprio Machado de Assis reconhece isso, ao declarar em uma passagem de Dom Casmurro: “Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegares ao final” (MACHADO DE ASSIS, 1988, p.79 )

Retratando objetivamente a vida, o realismo, todavia, dá-lhe sentido, a interpreta. A acumulação de fatos, pelo método da documentação, não é tudo na atitude realista: a seleção e a síntese operam buscando um sentido para o encadeamento dos fatos. Daí a preferência pela narração em vez da descrição. ( COUTINHO, 2004, P.10 )

O realista não se preocupa tanto em descrever o estado de alma, mas trata antes, do real conflito psicológico gerado entre o “EU” e o outro. Os românticos se preocupavam em excesso com a descrição e outros fatores externos, já as personagens realistas, são mais de reflexão do que de ação. “Era também muito curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de várias espécies, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves outras frívolas: gostava de saber de tudo”. (MACHADO DE ASSIS,1988, p.37)

Em conclusão, o realismo é a tendência literária que procura representar, acima de tudo, a verdade isto é, a vida tal como é, utilizando-se para isso da técnica da documentação e da observação contrariamente à invenção romântica. Interessado na análise de caracteres encara o homem e o mundo objetivamente, para interpretar a vida. Utilizando – se das impressões sensíveis, procura retratar a realidade graças ao uso de detalhes específicos, o que faz que a narrativa seja longa e lenta e dê a impressão nítida de fidelidade aos fatos. A estética realista procura atingir a beleza sob os disfarces do comum e do familiar, no ambiente local e na cena contemporânea.

1.4 Machado de Assis e o Realismo

O Rio de Janeiro, capital do império na época, era o centro do país, e conseqüentemente o grande pólo intelectual do Brasil. Machado de Assis, que ali vivia, era um arguto observador da realidade de um modo geral. Tanto da realidade política e social brasileira, como também do ser humano e de seus anseios mais secretos, de suas ações e suas atitudes. Como observador psicológico, Machado, através de seu narrador, pode também acompanhar crises, angústias e as mudanças pelas quais passava esse homem no Brasil do segundo reinado. Foi de fato o pioneiro, o grande renovador de nossa Literatura em um sentido amplo. Tanto no campo psicológico como no campo da linguagem e da composição em geral. Transcreveremos a seguir, uma reflexão de Antônio Cândido, que é um dos maiores estudiosos deste período, e que sintetizará bem esta nossa definição.

Se voltarmos, porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se embebeu meticulosamente na obra dos predecessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza; numa literatura em que, a cada geração, os melhores recomeçam da capo e só os medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos críticos sabido onde classificá-lo. ( CÂNDIDO,1975,

p.117 )

Como escolhemos José de Alencar e suas obras mais representativas como modelo de Romantismo para facilitar a explicação sobre esse período, elegemos a segunda fase de Machado de Assis, embora o seu realismo seja de certo modo diferente, para comentar o período Realista. Dentre as personagens mais significativas do autor, podemos citar Virgilia, (Memórias Póstumas de Brás Cubas) com sua falta de pudor e sua tendência nata para o adultério. Sofia, (Quincas Borba) e sua infidelidade e ambição desmedida. Porém, nos ateremos àquela que foi sem dúvida, a mais instigante e um dos símbolos da dissimulação e da sagacidade realista machadiana: Capitu. (Dom Casmurro) Nessa obra singular, revelando traços marcantes da psicologia feminina, como por exemplo, a capacidade de dissimulação aprestada por Capitu, o autor contribuiu muito para fortalecer uma personagem com características realistas e bem ao estilo machadiano.

A importância de Machado de Assis e suas personagens na vida literária brasileira não encontra paralelo, pela qualidade e abundância de sua obra e pelo caráter inconfundível de Machado como escritor que atravessou incólume todos os movimentos e escolas, constituindo um mundo à parte, um estilo composto de técnicas precisas e eficazes, e uma galeria de tipos absolutamente realizados e convincentes.

A obra de Machado de Assis revela muita independência com relação aos estilos e modas literárias de seu tempo. A existência dele cruzou com várias tendências artísticas da vida brasileira: Romantismo, Realismo, Naturalismo, Impressionismo, Parnasianismo, Simbolismo. Ele contribuiu para a formação de quase todas essas tendências, mas não se filiou com exclusividade a nenhuma em especial, extraindo delas apenas o indispensável para a criação de seu próprio estilo. ( TEIXEIRA, 1998, p..3 )

Sua arte se distancia muito dos excessos sentimentais do Romantismo e da frieza do Naturalismo; em Machado se destaca a capacidade de fazer objetos perfeitos, aptos a provocar no espectador aquela suspensão admirativa e essa espécie de sabor particular que o espírito encontra nas obras do espírito.

Um aspecto interessante é sua visão amarga e melancólica, dominada por mágoas e ressentimentos. Sem dúvida, é lícito afirmar que, filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua que a existência humana sempre desemboca em solidão e tédio, pois tudo vai se desfazendo desde a aurora da existência humana: a graça, a beleza, a alegria juvenil dão lugar a uma existência cinza e vazia. Como é próprio da literatura realista machadiana, o propósito dos seus livros é desmascarar o ser humano, revelando o seu interior e a hipocrisia das relações sociais. Nelly Novaes Coelho nos dá uma idéia desse estilo realista adotado por Machado e que será abordado em nossa pesquisa.

A área predileta do Realismo vai ser o romance, forma literária que alcança nesse período o mais absoluto sucesso junto à crítica e ao público. [...] Preocupa-se em ser o verdadeiro retrato da sociedade, dos segredos de seus bastidores, dos seus vícios e defeitos sistematicamente denunciados para que uma outra mais perfeita e mais feliz se organize. Dentro desse objetivo essencial, portanto o romance realista vai refletir o mundo das relações humanas apreendido através de uma atitude que pretendeu ser tão científica quanto a dos homens de laboratório”. ( COELHO, 1980, p.174-175)

O Realismo tem também uma técnica e um método específico. Assim é que a precisão e a fidelidade na observação e na pintura são essenciais características realistas.

Usam-se detalhes aparentemente insignificantes na pintura de personagens e ambientes. Esses detalhes devem ser reunidos e harmonizados, para dar a impressão da própria realidade. Selecionados os fatos há que se dar uma certa ordenada com propósito artístico, a fim de criar a unidade e a coesão que o realismo exige. “Se não estudou latim com o Padre Cabral, foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou me um dia que esta razão acendeu nela

o desejo de o saber ”. (MACHADO DE ASSIS, 1988, p. 66 )

Apresentando uma visão amarga e pessimista da vida humana, Machado de Assis sempre se revela sarcástico e irônico na sua obra: desmascara o ser humano na sua hipocrisia e torpezas, desnudando-o nas suas entranhas; desmistifica crenças e instituições. Diferente das mocinhas nobres e idealizadas de José de Alencar, a personagem no realismo é mostrada por outro prisma. Ao apresentar o perfil de Capitu em Dom Casmurro, O narrador focaliza, em câmera lenta, a infância e a adolescência da personagem, dada a necessidade de traçar o seu perfil psicológico revelando, desde as entranhas, o seu caráter e as suas afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da infância, como insinua Dom casmurro, no final da narrativa, ao referir-se a Capitu: “Se não lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. ( MACHADO DE ASSIS, 1988, p. 88 )

Confrontando com os romances românticos, que nos passam uma visão idealizada do amor e do casamento (como o próprio romantismo), Dom Casmurro mostra o lado patético do casamento, do amor e da vida. Embora a vida humana e o casamento possam ter os seus encantos, a visão apresentada por Machado de Assis acerca de tudo isso é amarga e niilista, vista pela ótica de um narrador ressentido e magoado pelas agruras da vida. Distante do amor exacerbado, exagerado e sincero dos românticos, em que o casamento é, geralmente, uma verdadeira comunhão de amor e felicidade, em Dom Casmurro e no realismo em geral o casamento é encarado apenas como um negócio, um jogo de interesses e conveniências.

Tomando como parâmetro o modelo de romantismo e de Realismo apresentado nesse capítulo, nos embasaremos teoricamente nele, para discutirmos as características estéticas de Helena e Iaiá Garcia ao longo da pesquisa: a atitude de ambas em relação ao amor e se de fato são totalmente românticas ou se alguma delas já apresenta indícios de Realismo.

CAPÍTULO 2

Helena: um romance romântico

2.1 Helena no contexto da época

Analisando a questão da mulher no século XIX, constatamos ser verdade que esta era completamente desprovida de qualquer participação importante na vida política e econômica da sociedade brasileira. As mulheres de então, eram mais submissas e inativas, restando-lhes apenas as atividades domésticas e algumas outras mais simples da sociedade, que servissem não tanto para elas próprias, mas sim, para adornar e acompanhar os seus maridos. Therezinha Mucci Xavier ( 1986) nos fala um pouco desse contexto social na qual a mulher machadiana estava inserida.

Um estudo da mulher machadiana, incluindo sua vida pública e privada, mostra que ela não desempenhou nenhum papel econômico e social, tendo sido igualmente isenta de qualquer poder político. Como a mulher tradicional, ela era submissa e passiva diante do mundo, achando que as tomadas de decisões públicas, a participação na economia e política eram tarefas mais adequadas aos homens. As mulheres deveriam ser esposas e mães em tempo integral e dedicação exclusiva, enquanto os homens poderiam ter uma gama variada de atividades. (XAVIER) , 1986, p. 24).

De acordo com Terhezinha Mucci Xavier, (1986): “Os principais atributos do papel feminino que predominaram no século XIX foram passividade, dependência, emocionalidade.” (XAVIER, 1986, p.31) No que se refere aos parâmetros exigidos como ideais para a mulher tradicional, Nelly Novaes Coelho (1977) além de outros “ressalta o amor o casamento, a virgindade, a modéstia, a submissão voluntária. Esses foram os valores que a civilização liberal cristã-burguesa ofereceu à mulher. ( COELHO, 1977,

p.36 )

O romance Helena, de certa forma, um reflexo social dessa época, nos traz uma personagem submissa e marcada com esses caracteres românticos, aliás, bem de acordo com o cânone literário vigente, retratando um pouco a vida da mulher na sociedade carioca e burguesa de então.

Além das qualidades naturais, possuía Helena algumas prendas de sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da família. Não falo da magnífica voz de contralto, nem da correção com que sabia usar dela, porque ainda então, estando fresca a memória do conselheiro, não tivera ocasião de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte e resignação – não humilde, mas digna -, conseguia polir os ásperos, atrair os indiferentes e domar os hostis. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 24 )

Sobre a contribuição desse romance para a época, Ivan Teixeira (1988) nos chama atenção para o fato de Helena ser “como os outros romances da aprendizagem, um retrato da família patriarcal brasileira. Mas, aqui, a cópia torna-se mais completa do que nos outros, sem que se possa tachá-lo de romance de costumes, pois, em vez dos hábitos exteriores, Machado descreve a ideologia daquela estrutura familiar”. ( TEIXEIRA, 1988,

p. 44)

Helena, por sua vez era fruto de uma paixão desordenada, de um ato de adultério, pois o conselheiro Vale, seu protetor e pai adotivo, era homem dado às paixões e às aventuras. Sua mãe, ao que parece, também foi arrebatada por um desses impulsos do coração, vindo, portanto, a ceder aos encantos do conselheiro e entregando-se ao romance proibido e sem freios que culminou em seu nascimento. Já por essas informações dadas pelo narrador no início do romance, poderemos ir delineando o rumo que a personagem tenderá a tomar, se ela mesma não interferir em sua própria trajetória. Do mesmo modo como cedeu a uma paixão intempestiva, o protetor de Helena, também num rasgo impetuoso de caridade romântica, amor excessivo ou simplesmente por culpa resolve legitimar a moça e fazer dela sua herdeira.

Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural de nome Helena, havida com Dona Ângela da Soledade. Esta menina estava sendo educada em um colégio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a família, a quem o conselheiro insistentemente pedia que a tratasse com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio fosse. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 15)

Desde já, começam a aparecer alguns indícios que irão nortear o percurso que será percorrido no romance, uma cadeia de fatos, acontecimentos, na qual a personagem estará presa. A obra começa a ser inserida, portanto, num tom de dramaticidade e numa atmosfera romântica, mesmo numa época em que os ventos naturalistas e realistas já começavam a soprar por aqui e a modificar o processo de construção e apresentação das personagens.

A personagem Helena, já foi concebida trazendo certa aura de romantismo à obra. O relato de seu nascimento feito por seu pai ao final da obra, imbuído de uma forte carga de sentimentalismo, aponta para essa direção.

Essa menina nasceu em um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe foram obtidos ,por favor, de uma mulher da vizinhança. Mas nasceu em boa hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava com alma, lutava resoluto contra todas as forças adversas, certo de encontrar à noite a solicitude da mãe e as ingênuas carícias da filha. (ASSIS, 1979, p. 122).

O narrador de Helena cria um clima meio estóico, de desprendimento, e assim vai mostrando a situação de pobreza e felicidade em que veio ao mundo a heroína Helena. Dessa forma, ela estava fadada à pobreza e ao sofrimento, se não fosse o romance intempestivo entre sua mãe e o rico conselheiro Vale, a mocinha teria tido um destino completamente diferente, pois seu pai biológico não tinha condições nem de a alimentar com dignidade, quanto mais de proporcionar a fina educação que lhe foi dada por intermédio de seu protetor.

Os senhores não são pais; não podem avaliar a força que possui o sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas acumuladas na fronte de um homem. Muita vez, quando

o trabalho me tomava parte da noite, e eu, apesar de robusto, me sentia cansado, erguia-me, ia ao berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar forças novas. Se

o próprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime; servia a adormecer metade da minha felicidade na terra. (ASSIS, 1979, p.122)

Helena teve no relacionamento do pai e de sua mãe uma paixão desenfreada que trouxe conseqüências desastrosas para ambos, levando-os a ter uma vida irregular que repercutiu diretamente na vida futura de sua filha. As dificuldades financeiras, além de darem um tom romântico e até melodramático à obra, contribuíram para o abandono de seu pai Salvador por sua mãe, e de toda a reviravolta em sua vida, indo assim, Helena, parar em um colégio interno.

Depois de narrar os acontecimentos que cercaram os primeiros anos de vida da protagonista, como uma criança que fora abandonada pelo pai e protegida pelo conselheiro Vale, o narrador nos mostra Helena, moça feita, junto a sua nova família, pois depois da morte de sua mãe, Helena por sorte foi amparada por seu protetor, o conselheiro Vale, não tendo, portanto, nem um lar, nem um referencial familiar, um exemplo a seguir. Passou então a ter apenas visitas esporádicas de seu protetor, o conselheiro, vindo a fazer parte de uma família formal, bem depois, quando foi morar na casa do já falecido protetor. ‘Também aqui Machado procura contribuir para o aperfeiçoamento do paternalismo.”(SCHWARZ,1981, p.89)

Isso se dá, quando Helena já conta dezessete anos. O narrador nos mostra a mocinha pura e rejeitada, tentando conseguir seu lugar ao sol. Enfrentando sozinha a desconfiança de alguns parentes e da sociedade em geral.

Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingia-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p.21)

O espírito de tragédia que ronda todo o romance parece anunciar ao leitor uma eterna condição de vítima e usurpadora para a sua protagonista.

As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma hesitação de D. Úrsula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociais, explicava-os e tratava de os torcer em seu favor, _ tarefa em que se esmerou superando os obstáculos na família; o resto viria de si mesmo. (ASSIS, 1979, p. 25 )

2.2 Helena: alguns traços românticos em sua trajetória.

A idealização da mulher, por exemplo, é uma característica constante no Romantismo. O espiritualismo e o temperamento sonhador aparecem praticamente em todo o Romantismo, e em Helena não é diferente. Como um poeta romântico, o narrador idealiza a sua Helena, vai revestindo a personagem de uma aura angelical, moldando-a como se fosse uma figura poderosa e inacessível.

Se a pureza, a generosidade, a submissão, o amor grato e desinteressado não são atributos encontrados em todas as figuras femininas traçadas por Machado de Assis em seus romances, a beleza não deixa de aparecer em nenhuma delas. E como ele era admirador da beleza feminina, sabia pintá-la, esculpi-la, retratá-la descrevê-la com tanta arte e maestria como só o faria um pintor, um escultor, um retratista, um escritor, enfim, um artista exímio.(XAVIER, 1986, p. 53).

Helena é endeusada e mostrada como alguém que não pertence a este mundo. É sublime, celestial, mais elevada do que os simples mortais.

As linhas puras e severas do rosto pareciam que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em suas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do senhor. Não exigia a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 21)

Segundo Xavier, (1986) o narrador machadiano, “quando pinta os olhos, os braços, os ombros, as mãos, o corpo da mulher com arte e magistral sutileza de um anatomista, o romancista não o faz somente por um prazer visual ou sensual. Fá-lo, sobretudo para retratar ou informar os sentimentos, as tendências, o feitio moral e psicológico das suas figuras.” ( XAVIER, 1986, p. 53)

Helena ainda é uma personagem muito distante do Realismo machadiano. Conforme afirma Xavier, (1986) Helena é: “A heroína dotada da inteligência e docilidade, que lhe são peculiares. [...] Age sempre sem hipocrisia e dissimulação. Dotada de uma superioridade de espírito e de um amor próprio digno, ela ‘prefere a miséria à vergonha”. (XAVIER, 1986, p.38).

A personagem se destaca por sua singeleza e filantropia. Como afirma Nelly Novaes Coelho, “O herói romântico é, via de regra, um ser excepcional, cuja grandeza se destaca dos demais” (COELHO, 1980, p.170)

Helena era naquela ocasião a natural enfermeira. Pela primeira vez patenteou-se em todo

o esplendor a dedicação filial da moça. Horas do dia, e não poucas noites inteira, passava-as na alcova de D. Úrsula, atenta a todos os cuidados que a gravidade da enferma exigia. Os remédios e o pouco alimento que esta podia receber, não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava à cabeceira, durante o sono leve e interrompido da doente, achando em suas próprias forças a resistência que a natureza confiou especialmente às mães. ( ASSIS, 1979, p. 49 )

A personagem do Romantismo é quase sempre um ser especial, apresenta-se como um herói ou heroína incansável. A abnegada Helena, por exemplo, não poderia deixar de ser diferente. O seu idealismo e a sua grandeza a tornam mais elevada. Abdicando de si, Helena muitas vezes, acaba negligenciando até mesmo os simples cuidados com o próprio corpo e com a sua vaidade de moça, para exercitar sua caridade e seu heroísmo, cuidando de outros mais necessitados.

De si é que ela não curou muito. O vestido era singelo. Os cabelos, colhidos à pressa e presos pó um pente no alto da cabeça, não receberam, em todo aquele tempo, a forma elegante e graciosa com que ela os sabia realçar. Acrescia o abatimento, que era impossível evitar no meio de tanta fadiga, certo cansaço dos olhos, que os fazia moles e talvez mais adoráveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio atento e laborioso. (ASSIS, 1979, p. 50)

Em Helena, a personagem feminina é tratada como um ser verdadeiramente superior, num exagero tipicamente romântico. Dessa forma o narrador tem que tratar sua relação amorosa como algo também sublime e quase sobrenatural. Com toda a candura atribuída por esse narrador a Helena, ela não pode encarar o amor de forma objetiva. O amor para ela é algo distante: “Nas passagens mais romanescas e visionárias, ligadas ao coração tumultuado de Helena, a linguagem é exaltada, como num poema romântico.” (SCHWARZ,1981, p.105) Talvez por isso, não só seu irmão Estácio a enxergasse assim, como uma mulher inacessível, mas, até mesmo Mendonça que não tinha nenhum vínculo de parentesco com Helena também a via com extremo respeito, pois o romantismo do narrador pinta uma Helena de beleza melancólica, de modo que sua contemplação, feita por Mendonça, se torna um momento de rara poesia, como na passagem que se segue, carregada de sensibilidade e lirismo.

Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da inteligência humana. Pode dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da graça feminil. Mendonça o sentiu, contemplando o busto de Helena e a casta ondulação da espádua e do seio, cobertos pela cassa fina do vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do lugar em que ficava, Mendonça via-lhe o perfil correto e pensativo, a curva mole do braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ela trazia. A atitude convinha à beleza melancólica de Helena. O rapaz olhava para ela sem movimento nem voz. ( ASSIS, 1979, p. 78 )

Helena é a mocinha pura e inocente, a candura em pessoa. É idealizada como um símbolo de perfeição, o narrador muitas vezes descreve suas atitudes como se a moça fosse uma verdadeira “deusa”, longe de ser uma mulher comum: “Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa”. (ASSIS, 1979, p.62) Estácio, seu irmão, numa das passagens do livro, dá asas à imaginação e começa a fantasiar a Helena de seus sonhos, e assim, a jovem vai sendo moldada aos olhos do leitor. “ Nos olhos parecia estampada a ignorância do mal, e o sorriso era o das almas cândidas. Poder-se-ia atribuir àquela criatura de dezessete anos corrupção e hipocrisia? Estácio envergonhou-se de tal idéia; sentiu as vertigens do remorso.” (ASSIS, 1979, p.26)

Analisando com clareza a narração da cena anterior, se pode acompanhar a atitude de Helena e ao mesmo tempo tirar algumas conclusões a respeito do caráter dessa personagem, que o narrador, com habilidade vai, pouco a pouco, definindo-se perante o leitor como uma personagem de forte tendência romântica. Helena tem uma enorme dificuldade de adaptação a esse mundo dos “mortais”. Muitas vezes cansada desse individualismo que a faz sofrer sozinha e calada, não partilhando com ninguém suas desilusões e sofrimentos, ela procura junto à natureza, a sua válvula de escape, um refrigério para o seu espírito. Assim, se isola em seu próprio mundo, para numa postura muito ao gosto dos românticos, sofrer com todo o seu exagero e sentir mais profundamente a sua dor e os dissabores que a vida lhe trouxe.

Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa, a olhar para as folhas da trepadeira, que do lado de fora viera a subir pela muralha da varanda e a debruçar-se enfim do parapeito para dentro. A carta ficara aberta sobre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, olhava para esta, sem ousar falar-lhe. (MACHADO DE ASSIS, 1979, 78)

Helena aproveitava a natureza para meditar. Gostava de fazer longas divagações e aproveitava seus passeios junto à natureza e ao lado do irmão para dar asas a sua imaginação e expandir sua sensibilidade romanesca. Sua alma estava repleta de angústias, aspirações e os mais secretos anseios, que nessas ocasiões, eram compartilhados com Estácio, que apesar de não ser seu amante, era seu melhor confidente.

Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições do mundo Helena deu livre curso à imaginação e ao pensamento; suas falas exprimiam ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da experiência prematura, e iam diretas à alma do irmão, que se comprazia em ver nela a mulher como ele queria que fosse, uma graça pensadora, uma sisudez amável. De quando em quando faziam parar os animais para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um acidente do terreno. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 36)

No caso de Helena, mesmo o autor já tendo uma longa trajetória como romancista, ainda não conseguimos perceber muitos indícios de mudanças, nem localizar os mesmos traços que surgirão em Iaiá Garcia (Iaiá Garcia) e que anunciam a nova estética machadiana. Suas características ainda trazem muitos traços românticos. Helena não consegue tirar proveito de sua farsa. Não tem a dissimulação e determinação de Capitu, ( Dom Casmurro ) muito menos a falta de escrúpulos de Virgília. ( Memórias Póstumas de Brás Cubas ) É, portanto, uma personagem muito distante dos futuros perfis femininos de Machado, pois até mesmo Iaiá Garcia conseguiu fazer um jogo mais vitorioso e tirar proveito de situações adversas. Para Schwarz ,(1981) “Helena é um romance de concepção mais descosida do que a nossa análise faz supor, e do que o enredo bem amarrado deixa ver à primeira leitura.” ( SCHWARZ,1981, P. 104 ) A personagem, temerosa da vida e de sua nova realidade, faz sua opção pelo escapismo, e nessa evasão da realidade, procura fugir de tudo e de todos, em vez de encarar frente a frente e extrair algumas vantagens das situações adversas e conflitantes. Essa forma como Helena vai sendo construída e apresentada ao público, portanto, ainda carrega muitos caracteres românticos.

É sua única narrativa longa verdadeiramente romanesca e pode, do ponto de vista da surpresa e suspense, ser considerada uma obra muito bem realizada. Mas do ponto de vista da colocação de problemas e investigação do indivíduo Helena representa um retrocesso relativamente a Ressurreição e A mão e a luva. Quanto ao estilo, houve também exageração de clichês e figuras românticas, embora haja uma ou outra frase antecipada do humor da segunda fase.(TEIXEIRA, 1979, p.40).

Helena não é nenhuma personagem enigmática, seu caráter não apresenta a esperteza e sagacidade de uma Sofia ( Quincas Borba ). Talvez por isso, desde o começo da narrativa não haja nada de extraordinário, a não ser esse eterno drama choroso e indeciso de Helena, sem nenhuma resolução firme quanto ao que irá fazer de fato diante da situação em que se encontra.

Acabado o almoço, trocadas algumas palavras, poucas e soltas, Helena retirou-se ao seu quarto, onde durante três dias passou quase todas as horas, a ler meia dúzia de livros que trouxera consigo, a escrever cartas, a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janelas. Alguma vez desceu a jantar com os olhos vermelhos e a fronte pesarosa, apenas com um sorriso pálido e fugitivo nos lábios. Uma criança, subitamente transferida ao colégio, não desfolha mais tristemente as primeiras saudades da casa dos pais. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 21)

Helena é isso! Em algumas ocasiões o livro ganha mais substância e prende mais a atenção do leitor, mas ao longo de toda a narrativa não encontramos nenhuma grande evidência daquele molho machadiano dos romances de 2ª fase. Ainda é uma obra revestida de todos aqueles caracteres românticos do velho Machado da primeira fase.

Como afirma M.C Proença (1971) “Helena é um livro romântico, com enredo característico da escola, cheio de mistérios, que a perícia do escritor soube tramar de forma a prender a curiosidade do leitor, e levá-lo a suposições quase sempre falsas, para maior sucesso da revelação final”. (PROENÇA, 1971, p.190).

Em Helena, não há nenhuma personagem de grande densidade psicológica. A própria Helena está longe de ser comparada às grandes mulheres machadianas. Ivan Teixeira, (1988) ao comentar a obra afirma o seguinte: “Em Helena não há nenhuma personagem que se compare, em densidade psicológica, às grandes criações da maturidade do autor. A ação nesse romance predomina sobre o desenho e o estudo dos caracteres. (TEIXEIRA, 1988, p.42) É um romance em que ainda impera o velho e bom saudosismo romântico. Conforme acabamos de ver, sua protagonista é comparada a uma criança triste e chorosa com saudades dos pais. Ao longo de toda a obra, as descrições físicas, o excesso de sentimentalismo, as peripécias das personagens, a futilidade de seus caracteres e de suas ações sobressai em detrimento de uma análise rigorosa da personalidade e das características psicológicas das personagens. Fazemos nossas as palavras de Ivan Teixeira, (1988) que ao comentar a personagem nos lembra o seguinte:

A psicologia dessa personagem foi muito prejudicada pelas necessidades do enredo. A ação, muitas vezes, é imposta a ela, em vez de decorrer de seu caráter. No transcorrer da estória, Helena vai, aos poucos, se transformando numa criatura sem alma, num títere. A trama, em contrapartida, ganha em vida aparente, fica mais movimentada. Tomemos um exemplo: suas virtudes são tamanhas que é capaz de abdicar da herança para se casar com um homem a quem não ama (Mendonça) e, com isso, apagar a paixão pressentida em Estácio, mas as sua mesmas virtudes não bastam para que ela esclareça Estácio sobre as dificuldades, que se meteu. (TEIXEIRA, 1988, p.43).

Segundo o crítico M. Proença, (1971) apesar de alguns vernizes realistas, o romantismo predomina em Helena. Para ele, essa obra está impregnada de códigos, que fazem com ela seja classificada por muitos, não sem razão, como uma típica novela romântica. Schwarz ,(1981) comentando Helena, nos diz que: “Com maestria consumada e posição indefinida Machado circulava entre a intriga ultra-romântica, a análise social, a psicologia profunda, a edificação cristã e a repetição da mais triste fraseologia.” (SCHWARZ,1981, P. 104 )

Porém, apesar de todo romantismo e excesso de bondade da heroína, comprovados em todas as passagens por nós citadas e confirmadas por alguns teóricos, o narrador aos poucos vai inserindo algumas dúvidas necessárias ao leitor, talvez para justificar o engodo do qual sua heroína faz parte. Uma dessas dúvidas, ele nos planta de forma magistral logo no começo do romance, quando fala dos olhos de Helena na ocasião em que essa foi apresentada ao irmão. “Uma só coisa pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou, antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno”. (ASSIS, 1979, p. 21) Essa e outras passagens o narrador usa para incutir aos poucos algumas dúvidas a respeito de Helena e ir jogando com o leitor para que ele reflita até que ponto a personagem é de fato tão cândida e tão inocente. Esses detalhes é que fazem a diferença mesmo no romance romântico entre Machado de Assis e qualquer outro representante da escola.

Nos dizeres de Xavier, ( 1986 ) Helena é: “A heroína que exerce influência em todos. Em suas atitudes demonstra firmeza, segurança, orgulho e dignidade”. (XAVIER, 1986, p. 38) Diferente é claro, da influência exercida pelas personagens femininas da segunda fase, que manipulavam as pessoas em sua volta para conseguir seus intentos, a influência de Helena é benéfica. Ela influencia positivamente, ajudando e consolando os seus. O seu desprendimento e sacrifício vêm enaltecer suas virtudes de heroína.

O que completava a pessoa de Helena, e ainda mais lhe mereceu o respeito de todos, é que, no meio das ocupações e preocupações daqueles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ela regeu a família e serviu a doente, com igual desvelo e benefício. A ordem das cousas não foi alterada nem esquecida fora da alcova de dona Úrsula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinário se houvesse dado. Helena sabia dividir a atenção sem a dispensar. (ASSIS, 1979, p. 50)

2.3 Renúncia, sofrimento e tragédia em Helena

No decorrer da narrativa, Helena se mostra como uma personagem submissa, servil e quase sempre na defensiva. Essa postura é empregada também no que diz respeito ao seu modo de encarar seu amor por Estácio, aceitando quase tudo passivamente, inclusive as fatalidades que o destino lhe impunha. A personagem, portanto, não se mostra capaz de uma atitude contestadora e arrojada a seu favor no que diz respeito à questão amorosa, pois chora o tempo todo, sofre calada, se resigna, mas, não é capaz de uma ação para desfazer o engodo amoroso gerado pela mentira da falsa irmandade com Estácio. Helena não consegue enfrentar a sociedade com todos os seus oponentes, para desse modo, concretizar a sua realização amorosa. Sofre, e assim, vítima dos obstáculos impostos pelo destino, acaba sendo tragada por eles, mesmo depois de toda a intriga desfeita. Sobre essa questão dos obstáculos é pertinente observarmos o que tem a nos dizer Fernando Segolin:

Ora, o romance romântico, embora nem sempre possamos encontrar nele uma prova qualificante, retoma esta mesma trajetória funcional. Assim, é com freqüência que encontramos seu herói submetido a uma prova principal ao lutar pelo direito de se unir à mulher amada, contra um oponente que se configura como obstáculo à desejada união. (SEGOLIN, 1978, p.49)

Devido ao fatalismo das circunstâncias, a personagem protagonista não conseguiu se desvencilhar desse referencial social que a oprimia, por isso, sofria em duas vertentes. Era uma vítima de sua própria condição social, pois era filha bastarda, não podendo contar com seu verdadeiro pai, e sofria também por estar na condição de irmã de seu amado Estácio, que era seu objeto pretendido. Helena então, sofria por viver uma contradição que aparentemente não condizia com seu caráter, porém, não reagia a esse engodo em que se meteu, permanecendo assim, acomodada, sem reação e deixando as coisas acontecerem. Teixeira, (1988) comentando tal situação, faz uma pertinente observação: “As personagens são definidas pelo narrador, embora às vezes suas ações contrariem tal definição. Helena é bela e virtuosa. Comete um engodo, mas só para assegurar a tranqüilidade do pai. Isso, aos olhos do narrador, não turva em nada sua perfeição angelical ”. (TEIXEIRA, 1979, p.40).

Diante de tudo isso, quando Helena se certifica da impossibilidade de se realizar no amor, aumenta ainda mais a sua angustia, e à medida que o sofrimento aumenta, a obra vai ganhando contornos mais românticos e até melodramáticos, pois a jovem, se quiser lutar por sua felicidade, terá que enfrentar muitos empecilhos e adversidades, além de sua própria má sorte; e como se não restasse mais nada, para aumentar seu desespero, é também chantageada pelo pai de sua rival, que descobriu seu segredo.

_ Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha meio de visitar às seis horas da manhã uma casa velha e pobre, e não pobre que a adorne garridamente uma flâmula azul...

Helena fez-se lívida; apertou nervosamente o pulso de Camargo. Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a cólera e a vergonha. Através dos dentes cerrados Helena gemeu esta palavra única:

_ Cale-se!

_ Falo entre nós e Deus, disse Camargo. Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que ela lhe empalidecera. Helena quis erguer-se, mas sentiu-se exausta. Ninguém da sala pôde

perceber a impressão e o movimento; ninguém olhava para ali. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e proferiu algumas palavras de animação, que ela interrompeu, murmurando com amargura:

_ O senhor é cruel! _ Sou pai, respondeu o médico; pai extremoso e discreto, mais discreto ainda que extremoso. Conto com a senhora. (MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 64)

A heroína então, com a resignação digna de alguns românticos, acabou por conformar-se com essa condição social que o meio lhe impunha. Helena, portanto, é uma personagem vítima daquilo que Todorov, em sua Gramática do Decameron chama de “modo obrigativo da vontade”. Ou seja, “é o modo das ações que devem ser realizadas, em obediência às exigências ditadas pela vontade coletiva ou por uma lei social” T Todorov ( apud. SEGOLIN, 1978, p.50 ).

A personagem, infelizmente sucumbiu a essa vontade imposta pelo meio social, e assim Helena, ia alimentando a tragédia que estaria por vir. Em vez de assumir o seu amor por Estácio, Helena segue por caminho inverso. Renuncia a esse amor e insinua casar-se com Mendonça, amigo de Estácio. Desiludida com sua situação, Helena isola-se no quarto para numa atitude confusa e intempestiva, escrever a seu futuro pretendente, mostrando depois esse bilhete ao irmão. Com atitudes como essa, ela vai minando qualquer possibilidade de casamento e de um final feliz entre ela e seu amado Estácio. “Helena sorriu e voltou-lhe às costas. Subiu ao quarto, travou de uma pena e escreveu um bilhetinho. A tinta secou primeiro que duas grossas lágrimas caíram no papel; mas as lágrimas secaram também. Antes de fechar o bilhete, desceu Helena a mostrá-lo ao irmão”. ( ASSIS, 1979, p. 96)

Sobre o exemplo acima, é válido lembrarmos de uma definição de Antônio Cândido (1969) a respeito da personalidade das personagens românticas: “O romântico tem um certo baralhamento de posições, confusão na consciência coletiva e individual, de onde brota o senso de isolamento e uma tendência invencível para os rasgos pessoais, o ímpeto e o próprio desespero”. ( CÂNDIDO, 1969, p.63 )

A situação de Helena vai se complicando, se encaminhando aos poucos para uma tragédia, porém uma tragédia anunciada, pois desde o começo do romance o narrador levanta essa suspeita. Helena se isolava, “buscava nas estrelas” a sua felicidade, se refugiava do mundo e buscava em sua solidão, o refrigério para sua atormentada alma.

Quando a tormenta pareceu extinta, a moça sentou-se na cama e olhou vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se trôpega ao quarto de vestir; ali parou diante do espelho, mas fugiu logo, como se pesasse encarar consigo mesma. Uma das janelas estava aberta. Helena foi ali aspirar um pouco do ar da noite. Esta era clara, tranqüila e quente. As estrelas tinham uma cintilação viva que as fazia parecer alegres. Helena enfiou um olhar por entre elas como procurando o caminho da felicidade. Esteve à janela cerca de meia hora; depois entrou, sentou-se e escreveu uma carta. (ASSIS, 1979, p.65)

Desde o começo da obra, o sujeito em Helena, atua de forma muito passiva. Mesmo tendo um efetivo interesse por sua realização amorosa por meio do casamento com Estácio, sua atuação na trama não nos convence. Quando confrontada e desafiada por seus oponentes, Helena não consegue lutar e acaba se entregando à má sorte. Acovarda-se, se deixa levar por um turbilhão de dúvidas e emoções que acabam em um final trágico.

Helena torcia-se no leito como se todos os ventos do infortúnio se houvessem desencadeado sobre ela. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, entrecortava o pranto com exclamações soltas, enrolava no pescoço os cabelos deslaçados pela violência da aflição, buscando na morte o mais pronto dos remédios. Colérica, rompeu com as mãos o corpinho do vestido; e o jovem seio, livre de sua casta prisão, pôde à larga desafogar-se dos suspiros que o enchiam. Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes, leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vestígios de sua dor. (ASSIS, 1979, p. 65 )

2.4 Infelicidade e morte em vez de casamento e final feliz

Amor e morte são códigos que sempre fizeram parte do cenário romântico. Sendo que a morte ocorre quando há a impossibilidade do amor, quando a felicidade não pode ser concretizada. No caso de Helena, tal impossibilidade era mais fruto de sua mente romântica e doentia de que da realidade propriamente dita. Como não poderia deixar de ser, para fechar com chave de ouro a melodramática novela, bem ao “estilo romântico”, o fim de Helena não poderia ser outro se não a morte.

Helena mordeu o lábio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça descaiu-lhe lentamente como ao peso de uma idéia, a mais e opressora. Depois, ergueu-a; os olhos tristes, mas animados dos últimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estácio, que nessa ocasião pareciam falar as dores todas da paixão sufocada e rebelde. Ambos eles os baixaram a terra, medrosos de si mesmos. (ASSIS, 1979, p. 133).

No Romantismo temos, portanto dois finais: o casamento com final feliz ou a morte e a infelicidade. Alguns, diante de questões insolúveis se fecham em seu subjetivismo e sem que muitas vezes outros percebam, vão definhando aos poucos até que seja tarde para que alguma coisa seja feita a seu favor. Quando descobrem o seu estado de decadência já está avançado. Não há mais muita coisa a fazer.

Com um gesto rápido, tomou nos braços, estendido, o corpo exausto de Helena, e caminhou na direção da casa. O vento flagelava-os; a chuva, que subitamente caía a jorros, alagava-os sem misericórdia; ele ia andando, o mais depressa que lhe permitia o peso de Helena, cuja cabeça pendia para a terra, e de cujos lábios brotavam trechos soltos de frases sem sentido. (ASSIS, 1979, p. 138).

Em todo caso, seu trágico fim, foi coroado com a morte, que provavelmente foi uma saída previamente encontrada, já há muito premeditada por Helena, quando essa não teve coragem de encarar objetivamente os fatos e renunciou muito antes, a sua felicidade.

Os olhos desta, já volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que o recebeu _ olhar de amor, de saudade e de promessa. A mão pálida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; ele inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lágrimas e não se atrevendo a encarar o final instante. Adeus! Suspirou a alma de Helena rompendo o invólucro gentil. Era defunta. (ASSIS, 1979, p.140).

CAPÍTULO 3

Iaiá Garcia: um romance em mutação

3.1 A mulher machadiana nos romances da primeira fase

A literatura de Machado de Assis à época de Iaiá Garcia, período em que o escritor estava sofrendo certas influências advindas das mudanças sociais, filosóficas e científicas pela qual passava o mundo na época, já demonstrava alguns reflexos da chamada estética realista em sua obra. A literatura tem uma função social, e na corrente realista que tanto influenciou Machado a preocupação era ainda maior. As obras de Machado que foram escritas nesse período retratam a hipocrisia e as mazelas geradas pela grande desigualdade social vivenciadas e presenciadas, inclusive por ele próprio.

Afrânio Coutinho, (1971) referindo-se a literatura desse período diz o seguinte: “os realistas fazem dela uma arma de combate e denúncia das diferenças sociais, mostrando os preconceitos, a hipocrisia...” ( COUTINHO, 2004, p.7) O comentário de Therezinha Mucci Xavier, (1986) referindo-se às personagens femininas machadianas dessa fase, ilustra bem a situação em que vivia a mulher brasileira carioca, no final do segundo reinado: “ Fechadas no recinto do lar, sem ocupações fora de casa, alheias ao mundo, com participação restrita nos processos da época, assim viviam as personagens femininas nos romances de Machado de Assis. Elas eram o protótipo do elemento conservador de que fala Gilberto Freire em Sobrados e mucambos, quando se refere à mulher.”( XAVIER, 1986, p. 17)

Desse modo, as obras do final do século XIX, que coincidem com o fim de seu primeiro círculo de produção literária e no qual está inserida Iaiá Garcia, refletem a situação vivida pela mulher brasileira de então. A fim de ilustrarmos melhor esse fato, nos valeremos das palavras de Ingrid Stein, (1984) que em seu ensaio Figuras Femininas em Machado de Assis, comenta de forma muito esclarecedora o assunto:

Entre as figuras femininas machadianas é freqüente a presença de mulheres envolvidas numa aura de quase martírio, concebidas pelo escritor silenciosas, conformadas, dotadas de ‘virtudes’, ‘pudor’, ‘recato’, e imbuídas do dever de manter os conceitos de ‘decoro’ e ‘paz doméstica’. [...] A necessidade de preservação da paz doméstica é referida repetida e explicitamente: Lívia ( Ressurreição ), como vimos, arrepende-se de ter perturbado a ‘paz doméstica’ao tentar explicar ao marido sua concepção de amor. Estela ( Iaiá Garcia) decide silenciar diante de Luís Garcia, seu marido, sobre o antigo amor recíproco entre Jorge e ela. Assim, fazendo, acha, ‘salva-se a paz doméstica, e era o essencial’, A própria Iaiá ( Iaiá Garcia) imagina ouvir um conselho superior para conquistar Jorge e afastá-lo da madrasta Estela, quando desconfia de que esta o ama: ‘Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica’. ( STEIN, 1984 , p. 64 )

Roberto Schwarz, (1982) comentando os quatro romances iniciais de Machado, nos mostra como a questão das diferenças sociais, da tradicional condição de coadjuvante e ser inferior, à qual estava submetida a mulher, influenciava na questão de seu casamento e em sua relação amorosa, de modo geral. Sua condição era de submissão, estava destinada apenas a servir de objeto de adorno para o homem e a zelar pelo lar e pela família. A exemplo das heroínas criadas por Machado, nos três romances anteriores, Iaiá Garcia não escapou a essa tônica.

Ressurreição (1872) é a história de um casamento bom para todos, que não se realiza devido aos ciúmes infundados do noivo. Nos três romances seguintes, trata-se da desigualdade social. As heroínas são moças nascidas abaixo do seu merecimento, e tocará às famílias abastadas elevá-las, reparando o “equívoco” da natureza. A questão é tratada no limite da grosseria, em A mão e A luva (1874); na perspectiva da suscetibilidade em Helena (1876), e com muito desencanto em Iaiá Garcia (1878). A despeito desta evolução o denominador comum dos quatros livros é a afirmação enfática da conformidade social, moral e familiar que orienta a reflexão sobre os destinos individuais. (SCHWARZ , in, BOSI, 1982, p. 412)

Iaiá Garcia é um desses romances da chamada primeira fase machadiana, em que o narrador expõe os conflitos e os interesses que compunham a sociedade brasileira patriarcal do final do segundo reinado. Ivan Teixeira (1988), comentando a respeito dos romances machadianos dessa fase nos diz o seguinte:

Eles apresentam estórias de amor contrariado, que envolvem dinheiro. Apesar de apresentarem uma visão lúcida das relações sociais, tais romances são, no conjunto, antiquados. Dão a impressão de coisas boas que envelheceram. Esse envelhecimento é devido, principalmente, ao enredo sentimental que apresentam. Mantém-se neles a trama das estórias românticas: com princípio, meio e fim – construídas de modo a gerar surpresa e emoção. Com exceção de Ressurreição, foram programados para divertir e moralizar, pois se escreveram em forma de folhetim, para publicação parcelada em jornais e revistas. Entretanto, não se pode dizer que haja, nesses romances, exagero sentimental ou excesso de peripécia. O estilo também é moderado. O romantismo de Machado de Assis é sóbrio, tanto no texto quanto na trama.(TEIXEIRA, 1988, p. 15 )

Lúcia Miguel Pereira, (1946) fez a seguinte observação sobre o que era esse tipo de literatura: “... literatura amena de pura fantasia, sem nenhum fundamento na realidade. Anedotas passadas no mundo convencional onde os desgostos amorosos são os únicos sofrimentos, onde tudo gira em torno de olhos bonitos, de suspiros, de confidências trocadas entre damas elegantes.” ( PEREIRA, 1946, p.135)

O escritor romântico cria um mundo imaginário como saída para fugir de uma realidade muitas vezes injusta, a qual ele não tem coragem de enfrentar de forma objetiva. Isso o leva, na maioria das vezes, a voltar-se para as experiências amorosas e sentimentais, exagerando e supervalorizando essas experiências a ponto de alienar-se e fugir tanto dos problemas de ordem prática da vida, como também dos sociais, políticos e daqueles mais complexos para a espécie humana, como por exemplo, os existenciais.

Portanto, Lúcia Miguel Pereira tem razão no que diz respeito a outros escritores do período romântico, que praticavam um tipo de Literatura de salões, como por exemplo, o Alencar de Senhora e Lucíola ou o Macedo de A Moreninha. Porém, no que diz respeito a Machado de Assis, a sua prosa, mesmo nos romances de entretenimento, escritos para divertir madames e donzelas da época, já tem um toque especial; já existe ali uma pitada daquele molho machadiano a que se refere o próprio Machado em depoimento da época, quando afirma que pode até buscar a especiaria alheia, mas que essa havia de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica ‘Tiro de cada coisa uma parte, e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo”, ideal do meio termo , “nem descuido, nem artifício, arte”. A verdade acima de tudo, combatendo todos os exageros em nome da arte. Machado de Assis ( apud COUTINHO, 1966, p.80 )

Mesmo em Helena, um romance romântico igual a muitos outros da época, Machado de Assis já inovava, não exatamente na trama, mas no estilo, que era próprio. Afrânio Coutinho, (1959) comentando esse que é provavelmente o mais romântico dos romances machadianos nos lembra o seguinte:

Já em Helena adquire o escritor desenvoltura e fluência e vão reportando aqui e ali as soluções estilísticas, o modo próprio de dizer que o distingue de todos. Certas frases já adotaram o torneado de sabor clássico tão característico da sua língua. [...] Esses retoques estilísticos vão atenuando o Romantismo, e emprestando um interesse lateral, que vem do comentário à ação e aos tipos, e supera a atração difusa e enfadonha das cenas, dos diálogos e das citações. (COUTINHO, 1959, p. 142 )

Machado de Assis a essa época, tanto em Helena e mais ainda em Iaiá Garcia, já mostra certa evolução que o distinguia dos demais romancistas daquele período. Em Iaiá Garcia, por exemplo, o narrador parece mais autêntico, quando retrata a sociedade de forma contundente, com mais verossimilhança de que em Helena, nos mostrando os segredos e bastidores desta sociedade corrompida, com seus tipos, seus vícios e defeitos.

Isso o distingue de românticos como um Alencar de A pata da Gazela, um Taunay de Inocência, um Bernardo Guimarães de O Seminarista e percebemos até mesmo diferenças em relação ao próprio Machado de Helena, pois em Iaiá Garcia, o narrador machadiano vai mais fundo na análise da estrutura decadente de nossa sociedade. Em Iaiá, com sutileza e ainda alguma timidez o narrador já começa a abordar, não só o lado moral, mas também, o aspecto psicológico desencadeado pelas ações da personagem. Novamente recorreremos a Afrânio Coutinho a fim de apoiarmos nossa exposição.

Em Iaiá Garcia, o escritor já adquire uma certa desenvoltura e fluência, e vão reportando aqui e ali as soluções estilísticas, o modo próprio de dizer que o distingue de todos. Certas frases já adotaram o torneado de sabor clássico característico de sua língua,

e de sua ironia e de seu sutil sarcasmo. (COUTINHO, 1959, p. 142)

José Aderaldo Castelo, ao comentar a diferença de Iaiá Garcia em relação à Helena nos lembra que: “Iaiá Garcia, sem o halo trágico de Helena, mas romanticamente mais amadurecido, apresenta-se também como sondagem do destino individual, como fluxo de atos e intenções que se encadeiam com valores morais, afetivos e sociais, nos limites estritamente contemporâneos. ( CASTELO, 1969, p.105 )

Concordamos com a afirmação de Castelo, principalmente por acreditarmos que Iaiá Garcia, se distancia cada vez mais do tradicional estilo de romance folhetinesco, que foi Helena. Baseado nas descrições e peripécias de suas personagens para preencher o enredo, esse tipo de romance, sem grande conteúdo nem análises psicológicas relevantes, não só fazem uma crítica mais apurada ao modelo social vigente, como também começam a se voltar para a análise e observação de suas personagens, vítimas das complicações psicológicas trazidas por esses mesmos fatores sociais, tão criticados por Machado, sendo que essas análises se sobrepõem ao enredo.

Afrânio Coutinho (1966), em seu estudo Introdutório sobre Machado de Assis, comenta esse retrato social:

O retrato que fornece Machado da sociedade de seu tempo: as condições da família patriarcal, impondo as conveniências sociais aos direitos do amor nos casamentos forçados, ´complicação do natural com o social`; os reflexos psicológicos e sociais das condições criadas pela escravidão; as repercussões da guerra externa; os costumes políticos da época, os problemas financeiros, o espírito crítico ligado à renovação cultural provocada pelo Positivismo e Naturalismo na década de 1870, em consonância com o movimento de afirmação da consciência literária nacional e as fortes influências pela qual estava passando a Literatura e o pensamento filosófico da época mexeu com a visão de mundo e com concepção de literatura de alguns escritores, dentre eles, Machado de Assis. ( COUTINHO, 1966, P.35 )

Quando chegamos a essas questões de “complicação do natural com o social” e “imposições das conveniências sociais aos direitos do amor nos casamentos”, nos deparamos com a grande temática machadiana da primeira fase: o amor e o casamento. Casamentos que geralmente eram realizados ou não, de acordo com as conveniências, e essas nem sempre eram do agrado dos envolvidos, principalmente das mulheres.

Os romances iniciais de Machado tratam exaustivamente dessa questão, porém, em Iaiá Garcia, ganha contornos especiais. O tema já é abordado com mais clareza por um narrador perspicaz e mordaz. O narrador de Iaiá Garcia é um crítico severo das diferenças sociais e dos casamentos por conveniência, e atento a esses pormenores, não deixa escapar as oportunidades para ir desvendando o caráter de suas personagens, por meio de uma análise psicológica que abre caminho para o Machado da segunda fase.

3.2 Estela: casamento, renúncia e sofrimento

Em Iaiá Garcia, temos um exemplo claro da trama romântica. É certo que a habilidade do narrador machadiano explora como poucos, outros aspectos que enriquecem e valorizam a obra, contudo, seu enredo é tipicamente romântico.

Por preconceito de classe, Valéria, viúva rica e pertencente à tradicional sociedade carioca procurou a todo custo afastar Estela, moça pobre, porém honrada e de caráter, de seu filho Jorge, um jovem que além de abastado e refinado, tinha alma nobre; no entanto, estava preso às tradições e não tinha coragem de desafiar nem sua mãe, nem o sistema social vigente.

No início dessa obra, Machado de Assis, adiantando-se a sua fase realista, dá amostras de seu inegável talento narrativo. Seu narrador cria um fato, que metaforicamente anuncia ao leitor atento, a antecipação dos fatos e o desfecho do amor entre Jorge e Estela.

Mostrando um passeio feito por Estela e Jorge a uma das casas de Valéria, que ficava num bairro distante, o narrador mostra o encantamento da moça pelo rapaz, quando ela, por estar ao lado de Jorge, nem se deu conta do tempo que gastou na viagem.

Um dia, vagando uma casa de Valéria no caminho da Tijuca, determinou-se a viúva a ir examiná-la, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estela. Saíram cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que pela primeira vez ia àquele arrabalde. Quando a carruagem parou, supunha Estela que mal tivera tempo de sair da rua dos Inválidos. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.29).

Parece que o encantamento era recíproco, pois, a casa para ele era o que menos importava. Jorge só tinha olhos para a moça. Começava ali uma história de amor nos padrões românticos.

A casa precisava de alguns reparos; um mestre de obras, que ali estava, acompanhou a família de sala e de alcova em alcova. Que lhe importava a ele o reboco de uma parede ou o conserto de um soalho? Ele gracejava, ria ou sussurrava ao ouvido de Estela um epigrama a respeito do mestre-de-obras, cuja prosódia era execrável. Estela, que sorria com ele, cerrava, entretanto o gesto aos epigramas. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.29)

Numa cena bem romântica, Jorge, para agradar a moça, resolve pegar para ela uns pombinhos inocentes que estavam no local. Essa cena retrata a seqüência de um amor, que irá enfrentar desde cedo muitos empecilhos.

Estela recusou, mas o bacharel resolvera e ia satisfazer ele próprio o desejo da moça. O pombal não ficava ao alcance da mão; era preciso trepar ao parapeito da varanda, crescer na ponta dos pés e estender o braço. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos pombos. . ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.30)

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Um dos pombos ficou logo seguro; o outro, a princípio arisco, foi colhido depois de algum esforço. Estela recebeu-os; Jorge saltou ao chão. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.30)

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O orgulho e a dignidade de Estela, assim como a falta de empenho e

objetividade de Jorge para resolver a futura situação amorosa, irão, ao longo da trama,

impedir um desfecho feliz para o casal.

Após uns dois ou três minutos de silêncio, Jorge caminhou na direção do parapeito,

onde estava Estela, com a cabeça inclinada, a beijar a cabeça dos pombos, que tinha

encostados ao seio. Deteve-se, sem que a moça mudasse de posição. Contemplou-a ainda

um instante, e se Estela olhasse para ele veria que a expressão dos olhos era de

respeitosa ternura e nada mais. Esse instante, porém voou depressa, e com ele a

consideração. Inclinando-se para a moça, Jorge falou de um modo que nem a educação

nem a índole, mas só o despeito explicava:

___ Por que há de gastar, com esses animais, uns beijos que podem ter melhor

emprego? Estela estremeceu toda e ergueu para o moço uns olhos que fuzilavam de

indignação. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.30)

Jorge incitou e deu esperanças a Estela, porém não teve dignidade nem determinação para assumir efetivamente o relacionamento.

Jorge tinha uma nuvem diante de si, através da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da mulher amada; via só a mulher indiferente. Lançou-lhe as mãos na cabeça, puxou-a até si e antes que ela pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.30)

Sem apoio e base sólida, esse amor não pôde ser sustentado e o relacionamento acabou não se concretizando.

Soltos com os movimentos, os pombos esvoaçaram sobre a cabeça de ambos, e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhuma fatalidade moral os condenava àquele amor sem esperança, àquela cólera sem dignidade. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.30)

O impedimento, a impossibilidade do relacionamento amoroso não apagaram esse amor, apenas o sufocaram.

Estela sufocara um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviram-se as vozes de Valéria e do mestre, que se aproximavam; Jorge teve um instante de incerteza e hesitação; mas a reação operava-se, e, além disso, urgia apagar os vestígios daquela cena, de maneira que os não visse a viúva. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.30)

A mãe, por não aceitar o romance de seu Dândi-herdeiro com uma moça de classe social “inferior”, procura separá-los, mandando Jorge para a guerra do Paraguai e arranjando um casamento para Estela com Luís Garcia, um viúvo bom e pacato, que vivia apenas para sua filha, Iaiá Garcia.

Depois de voltar do Paraguai, Jorge se aproxima da casa de Luís Garcia, velho conhecido seu e também de Estela. Iaiá descobre que Jorge e sua madrasta foram apaixonados no passado e ainda se amavam. Diante dessa descoberta e percebendo o risco que corria o casamento do pai, intensifica sua relação com Jorge, a princípio com o intuito de proteger o seu lar e a felicidade da família.

Porém, Iaiá Garcia acaba aparentemente se apaixonando por Jorge, que ainda ama sua madrasta. Estela, ainda o ama também, pois só casou com Luís Garcia por conveniência. Assim, Iaiá depois de muito insistir, acaba conquistando o amor de Jorge, que termina não resistindo aos seus encantos e aceitando o casamento. Estela para não atrapalhar a felicidade dos dois, acaba renunciando ao seu antigo amor e indo trabalhar e morar sozinha em São Paulo, visto que seu pai não a acompanhou.

José Aderaldo Castelo (1969), comentando a trama e a função das personagens em Iaiá Garcia, afirma:

Em relação aos três primeiros romances, nota-se, substancialmente, uma mudança na disposição das peças do xadrez. [...] De qualquer forma, os tipos são mais bem delineados, sobretudo em comparação com aqueles esboçados nos dois primeiros livros. E, mais do que nos três romances, desdobra-se em Iaiá Garcia o entrechoque de sentimentos e paixões, enriquecendo-se dessa maneira a tessitura dramática, sem sobras, sem linhas pendentes. . ( CASTELO, 1969, p.106 )

Sobre essa questão, ainda comenta Castelo: “Sendo ponto discutido a preocupação machadiana de estudar os caracteres, agora reconhecemos a mais o propósito de investigar o drama em termos sociais objetivos ou de relações humanas mais convencionais”.( CASTELO,1969, p.106 )

Analisando as relações sociais e esses dramas citados acima por Castelo, notamos em Iaiá Garcia, algumas diferenças entre as duas principais mulheres desse romance, Iaiá Garcia e Estela, em relação à protagonista do romance Helena. Ao contrário de Helena que romanticamente morreu por amor, Iaiá Garcia era pobre e aspirava a uma futura ascensão social, por meio do casamento. Desde cedo mostrava a disposição de enfrentar a vida de forma mais prática e independente, renegando a tradição do casamento por conveniência e exclusivamente seus interesses. Estela que fora agregada de Valéria, tinha seu orgulho e queria casar por amor, mas as diferenças sociais a conduziram a um típico casamento arranjado, aliás, muito comum na época.

___ Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois aí tens a minha história, a história, dessa carta, que já agora podemos rasgar... ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.123).

Estela faz concessões ao jogo social. Com consciência de seu ato, não hesita em aceitar a proposta de Valéria, mesmo sabendo que com isso irá abrir mão de sua realização amorosa. Diferente da atitude de Iaiá Garcia, que será de lutar para satisfazer seu desejo, Estela irá na direção contrária e abrirá mão de sua felicidade.

Simples agregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valéria, que também era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrário, veio a apreciá-la melhor. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, P.33 ).

Estela é uma personagem que retrata bem a situação vivida pela mulher brasileira no final do século XIX, situação abordada nos primeiros romances machadianos. Ou seja, o casamento como meta de vida, a imposição da família e as conveniências nas relações sociais.

Estela ouviu daí a meia hora a notícia da generosidade da viúva, que o pai se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouviu-a calada e severa. Não achado a explosão de alegria que esperava, o Sr. Antunes abanou a cabeça. ___ Não entendo, filha! Replicou ele. Hás de dizer o que é que queres ser neste mundo. Não és rica; não tens a menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, porque nada tenho. Há uma senhora, que estima, que te faz um benefício, e tu recebes isto como se fosse uma injúria. ___Papai sabe que não sou de muito riso, disse ela; pode ficar certo de que me alegrou muito a notícia que me deu.

A observação do pai chamou a filha à realidade da situação. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.44 )

Estela, que se relacionou com Jorge praticamente com a mesma idade que Iaiá, também tinha uma visão razoavelmente amadurecida das relações e conveniências sociais. O peso das diferenças de classe era muito grande e tinha plena consciência disso. Em seu orgulho de menina se sentiu ferida duas vezes: pela impossibilidade da realização de seu sonho amoroso, devido a sua origem humilde, e pela atitude aparentemente superior e desrespeitosa de Jorge, que por ser um cavalheiro de classe social mais elevada que a sua, se sentiu no direito de beijá-la.

Não alegrou nada. Nunca pesara tanto a fatalidade da posição. Depois do episódio da Tijuca, parecia-lhe aquele favor uma espécie de perdas e danos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma água virtuosa que lhe lavaria os lábios dos beijos que ela forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue. Out, damned spot! Este era o seu conceito; esta era também a sua mágoa. A altivez com que procedera desde aquela manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o ato inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a ação da moça a conseqüência de fazer decorrer o benefício da mesma origem da afronta. Era tudo a mesma bolsa; e dali é que lhe vinha o dote. ( MACAHADO DE ASSIS, 1983 , p. 53 )

A relação de Estela com Jorge estava com os dias contados. Valéria, depois da partida de Jorge para o Paraguai, queria a todo custo casar sua antiga agregada para assim afastar de vez, o perigo de ver seu filho envolvido com alguém de classe social mais baixa. Portanto, uniu-se a Iaiá Garcia, simpatizante de Estela e interessada em casar o pai, para conseguir seu objetivo. Iaiá, por sua vez, com cálculo e determinação, atirou-se ao projeto e só se tranqüilizou após conseguir seu intento.

Valéria descobriu a pouco e pouco a ineficácia do remédio que aceitara; estava certa da paixão do filho, e via que, longe de expirar, entrava pela vida adiante, menos estouvada talvez, mas não menos sincera e profunda; soube que Jorge freqüentava a casa de D. Luísa; estremeceu pelo futuro e cogitou num modo de estrangular as esperanças em flor. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.38 ).

Valéria aparece de certa forma como uma personagem ambígua: ao mesmo tempo em que ocupa a posição que poderíamos chamar de vilã da história, por querer atrapalhar a felicidade do casal, também será a portadora de uma situação honrosa para o caso de Estela.

Assim procedendo, satisfaria também a afeição que tinha à moça, afeição que nunca lhe diminuiria. Sabia que entre Estela e o pai havia contrastes morais de difícil conciliação. Cada um deles falava língua diferente, não podiam entender-se nunca, sobretudo ( dizia ela consigo) na escolha de um consorte. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 46 )

Iaiá, de forma muito racional para alguém de sua idade, ajudou a arranjar o casamento do pai juntamente com a protetora de Estela, Dona Valéria; num consórcio que era interessante para todo mundo, motivo pelo qual Iaiá não deve ter se arrependido, pois tanto para seu pai como para a madrasta o casamento também era um negócio conveniente. Estela, depois de refletir sobre as palavras de seu pai e por não acreditar numa postura firme de aceitação de Jorge em relação a ela, fica desiludida e sem muitas perspectivas, e por isso, acaba aceitando a “negociata” em nome de seu orgulho ferido. “ _ Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro”.( Machado de Assis,1983, p. 50 )

Iaiá Garcia mostra a que veio logo cedo. Sua sagacidade e inteligência já são perceptíveis desde a mocidade. De certa forma, compreendia como funcionava o mecanismo do casamento naquela sociedade, e assim, se moldava às convenções e às conveniências da época de acordo com seus interesses. Sendo o casamento do pai um desejo da influente Valéria, ela se afeiçoando a Estela, e quem sabe até mesmo inconscientemente tendo outras intenções, achou conveniente e não hesitou em empreender todos os esforços para conseguir a realização de seu projeto. “O resto foi obra de Iaiá, obra dividida em duas partes, uma voluntária, outra inconsciente. Voluntária, porque também a menina, no silêncio laborioso de seu cérebro, construíra o projeto de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro.” ( MACHADO DE ASSIS, 1983 p. 50 )

Iaiá, que adorava o pai, achou que a observação de Estela era a mais natural do mundo, e não olhou sequer para a outra fotografia. Estela fechou depressa o álbum com a mão trêmula, e mal pode sorrir à insistência com que Iaiá voltou àquele assunto. (ASSIS, 1983, p.56).

-A senhora podia casar-se com papai, disse a menina depois de olhar algum tempo para a outra. (ASSIS, 1983, p. 56) Iaiá não insistiu; mas dois ou três domingos depois, estando todos na chácara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estela se deveras lhe tinha afeição.

_ Já disse que sim, acudiu Estela. -Mas gosta de mim?

-Muito, repetiu Estela prolongando a primeira sílaba. _ Por que não vem morar comigo? ( ASSIS, 1983, p. 56)

Iaiá, com essa atitude, não pensou na pobre Estela, que era uma moça de boa índole, prendada e bem educada, porém pobre. Pensando em si e talvez no pai, Iaiá acaba colaborando nesse jogo, para o sacrifício de Estela, que como alma nobre que era, procura aceitar com resignação sua condição de vítima. Alfredo Bosi, (2003), comentando o caráter e a nobreza de Estela, diz o seguinte:

Em Iaiá Garcia, a virtude de Estela é coesa e inabalável, ditada por um sentimento confesso de orgulho que não cederá a nenhuma isca de cooptação. A sua dignidade não só a isenta de qualquer deslize interesseiro como a torna refratária ao mínimo ato de menosprezo cometido contra os que estejam abaixo dela na escala social. É significativo desta sua nobreza (que não lhe vem do sangue, nem dos bens, mas da consciência) o episódio em que o moço rico Jorge lhe segreda ao ouvido palavras de caçoada da pronúncia de um operário: Estela “cerrava, entretanto o gesto aos epigramas”. Convém lembrar que o pai de Estela, agregado da família de Jorge, é descrito como uma natureza oposta à da filha, o que dá um dos aduladores mais típico e enjoativo da obra de Machado: Estela era o vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino.” . ( BOSI, 2003, p.55 )

Na sociedade daquela época, desigual e preconceituosa, era impensável uma moça de origem humilde como Estela se casar com um rapaz da fina flor da alta sociedade carioca como era o caso de Jorge. Eis aqui, uma das severas críticas feitas por Machado, ao sistema vigente. Estela, na passagem citada acima por Bosi, mostra solidariedade para com um operário, uma pessoa do povo, o que demonstra sua capacidade de entender essa diferença de classes e ficar ao lado dos seus. Talvez seja essa consciência, que dê origem a esse seu orgulho.

Iaiá, sendo de família sem meios, aspira ao convívio dos ricos, mas Estela, que é muito mais pobre não descansa enquanto não lhes escapa. ‘Eu era humilde e obscura, ele distinto e considerado. (...) ‘ Casamento entre nós era impossível (...) porque o consideraria uma espécie de favor, e eu tenho em grande respeito a minha própria condição’. Amando a Jorge, prefere casar com Luís Garcia, por quem sente apenas estima, que porém é seu igual. (SCHWARZ, 1981, p.154).

Estela acaba por se entregar à sorte e vai deixando conduzir-se pelos caminhos impostos pelas normas sociais e por seu próprio orgulho. Ela busca, em sua resignação, a aceitação de sua condição social e aos poucos, abre mão do amor de Jorge.

Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessária para viver tranqüila no centro mesmo do perigo. Jorge não percebera nunca os sentimentos que inspirava; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirar um dia. Estela só lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p 33).

Estela tinha consciência das dificuldades que viriam, caso resolvesse enfrentar Valéria e seu meio social. Sabia que seu amado, apesar de ser um homem bom, não ousaria desafiar nem sua mãe nem a ordem estabelecida para assumir o amor de uma moça pobre. Prefere assim, casar-se convenientemente com um homem que não a amava, mas era bom e a respeitava. Roberto Schwarz, (1981), comentando a respeito do consórcio firmado entre Luís Garcia e Estela, vê algumas semelhanças entre eles: “Embora mais forte Estela é a réplica feminina de Luís Garcia. São duas figuras e situações paralelas, independentes uma da outra a princípio, o que dá generalidade social a seus problemas e reações. Como seu par, Estela é caracterizada pela renúncia, de natureza defensiva e não ascética.” (SCHWARZ, 1981, p.129)

Entre eles, o casamento não era a mesma coisa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias inefáveis ou das ilusões juvenis. Era um ato simples e grave. E foi o que Estela lhe disse a ele, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas. _ Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro. (ASSIS, 1983, p. 50 ).

3.3 Estela e Iaiá : orgulho, realização e redenção

O destino de Estela foi atrelado ao de Iaiá Garcia, quando essa insistiu na empresa do casamento com seu pai e tomou-a como madrasta. Estela, apesar de ter feito como ela mesma falou, uma viagem de olhos abertos, ao aceitar casar-se com Luís Garcia, não sabia exatamente o que a aguardava. Após um longo hiato de felicidade, em que reinava a sobriedade e a paz no lar dos Garcias, surge Jorge no caminho, recém chegado da guerra do Paraguai. Começam aí os conflitos. Alfredo Bosi (2003) comenta com muita lucidez essa teia de relação, conflitos e competições geradas pelo retorno de Jorge.

Em outras palavras: o olhar do primeiro Machado já era móvel, subindo do interesse para o desinteresse e, em seguida, na construção complexa de Iaiá Garcia, contemplando as organizações opostas de Iaiá e Estela, a competição solerte e a estóica isenção, ambas operantes no mesmo meio familiar. Assim, no interior da mesma teia de relações sociais, o contexto burguês-paternalista fluminense, é a diferença que move a história.( BOSI, 2003, p.45 )

Durante o período em que freqüentou a casa de Luís Garcia, após sua chegada do Paraguai, tanto Jorge como Estela disfarçavam diante de Iaiá e do dono da casa, o relacionamento que tiveram no passado. Porém, Iaiá Garcia, com sua sagacidade e seu talento para descobertas, logo percebe que há algo estranho entre os dois. Essa antiga inconsciente suspeita, se confirma quando descobre uma antiga carta de Jorge endereçada a seu pai, em que esse falava de seu amor por uma moça, que Iaiá com toda sua perspicácia deduziu que era Estela. Começam, portanto, os desentendimentos entre enteada e madrasta.

Iaiá não obedeceu à intimação da madrasta, e para tirar à recusa qualquer aparência ofensiva, conservou um ar de modéstia e resignação. Estela não se deu por vencida; demonstrou-lhe que só um motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e que era forçoso dizê-lo ao noivo; lembrou-lhe finalmente a estima que sempre houvera entre Jorge e o pai. Neste ponto Iaiá estremeceu e fitou na madrasta uns olhos que não eram os de pouco antes. Parecia-lhe sacrilégio evocar o nome do pai. Não se pode ter; deu um passo e interrompeu-a com sequidão:

____Não posso, casar, porque a senhora gosta dele. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.119).

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Enquanto falava a enteada. Estela tinha a fronte inclinada e pensativa; atitude em que se

conservou ainda durante algum tempo.

___ Bem vê que acertei, disse Iaiá; seu silêncio confirma a minha suposição.

___ Eu! Exclamou Estela estremecendo. Tu não entendes nada dos sentimentos, não

conheces o coração. Eu amá-lo? Eu? Não! Não é possível! . ( MACHADO DE ASSIS,

1983, p.120)

Roberto Schwarz, (1981) comentando a reação auto-afirmativa de Estela diante da explosão de Iaiá Garcia, após descobrir o antigo relacionamento entre ela e seu atual pretendente, aponta para a atitude romântica de sua renúncia, pois, diante da situação de desigualdade na competição com a enteada, percebe-se que Estela apenas sufoca e disfarça um turbilhão de sentimentos abafados.

Como nos romances anteriores, Machado aspirava à igualdade da condição humana alicerçada na integridade e na autenticidade do caráter e do sentimento, amparadas pela fé e pelo respeito cristão. Daí porque, apesar de certas concessões, contorna soluções românticas para o desenrolar dos acontecimentos e dá ênfase à vontade consciente contra

o azar da sorte ou do destino: Estela disfarça e ‘Estrangula’ o seu sentimento: ‘nunca! Jurou ela a si mesma. Anti-romanticamente, a distância social prevalece contra o amor, mas isto por convicção da própria valia, e não por tradicionalismo. Daí que as negativas muito decididas de Estela tenham elas mesma alguma vibração romântica, pois na fuga à relação desigual ecoa a recusa da desigualdade ela própria, além de se insinuar uma concepção mais exigente do amor, de que a situação de dependência seria indigna. (SCHWARZ, 1981, p.130).

Narrando os antigos episódios à sua enteada, Estela deixa se levar por reflexões saudosistas e pessimistas que podem ser apenas meias verdades. Estela atribui a separação entre ela e Jorge, à partida desse para a Guerra, como se essa atitude fosse uma prova de amor, expiação e sacrifício, e não uma falta de disposição dele para enfrentar sua mãe, a sociedade e assumir seu amor por ela. Desse modo, o coloca também numa condição de vítima, atribuindo sua partida, a uma renúncia ao mundo e à vida, diante da impossibilidade do amor entre eles.

_ Vês? disse Estela; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir para a guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não há nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida, afronta à vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de xá... ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.122).

A justificativa de Estela para Iaiá, se não era verdadeira, ao menos acalentou um pouco a moça, fazendo com que ela acalmasse os ânimos e começasse a pensar a questão por outro ângulo, ou seja, a postura de Jorge diante de tudo isso.

A certeza da isenção de Jorge importava muito mais que a de Estela; a alma de Iaiá no primeiro instante respirou à larga. O respeito que tinha à madrasta, e um pouco de ciúme retrospectivo que a mordia, ao pensar naquela paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam à moça qualquer outra manifestação. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.123/124)

Depois de alguns desentendimentos, aparentemente as coisas se acalmam. Mas, pelo visto, apenas exteriormente, pois o narrador nos dá algumas indicações, de que lá no íntimo, disfarçados em falsos elogios, a rivalidade entre as duas mulheres insistia em corroer o relacionamento: “A beleza de Estela estava ainda longe do declínio, e a modéstia de Iaiá fazia-a persuadir de que, ainda no declínio, seria superior a sua”. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p.125).

Em seu isolamento Iaiá refletia. Apesar de tudo isso, era necessário superar o conflito, pois, vencida a batalha, agora era a hora de colher os louros da vitória, mesmo que o ciúme e o despeito não lhe permitissem saborear esse banquete com tranqüilidade.

Quando se achou a sós consigo levava o espírito arejado da suspeita que o oprimia durante largos meses; mas o vento que o levou das sombras, já lhe queimou algumas das flores desabotoadas ao calor do primeiro sol. A felicidade tinha um travo de desgosto e humilhação; o coração tremia de medo. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.123/124).

Após refletir por algum tempo sobre os últimos episódios e remoer em silêncio sua angústia, Iaiá Garcia finalmente resolve desfrutar sua conquista. Sob insistentes apelos e argumentos da madrasta, resolve se casar com Jorge, com a certeza paradoxal de que o casamento e a separação é que seria o grande fator de união entre ambas: “Iaiá só sentia admiração e gratidão. Tinha certeza de que o passado era pouca coisa e de que o futuro seria coisa nenhuma. O casamento ia separá-las, reconciliando-as.” ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.125)

No primeiro aniversário da morte de Luís Garcia, Iaiá foi com o marido, a fim de depositar na sepultura do pai um uma coroa de saudades. Outra coroa havia sido ali posta, com uma fita em que se liam estas palavras: ___ A meu marido. Iaiá beijou com ardor a singela dedicatória, como beijaria a madrasta se ela lhe aparecesse naquele instante. Era sincera a piedade da viúva. Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.127).

A saída encontrada por Estela para resolver a situação, aparentemente não foi das piores. Após sua retirada por heroísmo ou orgulho para deixar a enteada e Jorge viverem felizes, encontra uma saída honrosa para si: o trabalho. Vivendo de forma independente embora sozinha em São Paulo, escreve para a enteada, cartas, em que não demonstra sua condição de vítima nem faz referências ao passado. Sua postura é de mulher que encontrou a liberdade e vive com dignidade. Roberto Schwarz, (1981) comenta, por um prisma parecido, essa questão.

O caminho de Estela, entretanto parece apontar em direção de uma saída diferente e heróica: o trabalho assalariado. Perto do fim, a morte de Luís Garcia traz a reorganização das relações de família. Depois de anos de luta em sentido contrário, a moça vê-se na posição de sogra e dependente de seu amado, e de rival infeliz de sua enteada. Resolve partir para o norte de São Paulo onde será professora. Sem alusões ao passado, as suas cartas são escritas “no mais puro estilo familiar”, expressão que no contexto é sarcástica, e assinala a liberdade que finalmente ela encontrou. (SCHWARZ, 1981, p.160).

3. 4 Iaiá Garcia: os indícios de uma nova estética

É importante observarmos, de tempos em tempos, a maneira como as personagens de um romance são abordadas. Nos períodos Romântico e Realista, o narrador tinha uma forma peculiar de focar e dar vida própria à personagem, ficando, portanto sua função dentro da obra, demasiadamente subordinada à ótica desse narrador.

Representante de uma estética diferente e com características bem particulares, Machado de Assis foi mestre em criar personagens que se tornaram antológicos, dada a sua perfeita composição e enquadramento ao enredo, dando verossimilhança e originalidade à obra. Uma personagem que ainda está longe dos seus tipos característicos, porém já demonstra um pouco dessa habilidade machadiana é Luís Garcia, o pai de Iaiá. Ele é um ensaio para a composição dos tipos mais representativos, que serão criados por Machado futuramente.

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar circunspeto. Suas maneiras eram frias, modestas e corteses. [...] Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes tranqüilas. Alguns poderiam temê-lo, outros detestá-lo, sem que merecesse execração nem temor. Era inofensivo por temperamento e por cálculo. ( MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 11)

Além das características que vimos na passagem acima, o pai de Iaiá Garcia, tinha outras que percebemos, à medida que lemos o romance. Em outra passagem do livro, o narrador nos conta que o pai de nossa heroína era um homem que: “Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do método”. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 12) Era portanto, um homem sério e metódico, pai extremoso e dedicado. Luís Garcia era homem de verdadeira devoção para com a pequena, porém comedido e econômico que, em suas mais entusiásticas efusões de amor para com a filha, não era exagerado nem perdia a frieza. Iaiá que sempre foi uma criatura perspicaz, desde criança já deve ter aprendido com o pai a ser mais comedida e menos expansiva em suas demonstrações de sentimentos.“Tal era a vida uniforme e plácida de Luís Garcia. Nenhuma ambição, cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma” (MACHADO DE ASSIS.1983, p. 16)

O narrador machadiano de Iaiá Garcia, tudo vê e tudo consegue captar, não deixando escapar nenhum movimento no que diz respeito à personagem. Contrapondo-se ao subjetivismo e à falta de consistência dos românticos, o narrador de Iaiá Garcia vem como que com uma “ pequena câmera instalada dentro da cena”, atento a todos os detalhes, não deixando de fato nada despercebido. Dessa mesma opinião, é também Antônio Cândido, quando observa que: “Os romancistas do século XIX [...] levaram ao máximo esse povoamento do espaço literário pelo pormenor, - isto é uma técnica de convencer pelo exterior, pela aproximação com o aspecto da realidade observada”. (CÂNDIDO 2000, p. 79 )

O leitor é conduzido por esse narrador ao próprio ambiente da narrativa, interage com ele e observa atentamente o desenrolar das cenas que por meio das atitudes das personagens, do seu caráter e de suas ações de maneira geral, as torna verossímeis. Para melhor entendermos esse tipo de preocupação, que era mais comum aos narradores realistas de que aos românticos, vem em nosso auxílio, novamente Antônio Cândido, quando baseado nas teorias de Forster, ( 1969 ) diz que: “a personagem deve dar a impressão de que é um ser vivo. Para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas relações com a realidade do mundo, participando de um universo de ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos na vida”. ( CÂNDIDO, 2000, p.64).

Dando ênfase a tais atitudes do pai, poderemos ir delineando a atmosfera psicológica na qual estará inserida a filha. No caso de Iaiá Garcia, no decorrer da obra, o narrador também nos dá pistas sobre o futuro da protagonista, e não são poucas. Estas pistas, desde já, vão guiando a personagem para um caminho e uma função na intriga, que trará um desfecho bem diferente dos que tiveram personagens como Estela e Helena. Essa estratégia foi muito usada nas narrativas de cunho mais realista, pois como explica Nelly Novaes Coelho, (1980) seus autores acreditavam que explicando a origem genealógica e familiar, explicariam conseqüentemente, a personagem e sua personalidade.

O romancista realista afirma-se como narrador onisciente, depurando o processo realista de apreensão da realidade que havia sido criado pelos românticos: o homem que tudo sabe, acerca de seu mundo de ficção e tudo explica de modo convincente e hábil. Nada lhe escapa do aspecto exterior das personagens. Nada desconhece de seus antecedentes familiares, fisiológicos e genealógicos. Analisa, enfim, tudo com argúcia e - cheio de segurança - dialoga com o seu leitor, a cuja vista não oculta nada. ( COELHO, 1980, p.176)

Iaiá Garcia era quase uma criança quando nos foi apresentada, apenas uma menina; nem por isso, o mordaz narrador deixou de anunciar ironicamente e de forma camuflada, bem ao gosto desse estilo machadiano que começava a surgir, os desafios que a aguardavam. Em seguida, usa inocentemente a relação de carinho que Iaiá mantinha com

o pai, para dar pistas a respeito do caráter calculista e frio, de Iaiá. “A docilidade da menina encantava a alma do pai. Nenhum receio, nenhuma hesitação; respondia, lia ou desenhava, conforme lhe era mandado ou pedido”. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p.14 ) Sobre esta questão é válido observarmos o que diz Beth Brait: “A sutileza do estilo do narrador, permite que as personagens recebam um certo número de qualificações e ao mesmo tempo, desnudem o seu fazer através de índices que contribuem para a sua ‘função’ no decorrer da intriga”. ( BRAIT, 2004 , p.58).

Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá. No colégio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. Esta era Iaiá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, _ um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pai. ( ASSIS, 1983, p. 13 )

Em Iaiá, a sutileza do narrador, sempre abordando o lado moral, assim como o aspecto psicológico desencadeado pelas ações da personagem, vem mostrando, desde o começo da narrativa, os indícios de evolução de Iaiá Garcia, enfatizados através da preocupação do pai, quando ela era uma criança. Preocupação essa, que consistia em que ela adquirisse condições e pudesse sobreviver de forma independente, caso isso um dia fosse necessário.

Assim, Iaiá era bela e instruída, o que naquela sociedade não lhe garantiria um bom casamento, porém, poderia lhe servir para exercer alguma profissão. “Uma profissão honesta aparava os golpes possíveis da adversidade”. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 15) Machado, habilmente, dava pistas sobre o destino que poderia ter Iaiá, destino esse, que foi modificado pela própria personagem e sua força de caráter. A respeito dessa habilidade estilística de Machado, em relação às pistas inseridas no começo da obra, é que traremos o comentário de Roberto Schwarz:

A referência permanente à vida passada das personagens faz que a matéria-prima em Iaiá Garcia seja toda ela relacional, e nunca bruta. Aí a razão da famosa parcimônia de machado em detalhes externos, que não faltam, mas não são nunca tratados fora de seu nexo vivo e problemático. Um princípio de economia narrativa que se opunha à prosa pitoresca do Romantismo, e também à “reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis”, que na época achado reprochava ao Naturalismo de Eça de Queiroz, reproche que no capítulo do detalhe escabroso não deixa de ter graça, vindo de quem vem. (SCHWARZ, 1981, p.155)

Iaiá Garcia é uma personagem mais bem trabalhada psicologicamente, mais bem mais composta. Porém, muitos códigos dos tradicionais romances românticos ainda perseguem a protagonista. Poderíamos citar, dentre vários exemplos, o preconceito de classe, o casamento arranjado e a impossibilidade do amor, que estão sempre se apresentando diante dela e também de Estela, tentando bloquear a consumação do amor.

Em Iaiá Garcia aparece a visão de mundo que o narrador nos passa a respeito das condições de vida, às quais estava submetida a mulher na sociedade carioca daquela época. Iaiá procurou uma saída diferente das encontradas por Estela e Helena. Ela rompeu com os padrões convencionais, pois ao contrário dessas convenções, queria casar-se com

o homem a quem verdadeiramente amava. Iaiá não queria que seu casamento fosse por mera conveniência como o casamento arranjado por ela para sua madrasta Estela. Sua atitude em face à questão amorosa era ativa. Sabia exatamente o que queria e sua postura dentro da obra era de enfrentamento. Iaiá Garcia, caminhava assim, para uma história de amor com final feliz, pelo menos para ela. Um final que embora tendo sido de acordo com os padrões românticos, foi diferente do fatalismo de Helena e da renúncia ressentida e orgulhosa de Estela.

Segundo Terezinha Mucci Xavier, “Iaiá era simultaneamente agressiva e meiga, franca e reticenciosa, firme e hábil, um esboço de Sofia e Capitu, sagaz, petulante, ‘imperiosa como uma matrona”. (XAVIER, 1986, p.33) Iaiá, apesar de seu racionalismo e de sua contenção, às vezes saía de seu habitual rigor, e fugindo ao estereótipo de mocinha, comum na época, ultrapassava barreiras impensáveis para aquela sociedade, indo em busca do que de fato lhe interessava. Sobre isso, Xavier acrescenta: “Iaiá, em nada representa as velhas tradições da sociedade brasileira. Ela age com obstinação e audácia. Não se encontram nela as atitudes refletidas, plácidas, discretas e moderadas de Estela. Seu comportamento é todo petulante e juvenil”. (XAVIER, 1986, p. 40)

Observando bem o comportamento e as atitudes da personagem Iaiá Garcia, perceberemos que seus padrões comportamentais são bem amadurecidos para uma adolescente daquela época. Mesmo levando-se em conta os arroubos juvenis que Iaiá tinha de vez em quando, o que predomina nessa “heroína”, a sensação que é passada ao leitor, é de uma personalidade forte, enigmática, imprevisível, ciumenta e tenaz. Iaiá tem uma capacidade de percepção e uma imaginação tão forte que, de certa forma, afasta aquela panacéia psicológica que caracterizava uma típica heroína romântica.

O resumo de Iaiá Garcia deixa ver que o autor não desdenhou o qüiproquó. Contudo, já vimos que uma das razões do interesse dessa obra é a verossimilhança da motivação psicológica. Assim, entre um e outro lance exterior, o narrador dá um mergulho no íntimo das personagens em busca da justificativa moral das condutas. Outras vezes, procede de modo inverso, isto é, esboça uma situação concreta para revelar um estado de espírito. Isso é comum nos bons romancistas, mas em Machado de Assis assume relevo especial, principalmente pelo poder simbólico do pormenor, o qual é selecionado por um critério rigorosamente poético. ( TEIXEIRA, 1998, p. 50 )

Iaiá Garcia sabia o que queria. Com sua tenacidade, enfrentava qualquer tipo de força que pudesse ameaçar suas pretensões. Como bem se vê, a personagem não se submetia ao destino, ao qual estava fadada. A exemplo da Aurélia (Senhora) de Alencar, Iaiá Garcia, decididamente, não foi uma vítima dos princípios deterministas e da fatalidade que assolavam as personagens dos romances da época. Therezinha Mucci Xavier comenta abaixo esse comportamento da protagonista:

Moralmente exuberante e forte. Iaiá possuía a audácia no sangue, agindo com obstinação para realizar seu projeto de casamento com Jorge, a fim de afastá-lo de Estela e preservar a dignidade de seu lar. Ela reflete a influência moderna, casando-se por amor e não pelo lustre de família. Iaiá é dissimulada, hábil e firme. Em sua conquista amorosa, manipula todas as personagens. ( XAVIER, 1986, p. 40)

A personalidade de Iaiá Garcia, aos poucos, vai sendo desvendada com as suas próprias ações. Abaixo, veremos o momento em que Iaiá, já mocinha, usa de sua influência e perspicácia para arranjar o casamento do pai com sua futura madrasta. Iaiá procura se aproximar de Valéria e com insinuações e dissimulações, conscientemente ajuda a preparar a armadilha para Estela. Por meio das atitudes de Iaiá o narrador mostra um pouco de seu caráter:

Já então Iaiá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que podia haver – e havia,

- simpático e atraente em sua pessoa, do que pelo esforço próprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade mestra: assim, viu depressa o que era menos agradável, para evitá-lo, e o que era mais, para cumpri-lo. Essa qualidade ensinava-lhe a sintaxe da vida, quando outras ainda não passam do abecedário, onde morrem muita vez. Obtida a chave do caráter de Valéria, Iaiá abriu a porta sem grande esforço.( MACHADO DE ASSIS, 1983, p.46 )

A sociedade impunha à jovem Iaiá algumas regras e convenções, é verdade. Porém, ela tinha uma postura de enfrentamento em relação aos seus oponentes, fossem eles individuais ou “coletivos”; eis aí uma grande diferença da abordagem feita pelo narrador em relação às personagens analisadas antes, Helena e Estela. Iaiá rompeu com o ciclo de hipocrisia, ao qual se submeteram, por exemplo, seu pai e sua madrasta. Com independência e senso de liberdade, queria buscar a felicidade; sendo assim, lançava-se à luta mesmo que fosse necessário para isso fazer coisas antes impensáveis.

Iaiá pareceu perder a disposição agressiva; a força de afabilidade apagou inteiramente os vestígios da antiga rispidez. A alma não se lhe tornou mais transparente, nem o caráter menos complexo; mas a esquisita urbanidade dos modos fazia suportáveis os saltos mortais do espírito, e aumentava o interesse do que havia nela obscuro ou irregular; finalmente, era um corretivo à tenacidade com que a moça confiscava literalmente o filho de Valéria. Jorge estimou, sobre todas, esta circunstância, porque lhe tornou mais fácil a freqüência da casa. Ele pertencia ao pai ou a filha _muitas vezes aos dois. Iaiá atirou-se ao xadrez com um ardor incompreensível, e dizendo-lhe Jorge que era preciso ler alguns tratados, ela pediu-lhe um, e porque ele só os tivesse em inglês, Iaiá pediu que lhe ensinasse inglês. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p.88)

Em oposição aos autores românticos, Machado de Assis, mesmo preso às características do romance do século XIX, dá às suas heroínas um relevo, cujo perfil vaise intensificando com o crescer do enredo. Iaiá, guardada as devidas proporções, é dissimulada e manipuladora. Como num jogo de xadrez, manipula as peças à sua maneira, com o único intuito de atingir os objetivos por ela almejados e assim satisfazer seus desejos. Já se percebem nela, alguns indícios de mudanças em sua constituição, apesar da trama romanesca não ter se esvaziado por inteiro.

A moça ria às vezes, mas a maior parte do tempo fazia convergir toda a sua atenção para

o jogo. Quando falava, era moderada e dócil. Essa alternativa e contraste de maneiras interessava naquele momento ao espírito de Jorge. Que espécie de mulher fosse, imperiosa como uma matrona, travessa como uma criança, incoerente e enigmática, era coisa que ele não podia em tão pouco tempo descobrir; mas o enigma aguçava-lhe a atenção. Enquanto ela tinha os olhos no tabuleiro, Jorge buscava ler-lhe a alma na fronte lisa e cândida; mas não via a alma, via só uns fiapos castanhos do cabelo, que lhe caíam sobre a testa e esvoaçavam levemente ao sopro da aragem que entrava pela janela, e lhe davam um ar de puerícia. A boca fina e pensativa corrigia aquela expressão da cabeça; era a primeira vez que ele lhe descobria um forte indício de energia e tenacidade. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 87)

Em Iaiá Garcia, o narrador aos poucos, em doses pequenas, é claro, já vai mostrando ao leitor o que pensa a respeito das relações sociais de então. Com Iaiá Garcia vai, de certo modo, desvendando a hipocrisia e tentando dar à personagem um pouco da racionalidade, ironia, dissimulação e do sarcasmo, que tanto marcaram as grandes personagens femininas machadianas. Esses traços, evoluídos para a época, irão se acentuar nos romances seguintes e as tendências realistas irão prevalecer em romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro e em outros.

A essa atitude de dissimulação, podemos acrescentar o aparato psicológico que será longamente explorado por ele nas heroínas dos demais romances pós 1880: personalidades enigmáticas, ambíguas e muito atraentes. Ivan Teixeira chega a citar um ícone da crítica literária da época, para exemplificar o êxito de Iaiá Garcia. Sílvio Romero, que escreveu, em 1897, um livro desfavorável a Machado de Assis, reconhecia a superioridade de Iaiá Garcia sobre os livros anteriores do autor. Dizia: “... já é um belo romance, onde seu talento de observador psicólogo e de moralista, picado por certa dose de ironia, já se expande brilhantemente” (TEIXEIRA, 1988 p.47 ).

Mesmo não estando à altura das personagens que o autor irá criar mais tarde, Iaiá traz um significado preciso na concepção dos romances machadianos, alargando as perspectivas de sua estética com novas aberturas para os romances psicológicos, no qual foi mestre sem contestação. Iaiá é enigmática e irregular, seu perfil não é linear e previsível. É claro que não chega a ser tão misteriosa quanto uma Capitu, ( Dom Casmurro ) mas se distancia consideravelmente de uma Lúcia( Lucíola) e até mesmo de uma Aurélia, (Senhora), heroínas românticas de Alencar.

Iaiá estava então em toda a limpidez de uma aurora sem nuvens. Era leve, ágil, súbita, com um pouco de destimidez; às vezes áspera, mas dotada de um espírito ondulante, esguio e não incapaz de reflexão e tenacidade. Nisto podia ficar o retrato da menina, se não conviesse falar também dos olhos, que, se eram límpidos como os de Eva antes do pecado, se eram de rola, como os da Sulamites, tinham como os desta alguma coisa escondida dentro, que era decerto a mesma coisa. Quando ela olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava os refolhos da consciência alheia. Mas eram raras essas ocasiões. A expressão usual era outra, meiga ou indiferente, e mais de infância que de juventude. Talvez a boca fosse um pouco grande; mas os lábios eram finos e enérgicos. Em resumo, as feições do onze anos estavam ali desenvolvidas e mais acentuadas. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 67)

Procurando delinear as características psicológicas da personagem, às vezes procuramos em Iaiá, uma mocinha pobre e vítima do sistema, uma jovem madura e experiente e até mesmo a protagonista sagaz e dissimulada. Ao longo da narrativa, a impressão que ela nos dá, é de uma moça oportunista, que se transforma e se molda de acordo com as conveniências e seus interesses.

Iaiá Garcia parece perder a inocência juvenil e se portar como uma personagem de caráter ambíguo. Após compreender como funcionava o mecanismo social, aprendeu a conviver com a hipocrisia, que mesmo em doses leves, lhe fez companhia até a concretização de seu objetivo: o casamento e com ele sua realização amorosa, social, financeira...

O que se passou naquele cérebro ainda verde, mas já robusto, foi uma resolução sem plano. Deslindar o vínculo espúrio era o essencial e urgente, não cogitou no modo. Sua inocência, assim como lhe dissimulava toda extensão possível do mal, assim também lhe encobria as asperezas e os óbices da execução. Quem sabe? Não conhecia a hipocrisia, mas acabava de suspeitá-la; começava talvez a aprendê-la. (MACADO DE ASSIS, 1983, p.73)

De acordo com a professora Nelly Novaes Coelho, “embora desenvolvendo-se através de um jogo amoroso, vasado em convenções românticas e mergulhado em nítido clima romanesco, esse romance apresenta, paralelamente, um jogo psicológico, cuja complexidade já prenuncia os enigmáticos contrastes interiores que vão marcar as personagens machadianas da segunda fase”. (Coelho, 1966, p. 214)

Em Iaiá, essas personagens normalmente são mostradas como pessoas comuns, não como musas idealizadas e com aparência de anjo. Elas têm suas imperfeições, seus vícios, ciúmes e toda sorte de qualidades e defeitos que um ser humano normal tem. Isso dá ao texto, uma verossimilhança que não encontramos nem em Helena, nem em outras narrativas machadianas da primeira fase.

Neste instante sentiu borbulhar no coração uma primeira gota de fel. Imaginou que Jorge viera roubar-lhe alguma coisa. Não cogitou se haveria assunto que dois homens devessem tratar exclusivamente entre si; supôs-se despojada de uma parte da confiança do pai, e porque amava o pai sobre todas as coisas, seu amor tinha os ciúmes, as cóleras, os arrebatamentos do outro amor, conseqüentemente os mesmos ódios e lástimas. (MACHADO DE ASSIS, 1983, p. 67 )

Iaiá Garcia começa a mostrar outro lado da relação amorosa, do casamento e da vida. A visão apresentada pelo narrador em Iaiá Garcia é mais crítica e aguçada. Nesse romance já se tem uma amostra da descrença e do pessimismo machadiano. Iaiá Garcia, conforme nos mostra Roberto Schwarz, (1981) apresenta, via de regra, uma visão mais amarga e pessimista da vida e do ser humano em geral.

O salto literário e sobretudo intelectual é grande. Sem prejuízo do decoro resignado, Machado assumia a lucidez sombria do verdadeiro ateu, e a estendia à consideração do cotidiano, cujos dispositivos mitológicos ela desarticula. São primeiros passos já muito consideráveis, embora literariamente frustros, na direção pessimista e dissonante que será central para a arte moderna, direção que ainda hoje não se esgotou, como se pode ver em Beckett, e que paradoxalmente está em continuidade com o trabalho antimitológico da Aufklaeurung. Nesta linha, Iaiá Garcia está repleta de observações que repugnam ao coração bem-formado. São as coisas de Machado sabe, e que fazem que, ao lado dele, outros escritores, mesmos bons, e não só brasileiros, pareçam crianças.

(SCHWARZ, 1981, p.142)

Em Iaiá, Machado revela aos poucos seu lado irônico, seu inconfundível sarcasmo, e a hipocrisia reinante na época. Por meio de um narrador perspicaz, rompe barreiras e penetra, de forma cristalina, no âmago das personagens e dessa sociedade hipócrita e corrompida. Questiona tudo, inclusive as falsas bases dos considerados sólidos casamentos de então e as relações que envolviam a arraigada troca de favores existente na sociedade. De forma moderada, esse romance já apresenta certa dose de descrença, pessimismo e um pouco do tédio e da ironia machadiana, que vemos na segunda fase do escritor.

Sr. Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Eclesiastes; nem tudo perfeições, como opina o doutor Pangloss, entendia que há larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. (ASSIS, 1983, p. 25 )

Considerações finais

Helena é um romance de 1876 enquanto Iaiá Garcia é de 1878; dois anos apenas separam as duas obras, porém, algumas diferenças entre elas já podem ser notadas, pois, apesar de ambos se enquadrarem dentro dos padrões românticos, Iaiá Garcia, já pode ser considerado um romance de transição para o realismo.

As duas obras podem ser caracterizadas como românticas. Ambas são histórias de amor em que moças de origem pobre se apaixonam por homens ricos e bem educados, da alta sociedade carioca. Helena, Estela, e Iaiá Garcia sofrem e enfrentam seus vilões e suas condições sociais adversas com o intuito de conseguirem sua realização, por meio de um casamento feliz e um amor eterno. Helena, depois viver grandes momentos de lirismo e prazer ao lado de seu falso irmão Estácio, morre vítima do próprio engodo; acabando o romance em tragédia..

Helena nunca teve a força de vontade e a tenacidade de Iaiá Garcia. Durante muito tempo, chorou em surdina por seu amor impossível e por sua má sorte na vida. Enquanto Iaiá Garcia, de forma prática e objetiva, lutou pela efetivação de seu romance, Helena gemia durante a noite pela impossibilidade de um amor aparentemente incestuoso, bem ao gosto romântico. Essa postura defensiva de Helena, aliada à dúvida e ao medo de encarar a realidade, foi aos poucos minando as forças da heroína, até o ponto de se entregar ao desespero e acabar abdicando da própria vida.

Estela, outra moça também com as características gerais de Helena e Iaiá, ou seja, pobre, inteligente e bem educada, é personagem de uma trama bem ao gosto romântico. Filha de um tipo fútil e interesseiro apaixona-se por Jorge, filho de sua protetora Valéria. Estela, como agregada, tinha contra si, além da condição social “inferior”, o próprio orgulho. Para preservar sua dignidade acaba aceitando um casamento de conveniência com Luís Garcia, pai de Iaiá, que será sua enteada - rival e irá rivalizar com ela pelo amor de Jorge. Estela, após a morte do marido, mesmo livre, resolve em seus arroubos de orgulho e em nome de sua “dignidade” abrir mão de Jorge, deixando o caminho livre para a enteada. Renuncia ao amor e isola-se em São Paulo, longe de tudo e de todos.

Iaiá Garcia lutou contra a própria madrasta e enfrentou um meio social hipócrita e tradicional, em que o casamento arranjado era regra geral, lutando nem sempre de forma honesta contra todos os empecilhos, conseguiu finalmente o prêmio, ou seja, o amado Jorge e o tão esperado casamento.

Apesar de Helena e Iaiá Garcia serem obras da primeira fase machadiana, e das três personagens vivenciarem românticas histórias de amor, ( felizes ou não) a forma como o narrador aborda o relacionamento amoroso e a questão do casamento em Iaiá Garcia, já é diferente: há uma tensão típica dessa transição sofrida por Machado, uma diferença visível, embora tímida, manifestada por tendências realistas, que surgem nesse texto e que estão ausentes nos romances românticos.

Em Iaiá Garcia, indícios de mudanças começam a ocorrer na evolução da própria protagonista. No romance romântico a mulher é tratada como uma diva, pelo narrador, uma criatura perfeita e não como uma simples mortal. No romance Iaiá Garcia, o narrador foge à imaginação romântica pura e simples, mostra as pessoas como seres humanos comuns, evidenciando seus vícios e defeitos, dando mais veracidade aos fatos, e aperfeiçoa o seu micro – realismo ao desenhar um retrato fiel da protagonista.

Iaiá Garcia não demonstra a nobreza e austeridade duvidosa de Estela, nem a melancolia e o subjetivismo romântico de Helena. Iaiá já é dissimulada e de certa forma hipócrita, longe é claro da dissimulação de uma Capitu ou do cinismo de uma Vigília. Iaiá Garcia, apesar de ser uma jovem romântica, desde cedo sobressai por sua sagacidade, seu jogo de interesses, e por estar sempre tramando alguma coisa que a beneficie em seu futuro. Seus passos são pensados; desde criança procurava descobrir as intenções mais ocultas das outras pessoas, para com isso tirar algum proveito.

O censo de oportunismo da jovem Iaiá, a amoralidade do senhor Antunes, pai de Estela, o cinismo e a hipocrisia de Valéria mãe de Jorge, a sisudez e a descrença em relação à vida de Luís Garcia junto a outros traços semelhantes que surgem em Iaiá Garcia vão aos poucos nos dando subsídios necessários, embora não definitivos para dizermos que Iaiá Garcia é um romance que começa a apresentar características e tendências do Machado de Assis realista da segunda fase.

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